O mundo – natureza e sociedade ligadas em um sistema dinâmico – se aproxima de um ponto de bifurcação que pode resultar em colapso ou avanço, de acordo com o filósofo húngaro Ervin László, fundador do Clube de Budapeste. Para avançar, é preciso esquecer as velhas maneiras de pensar e de fazer as coisas, abandonar a idéia de que basta ser bem-sucedido como indivíduo. O pensamento evolutivo necessário para se estabeleça uma nova situação favorável aos seres humanos na biosfera implica mudanças para o indivíduo, sociedade, instituições e empresas. Uma vez alterado, o business não pode mais ser usual, diz László. Autor de 69 livros, ele publica seu mais novo tomo dentro de alguns meses sob o título World Shift – Empowering our Evolution
Por Flavia Pardini
PÁGINA 22: Como deve ser entendido o termo “desenvolvimento sustentável”?
ERVIN LÁSZLÓ: Sustentabilidade é um termo complexo porque não estamos tratando de um estado estático, de simplesmente manter alguma coisa. O termo sustentabilidade geralmente é usado como o equivalente de salvaguardar a natureza, ou manter o status quo. Esse não é um conceito dinâmico e não está correto porque tudo está em evolução, em desenvolvimento. A sustentabilidade tem que ser, realmente, um desenvolvimento que é sustentável. Um tipo de desenvolvimento com o qual podemos arcar hoje que não seja às custas do amanhã.
22: “Desenvolvimento sustentável” é uma expressão melhor do que “sustentabilidade”?
EL: Absolutamente. Eu chamaria de “evolução sustentável” porque há um processo evolutivo acontecendo na biosfera, assim como na sociedade humana. E os dois estão ligados muito intimamente. Estamos interferindo no processo evolutivo da natureza e criando um tipo de evolução artificial que é muito perigoso para os seres humanos, porque se move em direção a um equilíbrio na natureza que não facilita a vida e o desenvolvimento humanos. 22: Mas há também prioridades em termos sociais.
22: Quão urgente é um desenvolvimento que leve a natureza em conta? Há medidas que precisam ser tomadas antes?
EL: É preciso olhar a situação em termos dinâmicos, de evolução sistêmica. Se fizermos isso, veremos que estamos muito perto do ponto – às vezes chamado de tipping point (Entrevista à pág. 56) ou, cientificamente, de ponto de bifurcação – no qual o sistema se torna instável e então muda muito rapidamente. Pode mudar de uma maneira muito ruim, catastrófica, ou pode se dirigir a um novo equilíbrio. Os dois processos, sociedade e natureza, estão ligados, não se pode separá-los, não se pode dizer que é preciso estabilizar a sociedade humana de alguma maneira e esquecer a natureza. Ou que é preciso, de alguma forma, estabilizar o processo natural sem se preocupar com o que acontece com a sociedade. Se não agirmos a tempo e não criarmos um desenvolvimento evolutivo sustentável, o processo muito repentino de bifurcação pode nos levar a uma condição negativa que tornará difícil para a humanidade viver neste planeta, pelo menos com os números e o ritmo de consumo que temos. Somos 6,5 bilhões de pessoas, talvez nem todos esses 6,5 bilhões serão capazes de sobreviver se houver uma mudança no equilíbrio natural.
22: São necessárias ações abrangentes…
EL: …não se pode fazer tudo de uma vez, obviamente. É preciso concentrar- se nos pontos mais críticos. Acho que os pontos mais críticos e perigosos são os processos catalisados pela mudança climática. Eles afetam populações que dependem de precipitação apropriada de chuva para a produção de alimentos, da manutenção do nível do mar, porque, se ele sobe, as áreas em que vivem serão inundadas – há várias centenas de milhões de pessoas nessas áreas, todo o território de Bangladesh, boa parte da Índia, muito próximas ao mar. O fornecimento de água e de alimento já está sob risco, há o risco de inundação, e de repente pode haver grandes populações incapazes de viver do jeito que viviam até agora, haverá migrações massivas, grandes catástrofes humanas e muita gente se dirigindo ao interior.
Já se reconhece que essa é uma ameaça à segurança global. Se acontecer, isso vai pôr em risco outras partes do mundo, que estariam melhor, ou pelo menos não imediatamente ameaçadas pela mudança climática. Então, primeiro temos de criar uma série de instituições e medidas para dar conta das populações mais ameaçadas. Fala-se de espécies ameaçadas, a espécie humana também está ameaçada, mas não ela toda ao mesmo tempo. A parte mais ameaçada da espécie humana pode chegar a meio bilhão de pessoas, e temos que ter certeza de que tal ameaça não atinja o ponto de criar um caos global de segurança.
22: Quem deve liderar essa tarefa? É algo que vai crescer dentro dos indivíduos e se espalhar para a sociedade e as instituições? Ou vice-versa?
EL: A mudança de longo prazo, a mais confiável, é a que acontece na sociedade civil e na mente dos indivíduos. Ela pode ocorrer rápido, mas não tão rápido como os perigos imediatos. Então não se pode dizer que esse é o único ponto a que devemos prestar atenção. É preciso tentar mobilizar a atenção da opinião pública e, portanto, a vontade e a motivação das pessoas para apoiar as medidas necessárias, mas ao mesmo tempo também mobilizar líderes políticos e econômicos que entendam que esses perigos precisam ser enfrentados hoje, tendo em vista o interesse das sociedades, até mesmo o interesse das empresas de hoje.
Estou organizando uma cúpula político-espiritual que vai acontecer em Genebra, em dezembro, para reunir talvez 2 mil a 3 mil indivíduos-chave, líderes, empresários e políticos, para confrontá-los com esse problema e perguntar o que podem fazer. Não individualmente porque mesmo um político ou CEO poderoso não pode agir sozinho, os custos podem ser muito altos, mas juntando uma massa crítica de lideranças que possam dar os primeiros passos. Se esses passos forem dados e a opinião pública souber deles pela mídia e apoiá-los, então vamos juntar mais gente. Mas o processo tem de começar em algum lugar.
22: Por que um encontro político-espiritual?
EL: Porque temos que ter dois tipos de pessoas. Haverá líderes religiosos e espirituais como o Bispo Tutu, o Dalai Lama, o secretário do Estado do Vaticano, talvez 12 ou 15 pessoas desse calibre, a quem estamos pedindo que se juntem, apesar de suas diferenças de religião e fé. Esse assunto é importante independente da fé que você professa ou da cultura a que pertence. A idéia é motivar os seguidores desses líderes a apoiar a ação. Os líderes políticos não serão políticos atuantes, mas ex-ocupantes de cargos políticos importantes. Estamos convidando essas pessoas porque têm mais liberdade de agir, uma vez que não enfrentam mais restrições políticas, mas têm nome. Al Gore, Clinton, Blair, gente desse tipo. Vamos pedir que eles façam uma declaração e chamem a atenção para que haja mais vontade política.
22: Na sua visão a religião tem um papel a desempenhar?
EL: Sim, claro. Por religião queremos dizer as religiões organizadas, instituições como as igrejas, mas também as pessoas que são religiosas, que sentem que há um nível mais profundo de realidade e que podem agir de uma maneira eticamente responsável. Esse nível mais profundo de espiritualidade é o mais importante, e é comum a todas as religiões. Mas para a ação imediata, para catalisar a ação, temos que ter os líderes das religiões organizadas para motivar e encorajar seus fiéis.
22: O senhor acredita que a divulgação dos relatórios do IPCC no início deste ano alterou o estado de coisas e elevou a percepção de que é preciso mudar?
EL: As mudanças necessárias são muito mais radicais do que as que aconteceram até agora. O que está mudando é a consciência, há muito poucas pessoas agora que negam completamente que algo precisa ser feito. As pessoas que tentam preservar o status quo têm interesse maior no sistema como ele é hoje. Essas estão tentando reduzir urgência e diluir a mensagem. É cada vez mais difícil diluir a mensagem, mas elas tentam diminuir sua importância. Para aqueles que estão dispostos a ouvir, os relatórios do IPCC estão aí, o filme de Al Gore está aí, assim como outros produtos da mídia. É muito difícil ignorar. Quão seriamente isso é levado depende do indivíduo. O que ainda está faltando é o reconhecimento de que as pessoas podem fazer a diferença, que algo pode ser feito, e que para isso é preciso um movimento de larga escala na sociedade, que alcance a todos e do qual todos participem.
22: Há um papel para a ciência e a tecnologia na busca por um desenvolvimento sustentável?
EL: Sim, absolutamente. Mas, de novo, é preciso dizer que tipo de ciência e tecnologia. Eu gosto de citar Einstein, que disse que você não pode solucionar um problema com o mesmo tipo de pensamento que tinha quando o problema surgiu. As tecnologias que estamos criando agora, tecnologias que poluem, que poluem menos ou que tentam limpar a poluição, têm um processo muito lento e, basicamente, não vão nos ajudar a tempo. Precisamos de um pensamento novo, de intervenções mais radicais. Para a ciência isso significa trazer ao imaginário público a compreensão de que estamos mudando o equilíbrio natural na biosfera. Mas a biosfera não vai colapsar, ela vai encontrar um novo equilíbrio. Pelos últimos 10 mil anos as populações humanas têm se adaptado a esse equilíbrio que temos hoje.
Nossa agricultura, padrões de habitação, de mineração, tudo é baseado no tipo de clima e no equilíbrio que desenvolvemos desde a última Idade do Gelo. Se estamos mudando esse equilíbrio, pode ser que uma pequena percentagem da população terá vantagens, eles terão mais alimento, mas uma grande parte das pessoas vai ter menos alimento, problemas com inundações, com o fornecimento de água. É um jogo perigoso e a compreensão que precisa vir da ciência é a de que estamos lidando com um sistema dinâmico que está próximo de um ponto sem retorno.
É um pouco como andar de bicicleta. Se a estrada fica cada vez mais íngreme na sua frente, você não consegue prosseguir, tem de encontrar uma nova maneira. Pode continuar, mas em uma nova direção. Se não o fizer, você pára e cai, porque não há como voltar atrás. Isso é certo, não se pode restabelecer o equilíbrio prévio uma vez que ele foi alterado. Isto é o que precisamos da ciência, esse tipo de pensamento evolutivo, porque sabemos que temos de encontrar uma nova situação favorável aos seres humanos na biosfera. Caso contrário, se não for a nossa geração, com certeza a próxima terá sérios problemas.
22: Pode-se lidar com a situação com adaptação e reforma?
EL: Temo que nesse ponto de bifurcação estejamos lidando com o que se chama de “mudança abrupta”. Todo pensamento clássico, mesmo o pensamento darwiniano, se baseia na idéia de mudanças passo a passo, uma pequena mudança aqui, outra ali, é uma adaptação. Mas a partir do fim dos anos 80 se consolidou a idéia de equilíbrio pontuado, em que o equilíbrio é mantido até um determinado momento, de repente há uma mudança e, então, ocorre uma mudança abrupta.
Na Teoria de Sistemas há a teoria da bifurcação, que eu desenvolvi, e sabe-se que, quando tal ponto é atingido, não é mais possível haver adaptação. Aquilo a que se pode adaptar, mais ou menos, é aquilo a que estamos acostumados. Quando há o ponto de bifurcação, então é preciso inovar, mover-se com ele ou antes dele, antecipando-o. Então, inovação, sim, mas adaptação no sentido clássico não é suficiente.
22: No livro Macroshift (2001), o senhor diz que uma fase crítica aconteceria na primeira década do século XXI. Houve fatos ou processos desde então que podem indicar onde estamos agora? Estamos prolongando essa fase?
EL: Estamos nos aprofundando na fase crítica. Em meu novo livro, Chaos Point (2006), eu sugiro que essas mudanças radicais terão de ocorrer até 2012, grosso modo. Se não agirmos ou criarmos as condições para seguir em direção a um novo equilíbrio até 2012, pode se tornar irreversível. O que se tornou mais evidente foi a mudança climática, de um lado. De outro, o fato positivo é que o nível de descontentamento, o senso de urgência na sociedade civil, aumentou consideravelmente. Ao mesmo tempo, o perigo é mais agudo, mas a consciência quanto ao perigo é maior.
22: Essa década é ainda crítica?
EL: O ano de 2012 é o que chamo de “janela do caos”. Temos uma janela no tempo. Minha opinião diverge da de muitos otimistas e pessimistas. Pessimistas como James Lovelock dizem que já atingimos o tipping point, alguns especialistas em clima dizem o mesmo. Certamente não voltaremos aos padrões estáveis de clima que tínhamos. Mas quão catastrófi co é isso?
De acordo com Lovelock, teremos cerca de 600 milhões de pessoas sobrevivendo neste planeta nos próximos 10 mil anos – é uma visão pessimista. Eu não acho que chegaremos a isso, mas também discordo dos chamados otimistas, que dizem que tudo isso está fora de proporção, é imaginação, a natureza cuidará de si própria e nós temos apenas que encontrar as novas tecnologias com as quais vamos, gradualmente, ser capazes de lidar com o problema. Eu acho que a situação está próxima de um tipping point, ainda não chegamos lá, mas é preciso tomar consciência. Se não for por qualquer outro motivo, simplesmente porque é melhor estar seguro do que se arrepender depois. Se você se arrepende, quer dizer que é tarde demais para a comunidade humana como um todo.
22: O relatório do Clube de Roma “Limites ao Crescimento” previu em 1972 que a Terra chegaria ao limite dentro de um século. Em retrospecto, como o senhor vê essas previsões?
EL: Estive envolvido nisso, era membro do Clube de Roma e escrevi seu terceiro relatório, “Sociedade Global”, publicado em 1977. Dissemos desde o princípio que há limites, mas os limites não são puramente tecnológicos, mas também relativos à sociedade, à cultura. Eles exigem uma mudança radical na sociedade, na maneira de pensar, na consciência, não estamos lidando com um sistema puramente mecânico. Olhando o relatório feito por Dennis Meadows e outros 30 anos depois, é verdade que alguns daqueles limites, os limites de tempo, se tornaram muito menores. Não temos 100 anos.
Um dos desenvolvimentos negativos desde então é o nível de militarização do mundo, de violência e guerra, que cria uma situação perigosa na biosfera e, também, em termos de a escalada da guerra englobar cada vez mais gente. O terrorismo, a violência e a contra-violência são desenvolvimentos muito, muito negativos.
22: O mainstream, ou business as usual, pode se tornar sustentável? Para que isso aconteça, é preciso que aprendamos novas maneiras de fazer as coisas, ou que esqueçamos as velhas?
EL: Em Chaos Point eu desenvolvi dois cenários, um de colapso e um de avanço. O cenário de colapso é o cenário de business as usual. Se é usual, não funciona. Se começa a mudar, então não é mais usual. A atitude business as usual – de que esses problemas são temporários, que nós os superaremos e então tudo voltará ao normal – é uma maneira de pensar muito perigosa e pouco produtiva. Temos que defi nitivamente nos mover para um modo de operar que não seja usual. Estamos na fase de um novo business.
O lema de Einstein é “você tem que mudar seu pensamento”. Ele acrescentou que a bomba atômica mudou tudo menos as formas de pensar. Adaptando, eu diria que essas ameaças que estão hoje no horizonte mudaram tudo no mundo, exceto o modo de pensar do mainstream. As pessoas que atualmente têm posições de privilégio e poder tentam se apegar, de alguma maneira, à forma corrente de pensamento. Então, a sustentabilidade se tornou à la mode e há um tipo de abordagem da sustentabilidade que diz: “Vamos melhorar a tecnologia e vamos conseguir lidar com tudo isso”.
Essa é uma maneira não dinâmica de pensar, pode atrasar um pouco o ponto de bifurcação, mas vai apenas atrasá-lo. É possível que torne as coisas piores porque é uma abordagem que não lida com a raiz dos problemas, permite que os processos negativos continuem, baseados na crença de que serão solucionados. Temos de reconhecer que estamos entrando em uma nova fase, as velhas maneiras de fazer as coisas precisam ser esquecidas. Heisenberg disse que o problema com os físicos não era que eles não podiam aprender, mas que eles não podiam esquecer.
22: Há pessoas novas, jovens, que mostram o caminho da vanguarda? Quais são as idéias a que devemos prestar atenção?
EL: Um novo cenário mundial está emergindo, acho que as pessoas que hoje estão crescendo, os adolescentes e jovens adultos, têm uma visão diferente do mundo. Não é mais a visão de um mundo estável, que é sempre o mesmo, e a única coisa que temos que fazer é avançar individualmente. Mas é uma visão do mundo em que sabemos que há pontos críticos. Cresce a consciência de que o estilo de vida de cada um, os valores, os padrões de consumo, as maneiras de comunicar, tudo isso pode fazer diferença. Há a consciência de que podemos nos comunicar mais efetivamente, que podemos nos comunicar, que qualquer pessoa pode acessar a internet e circular suas idéias. É uma possibilidade a de iniciar novos movimentos.
A antropóloga Margaret Mead disse: “Nunca duvide do poder de um pequeno grupo de pessoas de mudar o mundo”. Agora, com a internet, as comunicações, programas e veículos de mídia, podemos alcançar as pessoas, podemos acordá-las. As pessoas precisam ser sacudidas, como se disséssemos: “Prepare-se, prepare-se para agir, para mudar, para aceitar alguma responsabilidade”. Não se trata apenas de avançar individualmente… Para a geração a que pertenço, quando me mudei para os Estados Unidos, quanto maior o carro que você tivesse, melhor, quanto mais consumisse, melhor. O consumo conspícuo era considerado uma coisa boa porque mostrava que você era um bom cidadão, contribuía para a economia, que era bem-sucedido.
Essas idéias, até certo ponto, mudaram. Agora as pessoas querem saber quão efi ciente é a tecnologia, não apenas quão poderosa ela é. As pessoas pensam sobre o que elas jogam fora, cada vez mais elas querem saber quem são as empresas que produzem as coisas, qual o processo por trás daquele produto. Há mudanças e é relativamente fácil obter informações sobre essas mudanças. A coisa mais positiva é o senso de que há algo que os indivíduos podem fazer, a idéia de “empoderamento” do indivíduo é um conceito-chave.