Não falamos aqui do corpo-invólucro na acepção cartesiana, mas aquele que integra “dentro” e “fora”, percebe e determina a temporalidade
O fim de um ano e o começo do outro são um período de verdadeiro laboratório sobre o Tempo para muita gente. No prazo de alguns dias, vamos da correria beirando a insanidade à pausa, que às vezes custa a ser assimilada, até que nos acomodamos naquele ócio irrepreensível em que os dias parecem ter a duração do solstício boreal. Conversar, contemplar, descansar, divagar, ler, movimentar-se, ouvir, degustar são ações que ganham atenção diferente nos dias de ócio, e determinam como “passamos o tempo” nesse período. Trabalhar, dirigir, informar-se, digitar, apressar-se, programar, reclamar, preocuparse, engolir, pular (…da cama) são verbos que parecem mais representativos de como “usamos o tempo” no restante do ano.
Nas duas situações, temos um mediador comum da relação com o tempo: o corpo. Não o corpo-invólucro da concepção cartesiana, que apenas carrega órgãos e sustenta funções biológicas, mas o corpo que é cada um de nós, que integra “dentro” e “fora” em sensações, experiências, reflexões. Se o tempo cronometrado só existe no relógio, a percepção individual do tempo se forma mesmo em acontecimentos, ações, sabores, texturas, cheiros, sentimentos, ideias. É aí que o transcorrer de uma hora no mecanismo de ponteiros pode ter para nós durações e intensidades tão diferentes, dependendo da situação em que o corpo se encontra e das percepções que se operam.
O filósofo francês Merleau-Ponty falou em “carne do tempo”. O termo faz parte da ressignificação do corpo promovida pelo filósofo a partir do pensamento fenomenológico*: é o corpo humano e não a consciência que percebe o mundo onde habita [1]. E, se o corpo é o contato com o mundo, a percepção do tempo acontece por meio do corpo.
*Tem origem na segunda metade do século XIX como alternativa ao Positivismo. Destaca-se pela descrição e compreensão dos fenômenos que se apresentam à percepção e pelo fim da separação entre sujeito e objeto – o corpo é as duas coisas ao mesmo tempo
Podemos recorrer ao fenômeno da linguagem para atestar essa relação. Expressões populares nos dão bons exemplos de como quem faz o tempo é o corpo. Quem já não ouviu ou falou sobre o “peso do tempo”? A expressão não diz respeito a uma balança marcando quilos de horas, mas sim remete à sensação física que é própria do corpo sob a força da gravidade, seja em relação a si, seja em relação a um objeto. Em miúdos: é o corpo que revela o peso do tempo. Outra: “o tempo cura todas as feridas”. Não só remete ao corpo como lugar da metáfora como indica que a mudança de percepção nos leva a outro entendimento de situações que possam ter causado mágoa. Ou ainda “o tempo se arrasta”, que usa o verbo arrastar-se que é próprio do corpo para indicar a percepção de que uma situação não muda ou não chega a um desfecho.
Essas expressões todas falam da relação do ser humano com o tempo. Não um tempo exterior a ele, ao qual se engaja como quem entra num ônibus, mas um tempo que é determinado pela existência. A existência que acontece pelo corpo. Mas já estou me deixando levar pela filosofia de novo. Vamos nos ater aos exemplos que estão bem mais próximos e podem soar bem mais íntimos e compreensíveis.
Primeiro um exemplo dolorido, mas contundente. O terremoto que acometeu o Haiti trouxe de imediato um novo universo de estímulos e percepções para as pessoas que foram surpreendidas pelo tremor. Não terão sido a espera, a dor, a solidão, o desamparo, a perda, a desorientação do corpo elementos fundamentais para determinar a percepção de tempo a cada um dos sobreviventes sob os escombros até o momento em que os bombeiros alcançaram seu corpo?
Outra imagem mais feliz foi dada por uma amiga que escala montanhas e esteve dez dias se embrenhando pela Serra do Cipó, em Minas Gerais. Ela contou que houve ocasiões de se surpreender com a chegada do fim do dia, após ter avançado apenas 30 metros durante uma escalada. A percepção da altura, a relação de troca com a sua parceira de montanha, a experiência do medo, a contemplação se imbricaram na carne do tempo, uma vivência de grande intensidade que “não viu” passar as horas .
E as histórias de quem vem de férias em praias desertas da Bahia? A relação de um corpo paulistano encarnado de cidade, por exemplo, com o corpo local encarnado da calmaria da paisagem causa muitas vezes sensação de descompasso. Na volta a São Paulo, o descompasso entre esta última percepção de tempo e a da vivência na cidade.
Dias e noites se passarão e eventualmente a percepção do tempo para pessoas que vivenciam algo fora da rotina estará outra vez às voltas com experiências e estímulos mais conhecidos. Mas as percepções de outra temporalidade se mantêm corporificadas. São indicações de que é o corpo quem faz o Tempo. E determina em cada um de nós a duração, a finitude, a impermanência.
[1] Tome nota: Em O Primado da Percepção e Suas Consequências Filosóficas, Merleau-Ponty escreve: “(…) a experiência da percepção nos põe em presença do momento em que se constituem para nós as coisas, as verdades, os bens (…) Não se trata de reduzir o saber humano ao sentir, mas de assistir ao nascimento desse saber (…)”
*Coordenador de comunicação do GVCes, bacharel em Relações Internacionais com especialização em jornalismo e bailarino contemporâneo.