A Austrália adotou um esquema que prefere a negociação ao litígio e prevê a compensação financeira das populações tradicionais pela exploração de seus territórios, mas, em boa parte, os aborígines continuam alijados dos benefícios do boom mineral
Por Flavia Pardini
Em uma tarde fria do inverno australiano, Robin Chapple discorre sobre as intricadas relações entre as companhias mineradoras, cujos executivos ocupam os arranha-céus metálicos do centro de Perth, capital do estado de Western Australia (WA), e os descendentes dos habitantes originais do continente australiano, que se espalham pelos 2,5 milhões de quilômetros quadrados do estado. É interrompido três vezes, no telefone celular um repórter do único jornal diário da capital quer consultá-lo sobre a destruição de arte aborígine – ou rock art – na Península de Burrup. Localizada a 1,5 mil quilômetros ao norte, na região de Pilbara – uma das principais fontes que alimentam o boom mundial das commodities minerais -, Burrup abriga, além da arte aborígine, um projeto de A$ 14 bilhões de extração de gás natural.
Ex-funcionário do que hoje é a maior mineradora do mundo, a australiana BHP Billiton, ex-parlamentar pelo Partido Verde de WA, Chapple transformou-se em ativista e hoje dirige um grupo em defesa de Burrup. Apesar da insistência do repórter e da solicitude de Chapple, no dia seguinte, o tablóide não estampa uma linha sequer sobre a ameaça à rock art. Em tempos de bonança, poucos se ocupam em imaginar o que ficará para a posteridade.
Os aborígines que viveram na Península de Burrup, entretanto, deixaram uma das maiores e mais importantes coleções de petróglifos do mundo – estima-se que haja pelo menos 500 mil desenhos nas pedras, feitos ao longo dos últimos 20 mil anos, sobreviventes do tempo graças à resistência das rochas. Hoje, a península sofre as conseqüências de ser parte vital do “motor da economia australiana” – a exportação de matérias-primas, à moda dos países em desenvolvimento.
Nasce um título
As extensões áridas de onde sai boa parte dos minerais vendidos à China e outros mercados asiáticos eram, até recentemente, consideradas terra nullis, ou desabitadas, pela lei australiana. O setor privado extraía os minerais, de propriedade dos estados, e pagava royalties, sem maiores preocupações com os povos que, a despeito da ficção legal, habitam o continente há pelo menos 40 mil anos. Políticas de tutela do governo federal, como a famosa Stolen Generations – que envolveu a separação de crianças de seus pais para garantir que se “integrassem” à sociedade australiana -, ajudaram a manter essas populações alijadas da exploração econômica de seus territórios.
Mas uma decisão da Corte Suprema em 1992 começou a mudar a situação, e hoje os aborígines fazem parte da equação. Além de reconhecer sua presença no continente antes da chegada dos ingleses, em 1788, a Corte instituiu o conceito de título nativo (native title), que decorre da ocupação ou da conexão com a terra por meio de leis ou costumes tradicionais. O título nativo não significa direito de propriedade, mas dá às populações a possibilidade de negociar compensação financeira com atores econômicos que queiram levar “desenvolvimento” a seus territórios.
O modelo é semelhante ao praticado na África do Sul e oferece paralelos a nações em que populações tradicionais acabaram ocupando regiões remotas e ricas em recursos naturais, graças a padrões históricos de apropriação da terra e extração durante a colonização. Baseado na negociação em vez de no litígio, deu origem a uma variedade de acordos de compensação financeira, e os mais recentes chegam a envolver participação acionária dos detentores do título nativo na mineradora que explora seus territórios.
“Esses acordos ocupam um novo espaço nas velhas dicotomias entre Estado e mercado, público e privado, local e global”, escrevem Lee Godden, Marcia Lang- ton, Odette Mazel e Maureen Tehan, pesquisadoras da Universidade de Melbourne. “Eles formam um modelo emergente de organização comunitária, que adota uma mistura de formas legais privadas, como contratos e corporações, com objetivos e funções de política pública.” Hoje, quase 12% do continente australiano são áreas sob título nativo e há mais de 500 requisições tramitando – o Tribunal Nacional de Título Nativo estima que levará 30 anos para solucionar os casos existentes e os que ainda deverão surgir.
Por conseqüência, o relacionamento com os povos aborígines faz parte da matriz analisada pela indústria mineradora ao decidir seus investimentos.
“As empresas estão cientes de que precisam garantir que os benefícios fluam para essas populações”, diz Cara Babb, executive officer para assuntos relacionados às populações tradicionais da Câmara de Minerais e Energia, entidade que representa as maiores companhias que operam em WA. “Elas pensavam que bastaria pagar royalties e o governo se encarregaria de compartilhar os benefícios, mas historicamente não foi isso o que aconteceu.” O setor minerador pagou A$ 2,167 bilhões em royalties ao governo de WA em 2007, 13% a mais do que no ano anterior – ainda assim é amplamente reconhecido que os serviços básicos oferecidos às populações remotas, especialmente as aborígines, deixam muito a desejar. O dilema, então, fica para as empresas. “Existe uma lacuna entre o que as populações precisam e o que o governo oferece, então as empresas iniciam projetos com escolas, hospitais, com a comunidade”, diz Cara.
Com licença
Apesar do avanço nas últimas décadas, nem todos vêem o título nativo como solução. “Um dos maiores problemas em WA é o título nativo”, afi rma Robin Chapple. “Ele prevê a negociação de um acordo, mas só há acordo se os detentores do título concordam que haja ‘desenvolvimento’, não está garantido que eles possam bloquear a mineração ou outras atividades.” Além da impossibilidade de vetar a exploração, caso não haja acordo em um período de seis meses, as companhias podem solicitar ao Tribunal a emissão da licença para explorar – o que deixa as populações nativas de mãos vazias.
Sarah Holcombe, pesquisadora do Centre for Aboriginal Economic Policy Research da Australian National University, concorda que o direito de veto é importante, mas destaca que as negociações vinculadas ao título nativo fazem avançar o conceito de “licença social para operar” no contexto da Responsabilidade Social Corporativa (RSC).
Segundo Sarah, dois episódios ocorridos nos fim dos anos 90 mostraram que ela é cada vez mais importante: os protestos organizados por uma entidade comunitária aborígine impediu que a mina de zinco Century, no estado de Queensland, operasse por duas semanas; e o embate entre os donos tradicionais da terra e a mineradora britânica Rio Tinto sobre a exploração de uma região do Parque Nacional de Karijini, em WA. Neste último caso, a mineradora foi beneficiada por legislação aprovada pelo governo do estado, permitindo a exploração no parque, mas ficou a lição. “A Rio Tinto realmente aprendeu muito, eles perceberam que ter a licença social para operar é realmente essencial, pois foram punidos de maneira exemplar com esses episódios”, conta Sarah.
Mesmo quando há acordo, afirma Chapple, ele vem com uma série de problemas – por exemplo, o fato de que os detentores do título nativo precisam estabelecer uma entidade legal para administrar os fundos originados com a compensação. Tradicional- mente organizadas em torno de núcleos familiares, as comunidades aborígines entram em conflito para decidir quais famílias ficarão responsáveis por gerir a entidade e os recursos. “Essas lutas entre famílias estão ocorrendo em toda a Austrália”, conta.
Uma análise de 45 acordos firmados sob a legislação de título nativo, realizada por Ciaran O’Faircheallaigh, pesquisador da Griffith University, indicou que os benefícios culturais e financeiros para as comunidades, em geral, são poucos.
Embora 60% das operações mineradoras na região de Pilbara ocorram nas vizinhanças de comunidades aborígines, grande parte delas permanece privada dos benefícios trazidos pelo boom. Trata-se de um caso de pobreza em meio à abundância que remete ao que se convencionou chamar de “maldição dos recursos naturais”, segundo Marcia Langton e Odette Mazel, da Universidade de Melbourne.
A maldição, nos países em desenvolvimento, é que a bonança mineral não se traduz em crescimento econômico. Na Austrália, significa que a benesse econômica não chega à parcela mais desfavorecida da sociedade. A taxa de desemprego entre os integrantes de populações tradicionais – diversos grupos culturais e lingüísticos que perfazem 2,6% dos habitantes da Austrália – era de 14% em 2006. A diferença entre a expectativa de vida média dos aborígines e a da população total australiana chegava a 18 anos em 2001.
Indicadores como esses dificilmente se reverterão com a compensação fi nanceira pela exploração dos recursos naturais nas terras tradicionais aborígines. A preocupação de pesquisadores como Sarah Holcom- be é que, com os acordos, o resultado acabe sendo sempre o envolvimento com a indústria mineradora.
“Essas populações já não levam uma vida tradicional há mais de 100 anos, as atuais gerações sempre vi- veram em assentamentos do governo, não são mais caçadores-coletores”, diz ela. “Acho que boa parte do dinheiro dos acordos precisa ser gasta com o desen- volvimento de habilidades, e eles têm de estar ligados à inovação e aos sistemas de valores locais.” Ambiente de boom Em geral, tais valores estão associados ao meio ambiente. “Essa área toda é o que faz com que sejamos quem somos”, diz Slim Parker, ancião do povo aborí- gine Banyjima, em um vídeo no YouTube, referindo-se a Weeli Wolli, um pequeno complexo de cachoeiras localizado próximo a Newman, uma vila no coração da região mineradora de Pilbara. O riacho que alimenta o complexo normalmente tem água correndo por apenas 3 meses do ano, mas atualmente o fl uxo é constante – impacto da mina de Hope Downs, da Rio Tinto, localizada a montante das cachoeiras. Em um processo conhecido como dewatering, a água subterrânea é bombeada para a superfície para tornar possívelo acesso a corpos de minério localizados abaixo do lençol freático. A mineradora promete monitorar os impactos e restaurar os recursos hídricos no futuro, mas Parker questiona quais serão os efeitos para a ecologia da região e para a cultura dos povos tradicionais, que consideram Weeli Wolli um local sagrado.
As situações em que os interesses mineradores se chocam com o meio ambiente proliferam em WA, considerada uma das 34 regiões mais biodiversas do mundo e pontilhada de áreas que guardam espécies de plantas e animais únicas, em geral associadas a determinadas formações rochosas. A Câmara de Minerais e Energia alega que o impacto não é tão grande quanto o da agricultura, e que a mineração afeta menos de 1% da área do estado. O Conservation Council, uma coalizão de ONGs ambientais, retruca: apesar de não haver a contabilização exata dos impactos, as concessões às mineradoras abrangem 9,43% do estado, enquanto as áreas de conservação perfazem 6,9%.
Embora o processo de licenciamento dos empreendimentos inclua a realização de avaliação de impacto ambiental por um órgão independente e a legislação ambiental se sobreponha a todas as outras, os resultados acabam sempre favorecendo a indústria, diz Tim Nicol, do Conservation Council. “O governo é basicamente pró-mineração e quer facilitar os investimentos no estado.” A falta de uma imprensa atuante e diversa – como mostra o caso da rock art em Burrup – ajuda a manter o status quo. “As pessoas não querem que as empresas fiquem impunes, ficam chocadas quando descobrem o que acontece, mas em geral elas não sabem de nada”, afirma Nicol. Há um bom motivo para que boa parte da população permaneça alheia: o boom econômico sem precedentes no estado.
Com 1,2 mil minas em operação, a maioria no esquema de open-cut – a céu aberto -, e próximo do mercado mais quente do momento para as commodities minerais – a China -, WA responde por 40% das receitas australianas com exportação. Os preços do minério de ferro vendido aos chineses pela BHP e a Rio Tinto praticamente dobraram este ano. Há escassez de trabalhadores: a taxa de desemprego ronda os 3% e um estudo do governo federal estimou que o estado vai precisar de 42 mil novos trabalhadores até 2015, para dar conta da demanda por minerais.
A maior parte dos empregados da indústria mineradora trabalha no esquema de fly-in/fl y-out – devido às enormes distâncias, vão ao trabalho de avião, ficam lá por semanas, e voltam à capital para passar alguns dias com a família. Os aluguéis em Perth se igualam aos de Paris, com a diferença de que se trata da cidade mais isolada do mundo – a mais próxima, Adelaide, está a 2 mil quilômetros.
Rico em pensamento “A Austrália é um país rico só porque pensa que é”, diz Robin Chapple. “É movido a recursos decrescentes.” Embora se saiba que os recursos minerais são finitos, no caso da Austrália, seu ponto de esgotamento ainda está distante, o que só reforça a preocupação com a sustentabilidade. “Para todas as commodities, a exceção do petróleo, temos material abundante, não Vai acabar, o que vai acabar é a capacidade de extraí-lo de maneira adequada”, diz Gavin Mudd, professor da Monash University. “Seja a disponibilidade de água em algumas áreas, as questões das populações tradicionais em outras áreas, seja as restrições gerais em relação às emissões de carbono no futuro, é daí que os grandes problemas vão vir.” O governo federal australiano promete instituir um esquema de negociação de emissões de carbono em 2010, mas diante da grita da indústria e em nome da competitividade, parece disposto a dar permissões para emissão de graça aos setores exportadores. Enquanto o mundo não entra em um regime de redução drástica das emissões e a demanda asiática por mine- rais continua forte, a estratégia da indústria é acelerar a exploração por novos recursos e extrair os atuais o mais rápido possível.
Mas, segundo Mudd, ela não se sustenta. No estudo Sustainability of Mining in Australia, de 2007, ele analisou dados sobre a mineração no país desde 1829 e detectou as tendências de declínio na qualidade dos minérios extraídos, aumento dos dejetos sólidos e de estagnação dos recursos disponíveis para alguns minerais, como carvão e minério de ferro. “Para que haja sustentabilidade, é preciso atentar para o custo total. Mais exploração e mais tecnologia, se olharmos a história da mineração, geralmente significa uma pegada maior”, pondera.
O tempo dirá, passado o frenesi do boom, o tamanho da pegada que, como a rock art de Burrup, ficará impressa nas rochas.
A Austrália adotou um esquema que prefere a negociação ao litígio e prevê a compensação financeira das populações tradicionais pela exploração de seus territórios, mas, em boa parte, os aborígines continuam alijados dos benefícios do boom mineral
Por Flavia Pardini
Em uma tarde fria do inverno australiano, Robin Chapple discorre sobre as intricadas relações entre as companhias mineradoras, cujos executivos ocupam os arranha-céus metálicos do centro de Perth, capital do estado de Western Australia (WA), e os descendentes dos habitantes originais do continente australiano, que se espalham pelos 2,5 milhões de quilômetros quadrados do estado. É interrompido três vezes, no telefone celular um repórter do único jornal diário da capital quer consultá-lo sobre a destruição de arte aborígine – ou rock art – na Península de Burrup. Localizada a 1,5 mil quilômetros ao norte, na região de Pilbara – uma das principais fontes que alimentam o boom mundial das commodities minerais -, Burrup abriga, além da arte aborígine, um projeto de A$ 14 bilhões de extração de gás natural.
Ex-funcionário do que hoje é a maior mineradora do mundo, a australiana BHP Billiton, ex-parlamentar pelo Partido Verde de WA, Chapple transformou-se em ativista e hoje dirige um grupo em defesa de Burrup. Apesar da insistência do repórter e da solicitude de Chapple, no dia seguinte, o tablóide não estampa uma linha sequer sobre a ameaça à rock art. Em tempos de bonança, poucos se ocupam em imaginar o que ficará para a posteridade.
Os aborígines que viveram na Península de Burrup, entretanto, deixaram uma das maiores e mais importantes coleções de petróglifos do mundo – estima-se que haja pelo menos 500 mil desenhos nas pedras, feitos ao longo dos últimos 20 mil anos, sobreviventes do tempo graças à resistência das rochas. Hoje, a península sofre as conseqüências de ser parte vital do “motor da economia australiana” – a exportação de matérias-primas, à moda dos países em desenvolvimento.
Nasce um título
As extensões áridas de onde sai boa parte dos minerais vendidos à China e outros mercados asiáticos eram, até recentemente, consideradas terra nullis, ou desabitadas, pela lei australiana. O setor privado extraía os minerais, de propriedade dos estados, e pagava royalties, sem maiores preocupações com os povos que, a despeito da ficção legal, habitam o continente há pelo menos 40 mil anos. Políticas de tutela do governo federal, como a famosa Stolen Generations – que envolveu a separação de crianças de seus pais para garantir que se “integrassem” à sociedade australiana -, ajudaram a manter essas populações alijadas da exploração econômica de seus territórios.
Mas uma decisão da Corte Suprema em 1992 começou a mudar a situação, e hoje os aborígines fazem parte da equação. Além de reconhecer sua presença no continente antes da chegada dos ingleses, em 1788, a Corte instituiu o conceito de título nativo (native title), que decorre da ocupação ou da conexão com a terra por meio de leis ou costumes tradicionais. O título nativo não significa direito de propriedade, mas dá às populações a possibilidade de negociar compensação financeira com atores econômicos que queiram levar “desenvolvimento” a seus territórios.
O modelo é semelhante ao praticado na África do Sul e oferece paralelos a nações em que populações tradicionais acabaram ocupando regiões remotas e ricas em recursos naturais, graças a padrões históricos de apropriação da terra e extração durante a colonização. Baseado na negociação em vez de no litígio, deu origem a uma variedade de acordos de compensação financeira, e os mais recentes chegam a envolver participação acionária dos detentores do título nativo na mineradora que explora seus territórios.
“Esses acordos ocupam um novo espaço nas velhas dicotomias entre Estado e mercado, público e privado, local e global”, escrevem Lee Godden, Marcia Lang- ton, Odette Mazel e Maureen Tehan, pesquisadoras da Universidade de Melbourne. “Eles formam um modelo emergente de organização comunitária, que adota uma mistura de formas legais privadas, como contratos e corporações, com objetivos e funções de política pública.” Hoje, quase 12% do continente australiano são áreas sob título nativo e há mais de 500 requisições tramitando – o Tribunal Nacional de Título Nativo estima que levará 30 anos para solucionar os casos existentes e os que ainda deverão surgir.
Por conseqüência, o relacionamento com os povos aborígines faz parte da matriz analisada pela indústria mineradora ao decidir seus investimentos.
“As empresas estão cientes de que precisam garantir que os benefícios fluam para essas populações”, diz Cara Babb, executive officer para assuntos relacionados às populações tradicionais da Câmara de Minerais e Energia, entidade que representa as maiores companhias que operam em WA. “Elas pensavam que bastaria pagar royalties e o governo se encarregaria de compartilhar os benefícios, mas historicamente não foi isso o que aconteceu.” O setor minerador pagou A$ 2,167 bilhões em royalties ao governo de WA em 2007, 13% a mais do que no ano anterior – ainda assim é amplamente reconhecido que os serviços básicos oferecidos às populações remotas, especialmente as aborígines, deixam muito a desejar. O dilema, então, fica para as empresas. “Existe uma lacuna entre o que as populações precisam e o que o governo oferece, então as empresas iniciam projetos com escolas, hospitais, com a comunidade”, diz Cara.
Com licença
Apesar do avanço nas últimas décadas, nem todos vêem o título nativo como solução. “Um dos maiores problemas em WA é o título nativo”, afi rma Robin Chapple. “Ele prevê a negociação de um acordo, mas só há acordo se os detentores do título concordam que haja ‘desenvolvimento’, não está garantido que eles possam bloquear a mineração ou outras atividades.” Além da impossibilidade de vetar a exploração, caso não haja acordo em um período de seis meses, as companhias podem solicitar ao Tribunal a emissão da licença para explorar – o que deixa as populações nativas de mãos vazias.
Sarah Holcombe, pesquisadora do Centre for Aboriginal Economic Policy Research da Australian National University, concorda que o direito de veto é importante, mas destaca que as negociações vinculadas ao título nativo fazem avançar o conceito de “licença social para operar” no contexto da Responsabilidade Social Corporativa (RSC).
Segundo Sarah, dois episódios ocorridos nos fim dos anos 90 mostraram que ela é cada vez mais importante: os protestos organizados por uma entidade comunitária aborígine impediu que a mina de zinco Century, no estado de Queensland, operasse por duas semanas; e o embate entre os donos tradicionais da terra e a mineradora britânica Rio Tinto sobre a exploração de uma região do Parque Nacional de Karijini, em WA. Neste último caso, a mineradora foi beneficiada por legislação aprovada pelo governo do estado, permitindo a exploração no parque, mas ficou a lição. “A Rio Tinto realmente aprendeu muito, eles perceberam que ter a licença social para operar é realmente essencial, pois foram punidos de maneira exemplar com esses episódios”, conta Sarah.
Mesmo quando há acordo, afirma Chapple, ele vem com uma série de problemas – por exemplo, o fato de que os detentores do título nativo precisam estabelecer uma entidade legal para administrar os fundos originados com a compensação. Tradicional- mente organizadas em torno de núcleos familiares, as comunidades aborígines entram em conflito para decidir quais famílias ficarão responsáveis por gerir a entidade e os recursos. “Essas lutas entre famílias estão ocorrendo em toda a Austrália”, conta.
Uma análise de 45 acordos firmados sob a legislação de título nativo, realizada por Ciaran O’Faircheallaigh, pesquisador da Griffith University, indicou que os benefícios culturais e financeiros para as comunidades, em geral, são poucos.
Embora 60% das operações mineradoras na região de Pilbara ocorram nas vizinhanças de comunidades aborígines, grande parte delas permanece privada dos benefícios trazidos pelo boom. Trata-se de um caso de pobreza em meio à abundância que remete ao que se convencionou chamar de “maldição dos recursos naturais”, segundo Marcia Langton e Odette Mazel, da Universidade de Melbourne.
A maldição, nos países em desenvolvimento, é que a bonança mineral não se traduz em crescimento econômico. Na Austrália, significa que a benesse econômica não chega à parcela mais desfavorecida da sociedade. A taxa de desemprego entre os integrantes de populações tradicionais – diversos grupos culturais e lingüísticos que perfazem 2,6% dos habitantes da Austrália – era de 14% em 2006. A diferença entre a expectativa de vida média dos aborígines e a da população total australiana chegava a 18 anos em 2001.
Indicadores como esses dificilmente se reverterão com a compensação fi nanceira pela exploração dos recursos naturais nas terras tradicionais aborígines. A preocupação de pesquisadores como Sarah Holcom- be é que, com os acordos, o resultado acabe sendo sempre o envolvimento com a indústria mineradora.
“Essas populações já não levam uma vida tradicional há mais de 100 anos, as atuais gerações sempre vi- veram em assentamentos do governo, não são mais caçadores-coletores”, diz ela. “Acho que boa parte do dinheiro dos acordos precisa ser gasta com o desen- volvimento de habilidades, e eles têm de estar ligados à inovação e aos sistemas de valores locais.” Ambiente de boom Em geral, tais valores estão associados ao meio ambiente. “Essa área toda é o que faz com que sejamos quem somos”, diz Slim Parker, ancião do povo aborí- gine Banyjima, em um vídeo no YouTube, referindo-se a Weeli Wolli, um pequeno complexo de cachoeiras localizado próximo a Newman, uma vila no coração da região mineradora de Pilbara. O riacho que alimenta o complexo normalmente tem água correndo por apenas 3 meses do ano, mas atualmente o fl uxo é constante – impacto da mina de Hope Downs, da Rio Tinto, localizada a montante das cachoeiras. Em um processo conhecido como dewatering, a água subterrânea é bombeada para a superfície para tornar possívelo acesso a corpos de minério localizados abaixo do lençol freático. A mineradora promete monitorar os impactos e restaurar os recursos hídricos no futuro, mas Parker questiona quais serão os efeitos para a ecologia da região e para a cultura dos povos tradicionais, que consideram Weeli Wolli um local sagrado.
As situações em que os interesses mineradores se chocam com o meio ambiente proliferam em WA, considerada uma das 34 regiões mais biodiversas do mundo e pontilhada de áreas que guardam espécies de plantas e animais únicas, em geral associadas a determinadas formações rochosas. A Câmara de Minerais e Energia alega que o impacto não é tão grande quanto o da agricultura, e que a mineração afeta menos de 1% da área do estado. O Conservation Council, uma coalizão de ONGs ambientais, retruca: apesar de não haver a contabilização exata dos impactos, as concessões às mineradoras abrangem 9,43% do estado, enquanto as áreas de conservação perfazem 6,9%.
Embora o processo de licenciamento dos empreendimentos inclua a realização de avaliação de impacto ambiental por um órgão independente e a legislação ambiental se sobreponha a todas as outras, os resultados acabam sempre favorecendo a indústria, diz Tim Nicol, do Conservation Council. “O governo é basicamente pró-mineração e quer facilitar os investimentos no estado.” A falta de uma imprensa atuante e diversa – como mostra o caso da rock art em Burrup – ajuda a manter o status quo. “As pessoas não querem que as empresas fiquem impunes, ficam chocadas quando descobrem o que acontece, mas em geral elas não sabem de nada”, afirma Nicol. Há um bom motivo para que boa parte da população permaneça alheia: o boom econômico sem precedentes no estado.
Com 1,2 mil minas em operação, a maioria no esquema de open-cut – a céu aberto -, e próximo do mercado mais quente do momento para as commodities minerais – a China -, WA responde por 40% das receitas australianas com exportação. Os preços do minério de ferro vendido aos chineses pela BHP e a Rio Tinto praticamente dobraram este ano. Há escassez de trabalhadores: a taxa de desemprego ronda os 3% e um estudo do governo federal estimou que o estado vai precisar de 42 mil novos trabalhadores até 2015, para dar conta da demanda por minerais.
A maior parte dos empregados da indústria mineradora trabalha no esquema de fly-in/fl y-out – devido às enormes distâncias, vão ao trabalho de avião, ficam lá por semanas, e voltam à capital para passar alguns dias com a família. Os aluguéis em Perth se igualam aos de Paris, com a diferença de que se trata da cidade mais isolada do mundo – a mais próxima, Adelaide, está a 2 mil quilômetros.
Rico em pensamento “A Austrália é um país rico só porque pensa que é”, diz Robin Chapple. “É movido a recursos decrescentes.” Embora se saiba que os recursos minerais são finitos, no caso da Austrália, seu ponto de esgotamento ainda está distante, o que só reforça a preocupação com a sustentabilidade. “Para todas as commodities, a exceção do petróleo, temos material abundante, não Vai acabar, o que vai acabar é a capacidade de extraí-lo de maneira adequada”, diz Gavin Mudd, professor da Monash University. “Seja a disponibilidade de água em algumas áreas, as questões das populações tradicionais em outras áreas, seja as restrições gerais em relação às emissões de carbono no futuro, é daí que os grandes problemas vão vir.” O governo federal australiano promete instituir um esquema de negociação de emissões de carbono em 2010, mas diante da grita da indústria e em nome da competitividade, parece disposto a dar permissões para emissão de graça aos setores exportadores. Enquanto o mundo não entra em um regime de redução drástica das emissões e a demanda asiática por mine- rais continua forte, a estratégia da indústria é acelerar a exploração por novos recursos e extrair os atuais o mais rápido possível.
Mas, segundo Mudd, ela não se sustenta. No estudo Sustainability of Mining in Australia, de 2007, ele analisou dados sobre a mineração no país desde 1829 e detectou as tendências de declínio na qualidade dos minérios extraídos, aumento dos dejetos sólidos e de estagnação dos recursos disponíveis para alguns minerais, como carvão e minério de ferro. “Para que haja sustentabilidade, é preciso atentar para o custo total. Mais exploração e mais tecnologia, se olharmos a história da mineração, geralmente significa uma pegada maior”, pondera.
O tempo dirá, passado o frenesi do boom, o tamanho da pegada que, como a rock art de Burrup, ficará impressa nas rochas.
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