País único em termos naturais, a Austrália destaca-se também pelo rápido ritmo de crescimento das emissões de gases de efeito estufa e pela recusa em participar do Protocolo de Kyoto apesar de sua meta confortável
Por Flavia Pardini
Conhecida pelos endemismos – plantas e animais que só existem ali, como as exóticas Banksias e os vombates –, a Austrália não é única apenas no mundo natural. Em relação à polêmica sobre a participação humana no aquecimento global, os australianos se destacam como um dos poucos países desenvolvidos que, pelo Protocolo de Kyoto, podem aumentar as emissões de gases de efeito estufa e contabilizar os impactos de evitar a derrubada de vegetação para estabelecimento da agricultura. Ainda assim, a Austrália se recusou a ratificar o Protocolo, alegando custos elevados para a economia.
O país é também o primeiro a abraçar a causa das nações tropicais e a apoiar medidas para reduzir o desmatamento. Em março, o governo do primeiro-ministro conservador, John Howard, anunciou um pacote de A$ 200 milhões para ajudar os países em desenvolvimento com pesquisa e monitoramento, além de outras ações para evitar o desflorestamento. A iniciativa australiana é louvável e responde aos anseios de várias nações que apresentaram propostas sobre o assunto na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática.
Mas foi recebida com ceticismo internamente. “Esses A$ 200 milhões saíram do nada”, diz Ray Wills, presidente da Western Australia Sustainable Energy Association. “É apenas uma tentativa de capturar as manchetes.”
Às vésperas de eleições federais em que concorrerá ao quarto mandato – o pleito deve ocorrer até o fi m do ano, mas ainda não há data marcada –, Howard enfrenta uma oposição, encabeçada pelo líder do Partido Trabalhista, Kevin Rudd, engajada na questão ambiental. E, há pouco menos de um ano, começou a sentir a pressão da opinião pública para que a Austrália seja proativa quanto à mudança climática. Uma pesquisa divulgada em março pelo The Chicago Council on Global Affairs mostrou que 92% dos australianos são favoráveis a medidas para enfrentar o aquecimento global e 69% defendem a ação, “mesmo que envolva custos significativos”.
O panorama não era esse há até pouco tempo, lembra Wills. A maré começou a virar, segundo ele, com o lançamento do documentário de Al Gore, Uma Verdade Inconveniente, em abril do ano passado. A partir de então, o público vem sendo bombardeado por notícias externas, do processo movido pelo governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, contra montadoras de automóveis ao anúncio da Virgin Blue de que os lucros da companhia aérea nos próximos dez anos vão para o desenvolvimento de fontes renováveis de energia – sem contar a divulgação dos relatórios do IPCC sobre causas, conseqüências e custos do aquecimento global.
Mas outros dois fatos tiveram peso, acrescenta Wills. No fim de 2006, líderes de 16 congregações religiosas lançaram um documento pedindo ações imediatas para enfrentar o aquecimento global. E, no início de 2007, o australiano Rupert Murdoch, dono do império midiático News Corp., anunciou que pretende tornar suas empresas neutras do ponto de vista de emissões de carbono até 2010. A conseqüência imediata foi uma mudança no tom da cobertura jornalística sobre o aquecimento global, até então cético quanto à necessidade de medidas para conter as emissões australianas.
Na esteira desses acontecimentos, o governo Howard anunciou a iniciativa florestal e acatou, no início de junho, os resultados de uma força-tarefa governamental que recomendou que a Austrália adote um esquema de cap and-trade para emissões de gases de efeito estufa a partir de 2012. Como o esquema funcionará, os limites de emissão e o preço do carbono, entretanto, pairam no ar e os agentes econômicos vivem seu pior pesadelo: a incerteza.
Nem cá nem lá
A Austrália é responsável por 1,43% das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo um estudo da Commonwealth Scientific and Industrial Research Organization (CSIRO), a agência científica nacional. Com pouco menos de 21 milhões de habitantes, ou 0,31% da população mundial (o Brasil tem 2,8%), o país exibe uma das maiores taxas de emissões per capita do mundo, semelhante a outras nações desenvolvidas. Mas há uma particularidade que deixa a Austrália mais próxima dos países em desenvolvimento: o ritmo de crescimento das emissões, duas vezes maior do que a média global.
Além do fato de que a economia australiana exibe taxas robustas de crescimento há 16 anos, há uma questão de eficiência, medida pela intensidade de carbono na geração de energia – quanto menor essa intensidade, mais eficiente o processo. “A intensidade de carbono da energia na Austrália, no momento, é a segunda maior do mundo, comparável à da Índia”, diz Michael Raupach, pesquisador da CSIRO. “A da China é um pouco maior, e a de todos os outros países desenvolvidos é muito menor, em pelo menos 25%”.
A meta negociada pela Austrália na Convenção do Clima permite um aumento de 8% sobre o nível de emissões em 1990 e, como gosta de alardear o governo, provavelmente será cumprida – mas graças à drástica redução na derrubada de árvores, principalmente no estado de Queensland. “A Austrália recebeu uma meta muito leniente sob Kyoto e, junto com a Noruega e a Islândia, é a única nação industrializada que pode aumentar as emissões de gases de efeito estufa”, diz a Australian Conservation Foundation (ACF), uma respeitada organização ambientalista, em seu website.
Na época, os negociadores argumentaram que, embora seja uma nação ocidental, a economia australiana ainda está em desenvolvimento e conta com uma base de recursos naturais em expansão. A Austrália é o maior exportador de carvão do mundo e seus principais clientes são países asiáticos, cujo crescimento econômico mantém a economia global girando e suporta o elevado déficit externo dos EUA e a cultura consumista americana.
Além da meta confortável, o ano-base para cálculo das emissões, 1990, representou um período de taxas elevadas de desmatamento e a Austrália negociou para que elas fossem incluídas em sua linha de base, facilitando o cumprimento. Em 1997, o governo sabia que o ritmo de desmatamento teria de ser controlado, pois crescia a pressão da opinião pública e a exposição do solo começava a causar problemas de salinidade, com a subida dos lençóis freáticos trazendo sal para a superfície e inviabilizando a agricultura.
Em Queensland, no nordeste do país, a derrubada da vegetação nativa acelerou-se na segunda metade do século XX e, segundo a Wilderness Society, nos 50 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial desmatou-se mais do que nos 150 anos anteriores. Era o começo da agricultura na região e, como no Brasil da ditadura militar, o governo incentivava os colonos a “limpar” seus lotes para estabelecer culturas e pastagens, e povoar a região.
Na década de 80, surgiram os primeiros sinais de erosão, poluição e aumento da salinidade da água, e o movimento ambientalista iniciou uma grande campanha para limitar o desmatamento, com algum sucesso na esfera local. Em 1999, enquanto os governos estadual e federal debatiam acirradamente sobre quem deveria compensar os proprietários de terras, mais de 1 milhão de hectares foram desmatados em um episódio que ficou conhecido como “Panic Clearing”.
Ao final do ano, Queensland tinha a sexta maior taxa de desmatamento do mundo. O governo levou alguns anos para estabelecer controles na prática, mas a partir de 2006 tornou-se proibido o corte de vegetação nativa.
Sem a redução nas emissões devido a mudanças uso da terra – o que inclui o desmatamento –, estima-se que o atual inventário australiano mostraria emissões 28% maiores do que em 1990. Em vez disso, as emissões em 2005 eram apenas 2,2% maiores do que em 1990.
Apesar da permissão para aumentar as emissões e contabilizar os efeitos da redução do desmatamento, a Austrália se negou a assinar o Protocolo de Kyoto, alegando altos custos para a economia e uma suposta vantagem dada aos países em desenvolvimento por não possuírem metas de redução de emissões. “Não era com essa meta que eles estavam preocupados”, diz Ray Wills, referindo-se aos negociadores australianos. “Mas com a próxima.”
Sem participar do Protocolo, mas querendo aparecer bonito na fita, os australianos pagaram o preço: não podem se beneficiar dos mecanismos previstos pela ONU para baratear o corte de emissões – a compra, por exemplo, de créditos de carbono gerados a partir de projetos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) em países como o Brasil.
Da floresta para o aterro
Assim como nos EUA, apesar da recusa federal em participar do esforço internacional em
conter as emissões, os estados australianos tomaram a iniciativa. Em New South Wales existe, desde 2003, um esquema de negociação de permissões para emissão gases de efeito estufa. E recentemente todos os estados e territórios firmaram compromisso, com o apoio da oposição, para estabelecer um mercado de carbono até 2010, com a intenção de limitar as emissões em 60% até 2050.
O brasileiro Fabiano Ximenes, desde 1997 na Austrália, espera mudar as regras desse esquema e influenciar os mercados que ainda serão criados. Pesquisador do setor florestal do Departamento de Indústrias Primárias do governo de New South Wales, Ximenes estudou o ciclo de vida de produtos madeireiros e demonstrou que, embora se considere todo o carbono armazenado nas árvores como emitido no momento do corte, parte dele permanece na madeira e nos produtos elaborados a partir dela. “Até mesmo quando esses materiais vão para o aterro sanitário”, diz o pesquisador.
Ele conta que, graças ao debate e às campanhas para reduzir o desmatamento realizados nas décadas de 80 e 90, quase a totalidade da exploração florestal comercial na Austrália hoje é feita de maneira sustentável em áreas manejadas, de responsabilidade dos governos estaduais. Ao analisar as principais espécies de árvores usadas pela indústria, Ximenes observou que 70% do carbono resiste à derrubada, ao corte das toras nas serrarias, e permanece nos produtos – mesas, cadeiras e ripas para construção, entre outros. Ao final de sua vida útil, 90% dos produtos madeireiros acabam nos aterros sanitários australianos, acrescenta o pesquisador. Ali, 30% do carbono permanece na madeira depois de 100 anos. “O tempo que interessa para as mudanças climáticas”, afirma.
A idéia é que as empresas que manejam áreas florestais para fabricação de produtos madeireiros possam contabilizar o carbono que permanece armazenado e recebam créditos por isso, gerando um efeito benéfico em toda a cadeia. Isso traria o reconhecimento, segundo Ximenes, de que o uso da madeira – um recurso renovável – é melhor do ponto de vista ambiental do que o de outros materiais, como tijolos e cimento, que demandam muita energia na fabricação.
Opções em aberto
A pesquisa de Ximenes é apenas uma entre a miríade de iniciativas que tentam reduzir a pegada ecológica australiana. Embora em alguns aspectos a Austrália se assemelhe aos países em desenvolvimento, tem mais opções para agir, diz Michael Raupach, da CSIRO. O setor de renováveis é bem-dotado – o país tem provavelmente um dos territórios mais ensolarados do mundo, ventos abundam e a energia geotérmica é viável – , há oportunidades para conservar energia, e é possível incentivar um design urbano que reduza o uso de combustíveis fósseis. Com grande parte do território em áreas de deserto, 83% da população australiana vive nas cidades, mas, dentro delas, espalha-se por subúrbios cada vez mais longínquos e dependentes do transporte individual.
Mais do que isso, a Austrália é um dos primeiros países a contabilizar impactos econômicos devido ao aquecimento global. A queda de 20% na precipitação de chuvas na região Oeste nos últimos 30 anos – cuja causa são as mudanças nos padrões climáticos globais, aponta o consenso científico – afeta plantações de trigo e vinícolas. Sem sinais do governo sobre a política em relação às emissões de carbono, entretanto, o setor privado prefere não investir, nem mesmo em novas tecnologias.
“A menos que ajamos decisivamente, a Austrália vai permanecer na sombra da economia global das energias limpas, que deve movimentar mais de US$ 225 bilhões em uma década”, diz John Connor, presidente do Climate Institute, grupo independente que visa conscientizar os australianos sobre as mudanças climáticas. Se o cenário pintado por Connor se concretizar, a Austrália realmente será um país único, pelo menos economicamente. Todas as previsões indicam que, com o aumento da temperatura e a mudança nos padrões de chuva, pequenos tesouros do mundo natural australiano desaparecerão, entre eles as Banksias.