A trama da reprodução do cuco pode ser considerada cruel do ponto de vista ético, mas há um quê de beleza na sua dança de evolução e adaptação com o rouxinol
Não sei por onde andei todos esses anos, mas até recentemente eu não tinha a mínima ideia de como o cuco – um pássaro comum em todos os cantos do mundo – engendra sua reprodução e garante espaço sob o sol. Foi assistindo à TV, aquele velho aparelho no canto da sala, que aprendi por que os cucos são, literalmente, estranhos no ninho. A intrigante estratégia arquitetada por esse pássaro tão pouco especial me roubou a paz nos dias que se seguiram. Se, como dizia minha avó, a natureza é perfeita, deve haver algo de belo na trama do cuco. Mas onde? Como?
Senão, vamos aos fatos. A espécie mais comum de cuco habita o chamado Velho Mundo, basicamente a Europa, e é enaltecido em verso e prosa pois seu canto anuncia a chegada da primavera. Apesar do bom augúrio, o pássaro migra da longínqua África – onde passa os invernos – com uma missão que pode ser considerada perversa. O cuco nunca choca seus próprios ovos ou cuida de seus filhotes – em vez disso, dedica energia a colocar quantos ovos for possível em ninhos de pássaros menores, em particular uma espécie de rouxinol e, então, asas pra que te quero. Uma série de artimanhas garante que o rouxinol não apenas choque o ovo alheio, como alimente o filhote até que ele também possa bater asas.
O cuco bota, em cada ninho, um ovo idêntico ao do rouxinol e, para evitar que os donos dos ninhos reconheçam que é falso, jogam um dos ovos originais para fora. Dos filhotes do rouxinol, um já era. O casal de rouxinol, sem perceber a intrusão, põe-se a chocar os ovos. O filhote do cuco nasce antes do que os do rouxinol e, recém-saído da casca, cego e pelado, joga os demais ovos para fora do ninho. Tem mais. O danado imita o canto do filhote de rouxinol para assegurar que os pais adotivos, a despeito de sua aparência dessemelhante e seu tamanho Desmesurado, continuem a alimentá-lo.
Parece que só tem para o cuco, mesmo. Ele é capaz de cantar muito mais rapidamente do que o filhote do rouxinol, dando a impressão de que há mais de uma boca a alimentar. E assim o pequeno cuco recebe comida suficiente para ultrapassar em tamanho o de seus pais adotivos – chega a ser dez vezes maior. Quando finalmente se vai, o saldo para os rouxinóis é desolador: nenhum filhote e uma temporada de reprodução desperdiçada.
Boquiaberta ao fim do documentário sobre os hábitos reprodutivos do cuco, logo me pus a pesquisar. Como pode ser que o rouxinol não reaja? E o que levou o cuco a desenvolver tão peculiar forma de reprodução? Descritos inicialmente pelo naturalista inglês Edward Jenner no final do século XVIII, os truques do cuco foram atribuídos à migração que a espécie realiza até a África. Segundo conta Nicholas Davies, pesquisador da Universidade de Cambridge e especialista em parasitismo de ninhada, a ideia de Jenner era que a longa viagem roubaria do cuco o tempo para construir ninho, chocar ovos e alimentar filhotes. Naturalistas da mesma época buscaram outros possíveis motivos para tão chocante parasitismo, mas a chave veio com Charles Darwin e A Origem das Espécies. É a evolução, estúpido.
As características que tornam mais provável que um organismo sobreviva e se reproduza são selecionadas naturalmente e se tornam mais comuns naquela determinada população ao longo do tempo. Darwin apontou a vantagem que o parasitismo de ninhada traz ao cuco: sem os deveres de construir ninho, chocar e alimentar filhotes, ele é capaz de colocar mais ovos, aumentando suas chances de sucesso na reprodução. Para Darwin, a questão era: por que não há mais espécies que exploram aquelas que vivem honestamente de seus próprios ninhos?
Davies e outros pesquisadores mostraram mais recentemente que, no caso do cuco e do rouxinol, assim como outros parasitas de ninhada, trata-se de coevolução – um processo recíproco de mudança evolucionária entre duas espécies. À medida que o rouxinol desenvolve defesas contra o parasita, o cuco adapta-se a elas. Nessa dança de evolução e adaptação, os melhores parasitas são aqueles capazes de manter seus hospedeiros vivos. Afinal, o que seria do cuco sem o rouxinol? Talvez aí esteja a beleza da coisa.
Culturalmente, o homem absorveu o comportamento do cuco. Seus truques foram mencionados em várias peças de Shakespeare e inspiraram o título do filme Um Estranho no Ninho. Em várias línguas, deriva de cuco a palavra para o marido traído que cria filhos de outrem. Ética e moralmente, o comportamento desse pássaro tão comum pode causar espanto pela crueldade. Mas o cuco está apenas sendo cuco. Assim como o homem pode apenas ser homem.[:en] A trama da reprodução do cuco pode ser considerada cruel do ponto de vista ético, mas há um quê de beleza na sua dança de evolução e adaptação com o rouxinol
Não sei por onde andei todos esses anos, mas até recentemente eu não tinha a mínima ideia de como o cuco – um pássaro comum em todos os cantos do mundo – engendra sua reprodução e garante espaço sob o sol. Foi assistindo à TV, aquele velho aparelho no canto da sala, que aprendi por que os cucos são, literalmente, estranhos no ninho. A intrigante estratégia arquitetada por esse pássaro tão pouco especial me roubou a paz nos dias que se seguiram. Se, como dizia minha avó, a natureza é perfeita, deve haver algo de belo na trama do cuco. Mas onde? Como?
Senão, vamos aos fatos. A espécie mais comum de cuco habita o chamado Velho Mundo, basicamente a Europa, e é enaltecido em verso e prosa pois seu canto anuncia a chegada da primavera. Apesar do bom augúrio, o pássaro migra da longínqua África – onde passa os invernos – com uma missão que pode ser considerada perversa. O cuco nunca choca seus próprios ovos ou cuida de seus filhotes – em vez disso, dedica energia a colocar quantos ovos for possível em ninhos de pássaros menores, em particular uma espécie de rouxinol e, então, asas pra que te quero. Uma série de artimanhas garante que o rouxinol não apenas choque o ovo alheio, como alimente o filhote até que ele também possa bater asas.
O cuco bota, em cada ninho, um ovo idêntico ao do rouxinol e, para evitar que os donos dos ninhos reconheçam que é falso, jogam um dos ovos originais para fora. Dos filhotes do rouxinol, um já era. O casal de rouxinol, sem perceber a intrusão, põe-se a chocar os ovos. O filhote do cuco nasce antes do que os do rouxinol e, recém-saído da casca, cego e pelado, joga os demais ovos para fora do ninho. Tem mais. O danado imita o canto do filhote de rouxinol para assegurar que os pais adotivos, a despeito de sua aparência dessemelhante e seu tamanho Desmesurado, continuem a alimentá-lo.
Parece que só tem para o cuco, mesmo. Ele é capaz de cantar muito mais rapidamente do que o filhote do rouxinol, dando a impressão de que há mais de uma boca a alimentar. E assim o pequeno cuco recebe comida suficiente para ultrapassar em tamanho o de seus pais adotivos – chega a ser dez vezes maior. Quando finalmente se vai, o saldo para os rouxinóis é desolador: nenhum filhote e uma temporada de reprodução desperdiçada.
Boquiaberta ao fim do documentário sobre os hábitos reprodutivos do cuco, logo me pus a pesquisar. Como pode ser que o rouxinol não reaja? E o que levou o cuco a desenvolver tão peculiar forma de reprodução? Descritos inicialmente pelo naturalista inglês Edward Jenner no final do século XVIII, os truques do cuco foram atribuídos à migração que a espécie realiza até a África. Segundo conta Nicholas Davies, pesquisador da Universidade de Cambridge e especialista em parasitismo de ninhada, a ideia de Jenner era que a longa viagem roubaria do cuco o tempo para construir ninho, chocar ovos e alimentar filhotes. Naturalistas da mesma época buscaram outros possíveis motivos para tão chocante parasitismo, mas a chave veio com Charles Darwin e A Origem das Espécies. É a evolução, estúpido.
As características que tornam mais provável que um organismo sobreviva e se reproduza são selecionadas naturalmente e se tornam mais comuns naquela determinada população ao longo do tempo. Darwin apontou a vantagem que o parasitismo de ninhada traz ao cuco: sem os deveres de construir ninho, chocar e alimentar filhotes, ele é capaz de colocar mais ovos, aumentando suas chances de sucesso na reprodução. Para Darwin, a questão era: por que não há mais espécies que exploram aquelas que vivem honestamente de seus próprios ninhos?
Davies e outros pesquisadores mostraram mais recentemente que, no caso do cuco e do rouxinol, assim como outros parasitas de ninhada, trata-se de coevolução – um processo recíproco de mudança evolucionária entre duas espécies. À medida que o rouxinol desenvolve defesas contra o parasita, o cuco adapta-se a elas. Nessa dança de evolução e adaptação, os melhores parasitas são aqueles capazes de manter seus hospedeiros vivos. Afinal, o que seria do cuco sem o rouxinol? Talvez aí esteja a beleza da coisa.
Culturalmente, o homem absorveu o comportamento do cuco. Seus truques foram mencionados em várias peças de Shakespeare e inspiraram o título do filme Um Estranho no Ninho. Em várias línguas, deriva de cuco a palavra para o marido traído que cria filhos de outrem. Ética e moralmente, o comportamento desse pássaro tão comum pode causar espanto pela crueldade. Mas o cuco está apenas sendo cuco. Assim como o homem pode apenas ser homem.