Os métodos pelos quais o progresso técnico contemporâneo permitiu baratear a produção de carne são cada vez mais ameaçadores à saúde pública e ao bem-estar animal. Se carne barata significa ampliação dos riscos sanitários e se ela se apoia em sistemas de trabalho incompatíveis com a dignidade humana, sua aceitação nos mercados globais será cada vez mais contestada – mesmo que os representantes do atraso continuem gritando que isso não passa de protecionismo disfarçado
“A carne está barata demais. A propaganda com baixos preços da carne não combina com sustentabilidade. Isso não é mais aceitável”. A declaração não seria surpreendente se partisse de um ativista vegano ou de um militante socioambientalista. Mas, vinda de Julia Klosckner, ministra da Agricultura da Alemanha, ela ganha importância especial.
Mais que isso: serve como alerta tanto para os que acham que os métodos atuais de produção de proteínas animais são o suprassumo do progresso tecnológico, quanto para aqueles que insistem em caracterizar qualquer crítica ao setor como expressão de interesses protecionistas que compõem a natureza das guerras comerciais.
É a carne barata que faz dos frigoríficos os epicentros da pandemia em ao menos oito países, incluindo o Brasil. E a carne tornou-se barata em função de um sistema que não consegue superar uma contradição essencial. Por um lado, ampliou o consumo de proteínas animais e assim melhorou as condições de saúde de centenas de milhões de pessoas ao longo dos 50 anos em que foi espalhando mundo afora suas técnicas de produção.Por outro, ao concentrar e homogeneizar milhares de animais em espaços reduzidos e centenas de pessoas em seu processamento, ampliou os riscos de transmissão viral ou bacteriana. Os dados neste sentido são impressionantes.
Estudo publicado na Royal Society Open Science mostra que a massa dos frangos mantidos em cativeiro industrial supera a de todas as outras aves do planeta.
Estes animais são configurados geneticamente para uma vida de cinco a sete semanas, durante a qual alimentam-se compulsivamente para ganhar peso com rapidez. Seus antepassados viviam entre três e onze anos. Da Idade Média para cá, o peso das galinhas industriais aumentou cinco vezes.
Sua estrutura orgânica é tão frágil que, em uma experiência na qual os animais foram mantidos vivos durante nove semanas, suas doenças se ampliaram assustadoramente. Só o recurso sistemático a medicamentos, que fazem dos animais estabulados os consumidores de 70% dos antibióticos consumidos no mundo, é que mantém o frágil equilíbrio dessas concentrações industriais.
Esta velocidade na granja é acompanhada também pelo ritmo de trabalho nos abatedouros e frigoríficos. Os trabalhadores estão concentrados em um ambiente gelado e devem realizar operações perigosas que envolvem instrumentos cortantes obedecendo à passagem dos animais pelos ganchos ou pelas esteiras de produção.
A concentração é tão alta que num frigorífico a pandemia atingiu 6,5 mil trabalhadores e foi a responsável pela reversão da curva de declínio dos contaminados na Alemanha ao final de junho. O famoso indicador R (quantidade média de novos infectados para cada pessoa atingida pela doença) passou rapidamente de 106 para 2,88 em um fim de semana.
E quem são os trabalhadores infectados? Nos Estados Unidos, quase 90% são de minorias raciais ou étnicas. Na Alemanha, são em geral trabalhadores vindos da Europa do Leste, que muitas vezes nem falam a língua local, que trabalham 60 horas semanais e vivem em acomodações coletivas oferecidas por agências de subcontratação. A Repórter Brasil documentou também as más condições de trabalho nos aviários brasileiros. A disponibilidade de trabalho barato é um obstáculo a que os frigoríficos sejam inteiramente automatizados, como ocorre na Dinamarca.
Estes fatos e as denúncias em torno deles sugerem que a pandemia vai acelerar transformações cruciais no comércio internacional de carnes, que é, de certa forma, o coração da agroindústria global, uma vez que é para esta produção que se dirige a maior parte dos grãos produzidos no mundo. Dois focos destas mudanças são especialmente importantes para o Brasil.
O primeiro é que os métodos pelos quais o progresso técnico contemporâneo permitiu a produção de carne barata são cada vez mais ameaçadores à saúde pública e ao bem-estar animal. Se carne barata significa ampliação dos riscos sanitários e se ela se apoia em sistemas de trabalho incompatíveis com a dignidade humana, sua aceitação nos mercados globais será cada vez mais contestada.
O segundo é que, na Alemanha, as autoridades federais estão propondo regulações que impeçam a sub-contratação dos trabalhadores. A partir de janeiro de 2021, os frigoríficos só poderão contar com o pessoal diretamente por eles empregados. E os locais de moradia dos funcionários terá de ser informado para facilitar o controle público. Em um setor tão importante quanto o da produção de carnes, não se aceita mais a ideia de que a radical flexibilização das condições de trabalho sejam premissa para o bom funcionamento da economia.
A conclusão é que o trabalho barato e a redução de custos por meio da renúncia às responsabilidades das empresas serão cada vez menos os fatores decisivos da competitividade contemporânea. Estas exigências civilizatórias tendem a se expandir, mesmo que os representantes do atraso continuem gritando que isso não passa de protecionismo disfarçado.
Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor de Amazônia. Por uma economia do conhecimento da natureza (Ed. Elefante/Outras Palavras). Twitter: @abramovay
[Foto: Jonas Oliveira/ ANPr]