O socioambiental chega às beiradas da moda, aquém de outros setores. Quão sustentável pode ser o mundo dos desejos descartáveis?
Foi um dia iluminado não só para os padrões do outono paulistano, mas também, e especialmente, para o largo horizonte fashionista do Brasil.
Dezenas de jornalistas se acomodaram no prédio da Bienal, na capital paulista, para testemunhar o lançamento oficial da 29ª edição do São Paulo Fashion Week (SPFW). Do púlpito, o criador do evento, Paulo Borges, anunciou o início de uma nova trajetória, balizada por reivindicar para a moda o reconhecimento como vetor de desenvolvimento nacional.
O tema do evento, Anima – “alma”, em latim – caracterizou a aura festiva para um setor que, nos últimos 15 anos, passou de quase inexistente para uma indústria de R$ 47 bilhões de reais, o que representa 3,5% do PIB, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). E por falar em alma, Borges saiu-se com essa: “A nossa é a única semana de moda no mundo que tem a sustentabilidade como bandeira”.
Procurado para explicar como a sustentabilidade toca a alma do SPFW, Borges começou explicando que a maior parte do material de infraestrutura do evento é reaproveitada continuamente. Mas parou por aí. “Nós também reduzimos o consumo de energia.” Em quanto? E como? “Não sei, isso aí você pergunta para a assessoria.” E desde quando? “(Fulano), quando a gente começou com isso mesmo?”. “Em 2007”, socorreu o assistente. Seguindo a recomendação de Borges, Página 22 procurou a assessoria de imprensa do evento para conhecer os detalhes, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Que o pai da moda brasileira não saiba de cor – literalmente, de coração – as nuances de sua própria bandeira é sintoma insuficiente para analisar o panorama completo. Se a moda no Brasil quer ser levada a sério como indústria, o que vamos esboçar nesta reportagem é uma análise do setor à luz das melhores práticas corporativas, aqui e alhures. Enquanto isso, refletir até que ponto esse mundo, que pressupõe (na alma) descarte constante de desejos de consumo, pode ser inoculado pelo vírus sustentável.
Transparência
Um dos sinais mais significativos para uma empresa que confia no seu processo de sustentabilidade é a disposição em compartilhar metas e resultados com o público. É a salutar prática de reportar, de preferência, conforme padrões estabelecidos por uma terceira parte confiável.
Nos últimos dez anos, 5 mil empresas apresentaram relatórios no modelo Global Reporting Initiative (GRI), o mais prestigiado no mundo. Dessas, apenas 21 são do setor têxtil, ou seja, menos de 0,5%. E isso não inclui apenas marcas de moda, mas também de outros segmentos, como tapeçaria. Nenhuma delas é brasileira.
A lista do GRI não é um ranking de mocinhos, já que os setores mais representados são os mais controversos, como mineração, energia, petroquímica. A interpretação razoável é de que saíram na frente as indústrias que vêm sendo pressionadas há mais tempo. “Não tenho dúvida disso. A moda ainda não foi cobrada pela opinião pública como outros setores. Se você fala de uma Nike, por exemplo, que também está inserida na moda, a coisa é diferente”, explica Hélio Silva, professor de publicidade do Senac e autor do livro Marketing: uma visão crítica.
Nos anos 90, a Nike teve de se virar com a bombástica denúncia de trabalho infantil e escravo em fábricas terceirizadas na Indonésia. O escândalo não poupou o astro da NBA, então garoto-propaganda da marca, Michael Jordan, que se viu tendo de explicar por que o tênis da linha Air Jordan era fabricado por meninas de 11 anos remuneradas com US$ 0,22 por hora.
O episódio motivou a primeira campanha global de boicote por parte de consumidores e levou a empresa a implementar um rígido controle das condições de trabalho em sua cadeia produtiva. A partir daí, a Nike se lançou numa corrida para liderar as inovações em sustentabilidade, trazendo a reboque a concorrência. Além dela, Puma, Adidas e Timberland* são os nomes mais frequentes do mundo da moda nos anais do GRI.
*Ambas as empresas, além da Nike, foram citadas no relatório A Farra do Boi, do Greenpeace, que demonstrou a ligação das grifes com o couro proveniente de áreas de desmatamento na Amazônia.
Esse modelo, no entanto, é também o mais complexo e mais custoso. E a moda brasileira, que já foi chamada de adolescente pela papisa do estilo, Gloria Kalil, apresenta uma característica peculiar. Grandes grifes da moda fashion, aquela das passarelas, são na verdade pequenas empresas recém-chegadas à puberdade, cujos estilistas fundadores são frequentemente os diretores criativos, financeiros, de operações e únicos porta-vozes.
Por isso decidimos checar iniciativas nacionais e mais acessíveis de report. O já extinto Modelo de Balanço Social do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) conquistou 367 empresas. Apenas três foram do setor de moda: Azaléia, Marisol e Bibi Calçados.
A assessoria do Instituto Ethos não conseguiu fazer um levantamento conclusivo sobre empresas de moda que usam seus indicadores de responsabilidade social (esses dados são mantidos em sigilo pela entidade). “Pode ser devido ao fato de poucas empresas (ou nenhuma) do segmento terem respondido”, especulou a assessora de imprensa, Cristina Spera.
Sob os flashes
Nas passarelas brasileiras, a moda é desfilar materiais menos impactantes, como madeira de demolição, algodão orgânico, corantes artesanais e upcycling, além de eventuais parcerias com cooperativas e comunidades carentes. São escolhas ainda minoritárias.
O problema maior é que quase nenhuma dessas ações tem propostas de longo prazo. “As iniciativas são soltas, pequeninas e perdem força. Hoje se faz uma parceria e amanhã pode ser que não tenha mais”, diz a stylist Chiara Gadaleta, apresentadora do programa Tamanho Único, do canal GNT, e uma das vozes dedicadas a trazer o debate da sustentabilidade para o setor. “Esse movimento está só começando, a gente ainda tem tudo por fazer”.
Até a poderosa Osklen, uma das referências do mundo da moda nesse quesito, absteve-se do uso de materiais ambientalmente responsáveis na temporada de verão em 2009. Com o mote “samba”, a coleção esbanjava brilhos sintéticos. À imprensa especializada o estilista Oskar Metsavaht teria dito que nada pode ser mais importante que a liberdade criativa.
O fundador da marca Osklen também preside o Instituto-E, entidade dedicada à pesquisa de novos materiais de baixo impacto ambiental e fornecedores responsáveis. A sua grife é a única brasileira que produziu um inventário de carbono e depois reduziu emissões com a compra de créditos no mercado voluntário, uma política considerada avançada até para grandes empresas.
A reportagem procurou estilistas referendados nesta seara: Ronaldo Fraga, Isabela Capeto, Alexandre Herchcovitch e Oskar Metsavaht, além do gerente de projetos da Associação Brasileira de Estilistas (Abest), Evilásio Miranda. Ninguém respondeu ao pedido de entrevista.
O destaque filantrópico da última temporada ficou por conta da Iódice, que divulgou ter adotado uma comunidade extrativista na Amazônia. Cada peça vendida reverteria irrisório R$ 1 para essas famílias. “É uma estratégia de marketing equivocada”, diz Hélio Silva. “É fazer sombra com o chapéu e o dinheiro dos outros.”
“É a penitência. A maneira mais primitiva de se fazer responsabilidade social”, sentencia Mario Monzoni, coordenador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas. Para Monzoni, a moda deveria ser analisada pelos mesmos crivos de qualquer empresa. Significa trabalhar com indicadores de gestão na cadeia de custódia que contemplem não apenas o componente ambiental, mas principalmente o social, com foco na distribuição equitativa dos benefícios. “A gente vai ficar fazendo saia de PET ou estabelecer relações mais civilizadas na cadeia de suprimentos?”, provoca.
Acelerado
Esse é um desafio especialmente voltado para o segmento conhecido como fast fashion. Grandes lojas que vendem produtos de preço baixo e qualidade idem aumentam muito o descarte de roupas, que não podem ser reaproveitadas. É tão fast que enquanto um fabricante de celular chega a lançar quatro modelos novos por mês, por exemplo, uma grande rede varejista renova seus cabides até duas vezes por semana.
Para Patricia Sant’Anna, doutora em história da arte e fundadora do Grupo de Estudos em Arte, Design e Moda da Unicamp, a postura de responsabilidade corporativa encontra obstáculos na maneira como a indústria se organizou: “O processo produtivo da moda é o mais terrível, o mais capitalista. Se você olhar as etiquetas de uma rede como a Zara, verá que as roupas vêm de diversos países. É onde for mais barato. São milhões de indústrias e materiais envolvidos. Quando o setor é tão pulverizado, é mais difícil falar em responsabilidade”.
O resultado são os ainda constantes casos de trabalho análogo à escravidão. Em março, o Ministério do Trabalho constatou flagrante numa oficina de costura no Bom Retiro, em São Paulo, que fornecia roupas para a rede Marisa. Procurada, a empresa não se manifestou. Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, diz que os magazines estão procurando se aprumar, mas ainda em processos pouco transparentes.
“O grande problema é a autofiscalização. Eles podem dizer que têm um sistema de monitoramento, mas quem prova? Por outro lado, se as empresas assinam o Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo, nós rasgamos a cadeia de cima a baixo”, explica. O único representante do setor a assinar o pacto foi a Abit. Mas, como diz Sakamoto, a entidade não pode assegurar o comportamento de todos os seus associados.
Origens
Se o mundo está tomado pelo mal do consumismo, como essa febre começou? Neste caso, o culpado é mesmo o mordomo, o suspeito mais óbvio. Foi com o vestuário. No livro O Império do Efêmero, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky descreve como a distinção social por meios das vestes, nas nascentes sociedades burguesas do fim da Idade Média, foi a primeira manifestação do amor da humanidade pelas frivolidades passageiras. O resto da história é conhecido: a lógica da moda se espalhou para todos os campos de consumo.
Mas apenas a ostentação não é o bastante para explicar um fenômeno essencialmente moderno. As sociedades arcaicas também tinham seus estilos e adornos, mas sempre conforme padrões estabelecidos pela tradição. A toga-túnica do Antigo Egito, por exemplo, manteve-se praticamente inalterada por 15 séculos.
Segundo Lipovetsky, a moda como conhecemos surgiu no embrião das sociedades democráticas, do reconhecimento das individualidades, da não submissão aos valores do passado. “Numa era reciclada pela forma moda, a história é mais do que nunca aberta”, escreveu.
Qualquer semelhança com a bandeira de ruptura empunhada pela sustentabilidade é intenção declarada desta reportagem. A mesma moda de cima para baixo, que submete pessoas a um ciclo incessante de consumo segundo o gosto de gurus, também é a moda de baixo para cima: plural, libertária, afeita à tolerância. Poderia ser uma aliada em lugar de uma inimiga?
Patricia Sant’anna acha que sim. Primeiro, porque a moda já demonstrou larga capacidade de absorver críticas e reinventar-se. Como exemplo a professora cita o espartilho, que reinou absoluto durante 400 anos e se tornou extinto em menos de 20, graças à requalificação das mulheres na sociedade. O movimento hippie, que inaugurou a condenação aos materiais sintéticos e promoveu pela primeira vez o consumo de segunda mão, hoje se vê representado não apenas na ideia de “moda sustentável”, mas também no estilo dos trend setters (personalidades que ditam tendências). Segundo Patricia, são basicamente pessoas que compram em brechó.
A professora ainda ressalta que, numa sociedade complexa formada por anônimos, as roupas compõem uma comunicação muda extremamente poderosa. “Ostentar a sustentabilidade é um primeiro passo para que ela entre na vida e no cotidiano das pessoas. Sem a moda isso não seria possível.”
Se o universo que deu à luz o consumismo desenfreado será capaz de desacelerar ainda é segredo para todos. Um bom começo seria que o setor no Brasil e no mundo cuidasse para abandonar a lanterna das melhores práticas corporativas. Tudo se resume ao seguinte mantra: medir, monitorar e reportar. Fica a dica.
(Ana Cândida Zanesco, do Instituto Ecotece, fala sobre o “vestir consciente”, muito além do mundo da moda. Saiba mais aqui)
————\————
O luxo por baixo
Em 2007, o relatório Deeper Luxury, produzido pelo WWF, conclui que as grifes de luxo estavam muito atrás em termos de desempenho socioambiental e governança. Um dos erros recorrentes era focar na filantropia e no gerenciamento de reputação em lugar de medidas para reduzir riscos e impactos diretos.
Dez grandes corporações foram analisadas de A (melhor) a F (pior) em comparação com os líderes em sustentabilidade de outros setores. A americana L’Oréal obteve a melhor nota, um C+. As italianas Bvlgari e Todds ficaram com F.
Hoje, esse mercado é dominado por três gigantes conglomerados: LVMH (Louis Vuitton, Fendi, Dior), PPR (Gucci, Yves Saint-Laurent, Stella McCartney) e Richemont (Cartier, Piaget, Montblanc). Apenas o último já apresentou relatório de sustentabilidade pelo modelo Global Reporting Initiative.[:en]O socioambiental chega às beiradas da moda, aquém de outros setores. Quão sustentável pode ser o mundo dos desejos descartáveis?
Foi um dia iluminado não só para os padrões do outono paulistano, mas também, e especialmente, para o largo horizonte fashionista do Brasil.
Dezenas de jornalistas se acomodaram no prédio da Bienal, na capital paulista, para testemunhar o lançamento oficial da 29ª edição do São Paulo Fashion Week (SPFW). Do púlpito, o criador do evento, Paulo Borges, anunciou o início de uma nova trajetória, balizada por reivindicar para a moda o reconhecimento como vetor de desenvolvimento nacional.
O tema do evento, Anima – “alma”, em latim – caracterizou a aura festiva para um setor que, nos últimos 15 anos, passou de quase inexistente para uma indústria de R$ 47 bilhões de reais, o que representa 3,5% do PIB, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). E por falar em alma, Borges saiu-se com essa: “A nossa é a única semana de moda no mundo que tem a sustentabilidade como bandeira”.
Procurado para explicar como a sustentabilidade toca a alma do SPFW, Borges começou explicando que a maior parte do material de infraestrutura do evento é reaproveitada continuamente. Mas parou por aí. “Nós também reduzimos o consumo de energia.” Em quanto? E como? “Não sei, isso aí você pergunta para a assessoria.” E desde quando? “(Fulano), quando a gente começou com isso mesmo?”. “Em 2007”, socorreu o assistente. Seguindo a recomendação de Borges, Página 22 procurou a assessoria de imprensa do evento para conhecer os detalhes, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Que o pai da moda brasileira não saiba de cor – literalmente, de coração – as nuances de sua própria bandeira é sintoma insuficiente para analisar o panorama completo. Se a moda no Brasil quer ser levada a sério como indústria, o que vamos esboçar nesta reportagem é uma análise do setor à luz das melhores práticas corporativas, aqui e alhures. Enquanto isso, refletir até que ponto esse mundo, que pressupõe (na alma) descarte constante de desejos de consumo, pode ser inoculado pelo vírus sustentável.
Transparência
Um dos sinais mais significativos para uma empresa que confia no seu processo de sustentabilidade é a disposição em compartilhar metas e resultados com o público. É a salutar prática de reportar, de preferência, conforme padrões estabelecidos por uma terceira parte confiável.
Nos últimos dez anos, 5 mil empresas apresentaram relatórios no modelo Global Reporting Initiative (GRI), o mais prestigiado no mundo. Dessas, apenas 21 são do setor têxtil, ou seja, menos de 0,5%. E isso não inclui apenas marcas de moda, mas também de outros segmentos, como tapeçaria. Nenhuma delas é brasileira.
A lista do GRI não é um ranking de mocinhos, já que os setores mais representados são os mais controversos, como mineração, energia, petroquímica. A interpretação razoável é de que saíram na frente as indústrias que vêm sendo pressionadas há mais tempo. “Não tenho dúvida disso. A moda ainda não foi cobrada pela opinião pública como outros setores. Se você fala de uma Nike, por exemplo, que também está inserida na moda, a coisa é diferente”, explica Hélio Silva, professor de publicidade do Senac e autor do livro Marketing: uma visão crítica.
Nos anos 90, a Nike teve de se virar com a bombástica denúncia de trabalho infantil e escravo em fábricas terceirizadas na Indonésia. O escândalo não poupou o astro da NBA, então garoto-propaganda da marca, Michael Jordan, que se viu tendo de explicar por que o tênis da linha Air Jordan era fabricado por meninas de 11 anos remuneradas com US$ 0,22 por hora.
O episódio motivou a primeira campanha global de boicote por parte de consumidores e levou a empresa a implementar um rígido controle das condições de trabalho em sua cadeia produtiva. A partir daí, a Nike se lançou numa corrida para liderar as inovações em sustentabilidade, trazendo a reboque a concorrência. Além dela, Puma, Adidas e Timberland* são os nomes mais frequentes do mundo da moda nos anais do GRI.
*Ambas as empresas, além da Nike, foram citadas no relatório A Farra do Boi, do Greenpeace, que demonstrou a ligação das grifes com o couro proveniente de áreas de desmatamento na Amazônia.
Esse modelo, no entanto, é também o mais complexo e mais custoso. E a moda brasileira, que já foi chamada de adolescente pela papisa do estilo, Gloria Kalil, apresenta uma característica peculiar. Grandes grifes da moda fashion, aquela das passarelas, são na verdade pequenas empresas recém-chegadas à puberdade, cujos estilistas fundadores são frequentemente os diretores criativos, financeiros, de operações e únicos porta-vozes.
Por isso decidimos checar iniciativas nacionais e mais acessíveis de report. O já extinto Modelo de Balanço Social do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) conquistou 367 empresas. Apenas três foram do setor de moda: Azaléia, Marisol e Bibi Calçados.
A assessoria do Instituto Ethos não conseguiu fazer um levantamento conclusivo sobre empresas de moda que usam seus indicadores de responsabilidade social (esses dados são mantidos em sigilo pela entidade). “Pode ser devido ao fato de poucas empresas (ou nenhuma) do segmento terem respondido”, especulou a assessora de imprensa, Cristina Spera.
Sob os flashes
Nas passarelas brasileiras, a moda é desfilar materiais menos impactantes, como madeira de demolição, algodão orgânico, corantes artesanais e upcycling, além de eventuais parcerias com cooperativas e comunidades carentes. São escolhas ainda minoritárias.
O problema maior é que quase nenhuma dessas ações tem propostas de longo prazo. “As iniciativas são soltas, pequeninas e perdem força. Hoje se faz uma parceria e amanhã pode ser que não tenha mais”, diz a stylist Chiara Gadaleta, apresentadora do programa Tamanho Único, do canal GNT, e uma das vozes dedicadas a trazer o debate da sustentabilidade para o setor. “Esse movimento está só começando, a gente ainda tem tudo por fazer”.
Até a poderosa Osklen, uma das referências do mundo da moda nesse quesito, absteve-se do uso de materiais ambientalmente responsáveis na temporada de verão em 2009. Com o mote “samba”, a coleção esbanjava brilhos sintéticos. À imprensa especializada o estilista Oskar Metsavaht teria dito que nada pode ser mais importante que a liberdade criativa.
O fundador da marca Osklen também preside o Instituto-E, entidade dedicada à pesquisa de novos materiais de baixo impacto ambiental e fornecedores responsáveis. A sua grife é a única brasileira que produziu um inventário de carbono e depois reduziu emissões com a compra de créditos no mercado voluntário, uma política considerada avançada até para grandes empresas.
A reportagem procurou estilistas referendados nesta seara: Ronaldo Fraga, Isabela Capeto, Alexandre Herchcovitch e Oskar Metsavaht, além do gerente de projetos da Associação Brasileira de Estilistas (Abest), Evilásio Miranda. Ninguém respondeu ao pedido de entrevista.
O destaque filantrópico da última temporada ficou por conta da Iódice, que divulgou ter adotado uma comunidade extrativista na Amazônia. Cada peça vendida reverteria irrisório R$ 1 para essas famílias. “É uma estratégia de marketing equivocada”, diz Hélio Silva. “É fazer sombra com o chapéu e o dinheiro dos outros.”
“É a penitência. A maneira mais primitiva de se fazer responsabilidade social”, sentencia Mario Monzoni, coordenador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas. Para Monzoni, a moda deveria ser analisada pelos mesmos crivos de qualquer empresa. Significa trabalhar com indicadores de gestão na cadeia de custódia que contemplem não apenas o componente ambiental, mas principalmente o social, com foco na distribuição equitativa dos benefícios. “A gente vai ficar fazendo saia de PET ou estabelecer relações mais civilizadas na cadeia de suprimentos?”, provoca.
Acelerado
Esse é um desafio especialmente voltado para o segmento conhecido como fast fashion. Grandes lojas que vendem produtos de preço baixo e qualidade idem aumentam muito o descarte de roupas, que não podem ser reaproveitadas. É tão fast que enquanto um fabricante de celular chega a lançar quatro modelos novos por mês, por exemplo, uma grande rede varejista renova seus cabides até duas vezes por semana.
Para Patricia Sant’Anna, doutora em história da arte e fundadora do Grupo de Estudos em Arte, Design e Moda da Unicamp, a postura de responsabilidade corporativa encontra obstáculos na maneira como a indústria se organizou: “O processo produtivo da moda é o mais terrível, o mais capitalista. Se você olhar as etiquetas de uma rede como a Zara, verá que as roupas vêm de diversos países. É onde for mais barato. São milhões de indústrias e materiais envolvidos. Quando o setor é tão pulverizado, é mais difícil falar em responsabilidade”.
O resultado são os ainda constantes casos de trabalho análogo à escravidão. Em março, o Ministério do Trabalho constatou flagrante numa oficina de costura no Bom Retiro, em São Paulo, que fornecia roupas para a rede Marisa. Procurada, a empresa não se manifestou. Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, diz que os magazines estão procurando se aprumar, mas ainda em processos pouco transparentes.
“O grande problema é a autofiscalização. Eles podem dizer que têm um sistema de monitoramento, mas quem prova? Por outro lado, se as empresas assinam o Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo, nós rasgamos a cadeia de cima a baixo”, explica. O único representante do setor a assinar o pacto foi a Abit. Mas, como diz Sakamoto, a entidade não pode assegurar o comportamento de todos os seus associados.
Origens
Se o mundo está tomado pelo mal do consumismo, como essa febre começou? Neste caso, o culpado é mesmo o mordomo, o suspeito mais óbvio. Foi com o vestuário. No livro O Império do Efêmero, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky descreve como a distinção social por meios das vestes, nas nascentes sociedades burguesas do fim da Idade Média, foi a primeira manifestação do amor da humanidade pelas frivolidades passageiras. O resto da história é conhecido: a lógica da moda se espalhou para todos os campos de consumo.
Mas apenas a ostentação não é o bastante para explicar um fenômeno essencialmente moderno. As sociedades arcaicas também tinham seus estilos e adornos, mas sempre conforme padrões estabelecidos pela tradição. A toga-túnica do Antigo Egito, por exemplo, manteve-se praticamente inalterada por 15 séculos.
Segundo Lipovetsky, a moda como conhecemos surgiu no embrião das sociedades democráticas, do reconhecimento das individualidades, da não submissão aos valores do passado. “Numa era reciclada pela forma moda, a história é mais do que nunca aberta”, escreveu.
Qualquer semelhança com a bandeira de ruptura empunhada pela sustentabilidade é intenção declarada desta reportagem. A mesma moda de cima para baixo, que submete pessoas a um ciclo incessante de consumo segundo o gosto de gurus, também é a moda de baixo para cima: plural, libertária, afeita à tolerância. Poderia ser uma aliada em lugar de uma inimiga?
Patricia Sant’anna acha que sim. Primeiro, porque a moda já demonstrou larga capacidade de absorver críticas e reinventar-se. Como exemplo a professora cita o espartilho, que reinou absoluto durante 400 anos e se tornou extinto em menos de 20, graças à requalificação das mulheres na sociedade. O movimento hippie, que inaugurou a condenação aos materiais sintéticos e promoveu pela primeira vez o consumo de segunda mão, hoje se vê representado não apenas na ideia de “moda sustentável”, mas também no estilo dos trend setters (personalidades que ditam tendências). Segundo Patricia, são basicamente pessoas que compram em brechó.
A professora ainda ressalta que, numa sociedade complexa formada por anônimos, as roupas compõem uma comunicação muda extremamente poderosa. “Ostentar a sustentabilidade é um primeiro passo para que ela entre na vida e no cotidiano das pessoas. Sem a moda isso não seria possível.”
Se o universo que deu à luz o consumismo desenfreado será capaz de desacelerar ainda é segredo para todos. Um bom começo seria que o setor no Brasil e no mundo cuidasse para abandonar a lanterna das melhores práticas corporativas. Tudo se resume ao seguinte mantra: medir, monitorar e reportar. Fica a dica.
(Ana Cândida Zanesco, do Instituto Ecotece, fala sobre o “vestir consciente”, muito além do mundo da moda. Saiba mais aqui)
————\————
O luxo por baixo
Em 2007, o relatório Deeper Luxury, produzido pelo WWF, conclui que as grifes de luxo estavam muito atrás em termos de desempenho socioambiental e governança. Um dos erros recorrentes era focar na filantropia e no gerenciamento de reputação em lugar de medidas para reduzir riscos e impactos diretos.
Dez grandes corporações foram analisadas de A (melhor) a F (pior) em comparação com os líderes em sustentabilidade de outros setores. A americana L’Oréal obteve a melhor nota, um C+. As italianas Bvlgari e Todds ficaram com F.
Hoje, esse mercado é dominado por três gigantes conglomerados: LVMH (Louis Vuitton, Fendi, Dior), PPR (Gucci, Yves Saint-Laurent, Stella McCartney) e Richemont (Cartier, Piaget, Montblanc). Apenas o último já apresentou relatório de sustentabilidade pelo modelo Global Reporting Initiative.