Conforme as alterações climáticas ficam mais evidentes no cotidiano, modificam simultaneamente os modos de ser da sociedade. Essa modificação afetiva faz parte do campo da incerteza, assim como o próprio clima. Mas sempre há possibilidade de novas conexões. Exemplo típico dessa potência é como situações de tragédia em comunidades vulneráveis levam a impulsos de cooperação e ao fortalecimento de redes de apoio
Por Ricardo Barretto*
Há muito tempo sabemos, pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês), que o aumento da frequência e intensidade de eventos extremos é um marcador esperado dos efeitos do aquecimento global. Os impactos das fortes chuvas no litoral de São Paulo neste Carnaval é um exemplo contundente de como isso se mostra na realidade. Uma realidade que é socioambiental e revela que toda perturbação do meio vem acompanhada de fortes perdas para a sociedade.
Os alagamentos e deslizamentos atingem ecossistemas e infraestrutura. Mas, como alertam o IPCC e ativistas socioambientais, esses impactos não são sentidos da mesma maneira, pois são recebidos sob um forte componente de injustiça. Seja porque os mais pobres tendem a ocupar áreas mais expostas e menos preparadas aos riscos, seja porque sua capacidade de absorver o impacto e reorganizar a vida é diferente.
A família passando o Carnaval na Riviera de São Lourenço, em Bertioga (SP), certamente se assusta com a intensidade da chuva, com a garagem do prédio sendo inundada, com o SUV invadido por água… Mas, entre uma ligação para o seguro e uma ativação da sua rede amiga, voltará para casa atravessando a Serra do Mar, com alguma facilidade, postando imagens do perrengue no Insta, enquanto assiste aos vídeos de blocos interrompidos e desfiles de escolas de samba prejudicadas pelo aguaceiro.
Já as comunidades pobres nas áreas mais atingidas de São Sebastião ficarão isoladas por um tempo, sem acompanhar o Carnaval na TV, sem luz e sem água. Terão de reorganizar a vida em torno das perdas materiais e de situações de desabastecimento, conviverão com histórias de morte, com o fantasma da próxima chuva, com a ameaça de doenças, com as deficiências do poder público e assim por diante.
Ironicamente, o fato de o impacto ter chegado desta vez até os condomínios e casas de luxo do litoral acende um alerta e um senso de urgência que a situação dos mais vulneráveis já demandava: precisamos falar de adaptação e resiliência climática na costa.
Tudo isso estava previsto na cartilha das mudança climática no Brasil, um país desigual em que as ações do poder público têm consistência diferente de acordo com quem sente o impacto. Em 2020, escrevi aqui na Página22 sobre como a experiência de testemunhar eventos extremos de corpo presente muda a percepção da proximidade da mudança climática nas nossas vidas. E impulsiona essa pauta para cima na prioridade das políticas públicas e da cobertura da imprensa.
O que é menos falado em todo esse contexto é como os afetos se modificam junto com o clima. Falar de catástrofe em pleno Carnaval, soa deslocado, incomoda. Dá vontade de silenciar o mensageiro. Este é também um indicador da inconveniência da mudança climática: atropela datas comemorativas, rituais, férias, momentos solenes, enfim, os eventos que ajudam a conferir identidade e conexão à sociedade. Poderia ter acontecido em meio a uma conquista de Copa, a uma véspera de Natal.
Com a mesma falta de cerimônia que a economia invadiu os ciclos da natureza, o clima passa a fazer intervenções na vida afetiva da sociedade. E a cada um será permitido dizer “bobagem”, “coincidência”, até que chegue a sua vez de ter a experiência de corpo presente, que é sempre mais contundente do que os discursos negacionistas.
A perturbação dos afetos no cotidiano vai se revelando na ansiedade que une memória e imaginário futuro. Lembrar do que foi e ter receio do que pode vir modifica a qualidade de presença e o arranjo emocional das pessoas.
Mais ou menos como a ideia de Marshall McLuhan de que o meio é a mensagem. O pensador da comunicação avisava que a introdução de qualquer nova tecnologia, especialmente as comunicativas, levavam a uma mudança de sensorium, ou seja, de capacidade de perceber, interagir, sentir, expressar-se na vida.
No caso do clima, o meio é o próprio ambiente. Conforme suas alterações vão se tornando mais evidentes no cotidiano, modificam simultaneamente os modos de ser da sociedade. O modo como essa modificação afetiva acontece é indefinido, faz parte do campo da incerteza, assim como o próprio clima.
Há sempre a possibilidade que inspire novas conexões e não apenas dissociações. Um exemplo típico dessa potência é como situações de tragédia ou privação em comunidades vulneráveis levam a impulsos de cooperação e ao fortalecimento de redes de apoio. Neste sentido, precisamos estar tão atentos, abertos e criativos à construção de novos arranjos afetivos na era da mudança climática, assim como estaremos cada vez mais dedicados às mudanças estruturais que ela nos impõe.
*Comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)