Para atingir os Oito Objetivos do Milênio é necessário incluir – e cumprir – uma meta transversal: a sustentabilidade das relações humanas
Há dois anos, no auditório de um grande jornal de São Paulo, três renomados economistas brasileiros dividiam – e deveriam compartilhar – o palco. A idéia era promover um debate, não um embate, sobre indicadores econômicos e sociais. Afinal, o Brasil avançara ou não nos últimos anos para romper o fosso entre os mais ricos e os mais pobres? A platéia, interessada, demonstrava pouca intimidade com a possibilidade de interagir e sair daquele privilegiado encontro com a clareza buscada. Mas a suposta divergência de opinião entre os três tomou conta do ambiente. Talvez nem divergissem tanto, como chegou a ser apontado.
Saímos de lá do mesmo jeito que entramos, ilhados em nossas próprias convicções. Durante o intervalo, ouvindo o comentário de um dos economistas presentes, pedi licença e perguntei: “Você diz que no Brasil há bons diagnósticos, profissionais à altura do empreendimento, propostas coerentes, recursos e linhas de financiamento prontas para colocar planos em prática e romper os indicadores negativos; então, por que nada acontece?” Ele disse, ou sentenciou: “Vaidade!”
Desse dia em diante, não consigo sossegar. Acredito não ser a única condômina deste planeta perseguida com a incômoda sensação de retrocessos sistemáticos. Segundo o psicólogo Yves de La Taille, vivemos numa “cultura da vaidade, em que o lugar do outro nunca é o de um parceiro. O outro é alguém que devemos superar”.
Nós herdamos ideais e valores humanistas. Por que aqueles que vieram antes de nós, brilhantes, iluminados, competentes, não conseguiram efetivar essa noção de humanidade? Será porque, comparada à idade do universo – entre 12 bilhões e 20 bilhões de anos –, somos jovens demais no condomínio Terra – ela com 4,5 bilhões de anos e nós com cerca de 200 mil anos? Esse senso de humanidade é inato ou adquirido? As relações humanas são ou estão insustentáveis?
Natureza narcísica
Encontrei resposta a estas perguntas no psicanalista Jurandir Freire: “Por natureza, o homem não é um ser social. Não existe nele, como nas abelhas e nas formigas, um instinto de preservação da espécie – apenas o de autopreservação. Somos por natureza narcísicos, porque só vemos, prioritariamente, nosso bem-estar individual. O convívio social e, mais ainda, o convívio social democrático nos impõem, portanto, um trabalho enorme”. Freire resgata Freud, segundo o qual “sem um ideal que caucione a vida social, o homem se torna um ente que viaja na escuridão”. Com base nessa interpretação psicanalítica e na condição de mera observadora, acredito que não nascemos um ser social, mas sim desenvolvemos essa noção como estratégia de sobrevivência.
Mas se o projeto de humanidade que nos encanta é aquele que prevê o bem comum, a sustentabilidade, a qualidade de todas as vidas, é preciso ter a plena consciência de que assumir esse ideal implica contrariar nosso instinto original. E, conscientes desse desconforto, sair à busca de conhecimentos disponíveis que nos permitam realizar essa noção de humanidade, tomando o destino em nossas mãos. A vida que a gente quer depende do que a gente faz; e o que a gente faz depende do que a gente sabe e aprende.
Tudo indica que fazer vingar essa idéia de ser humano é aprender a minimizar querelas pessoais e vaidades, assegurando a sustentabilidade das relações, sem o que se torna impossível vislumbrá-la em qualquer outro âmbito. Trata-se de um aprendizado que exige boa dose de obstinação e pa-ciência com esSe “ser” que ainda engatinha no universo. Exige compreensão e novas práticas de cuidados interpessoais e que se estendem para a comunidade.
Já que estamos tramando contra nossa tendência original, é preciso controlar nossas pulsões, superar dificuldades atávicas e adquirir competências. O grito e a agressão entre pessoas, por exemplo, entram onde não há a capacidade de argumentar, porque a habilidade não foi desenvolvida ao longo da vida. É assim que vemos, pouco a pouco, a violência tornar-se um padrão em muitas relações. Ou pior, como diz Yves de La Taille, tornar-se um valor. Desse jeito, a guerra será sempre a interlocutora da paz. Há séculos já vivemos o paradoxo de lutar pela paz.
Por isso considero extremamente relevante agregar uma nona meta aos Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (propostos pela Organização das Nações Unidas, para cumprimento até 2015, pelos 191 países signatários). Uma meta que seja transversal, que trate de “ecologia humana”, de conhecimentos e práticas relacionados ao convívio dos homens entre si e com seu meio ambiente.
É preciso identificar e propagar conhecimentos e práticas onde caibam gentileza, ternura, generosidade. Compartilhar sentimentos que nos dêem a sensação de pertencer à mesma espécie. Ensinamentos que permitam superar divergências e vaidades para convergir e atuar a serviço da qualidade de todas as vidas em todas as áreas de atuação: na educação, na medicina, na bolsa de valores, em casa… e tudo começa em casa. Vejo a Meta 9 como estratégia educativa e de sensibilização para efetivar essa noção de humanidade.
É certo que há conhecedores e conhecimentos suficientes para garantir essa ecologia humana, mas muita gente não sabe. Há muito trabalho pela frente. É preciso estar encantado com essa idéia para encantar.
*Christine Castilho Fontelles é diretora de Educação e Cultura do Instituto Ecofuturo, formada em Ciências Sociais pela PUC-SP, com MBA em Marketing pela FIA-FEA/USP