Os cubanos descobriram no universo digital um atalho para diminuir a distância imposta pelo regime de Fidel Castro. Encontraram-se os que vivem dentro e fora da Ilha. Com a blogostroika, compartilham reminiscências, música, receitas, críticas literárias, fotos. Acima de tudo, o desejo de liberdade de expressão
Pablo é um intelectual cubano de renome, mas muito acomodado. Pablo vive em Havana. Sara é uma profissional da informática de ponta. Sara vive em Miami. Os dois tiveram uma conturbada relação de muitos anos e se reencontram acidentalmente em uma troca de correio eletrônico que vai se prolongando e reflete o conflito existente entre os dois países e as frustrações e tormentas de uma relação marcada pelo destino político.
A novela já está no capítulo 63 e segue repleta de comentários de leitores cubanos, americanos, cubanos que estão na Ilha e os que decidiram partir e levaram sua cubanía ainda com mais convicção.
O blog Yo Soy Medea, onde se pode acompanhar a saga de Pablo e Sara, é de autoria de Olga Lastra, uma cubana que saiu de seu país há 12 anos, casou-se na nova terra, tem dois filhos, ex-amores do seu lugar de origem e o desejo de ver a liberdade de expressão no país onde nasceu. Já que não pode retornar definitivamente ao que imagina e sobre o que escreve, conduz uma luta ferrenha, uma novela, silenciosa aos olhos de um regime que usa totens, outdoors e eufóricas festividades para convencer da sua eficácia.
Essa batalha de formiguinha, no entanto, já arregimentou ao menos 20 mil outros cubanos espalhados pelo mundo, dentro de Havana e arredores. A artilharia pesada é com palavras, internet e links trocados entre os que têm o que dizer e criaram um universo digital em contraponto aos limites à expressão impostos pelo governo.
Com interesses diversos, de culinária a literatura, teatro, jornalismo a reminiscências sobre brinquedos russos da infância de muitos, a blogostroika cubana tomou corpo nos últimos anos. Em agosto de 2009, um grupo que se autodenomina “Bloggers por um Sonho” quer se reunir em Miami e Palma de Mallorca para ver suas caras e fomentar o debate.
Em Cubadice, blog feito por uma exilada na Itália, o convite é feito assim: “Convite permanente a todos os blogueiros do mundo para participar deste encontro. É somente indispensável levar no coração uma gota de amor por Cuba”.
As ideias e sonhos eles já conhecem e compartilham, alguns em maior, outros em menor velocidade. Os que estão em Cuba ainda cumprem a saga de frequentar cafés ou hotéis para turistas para colocar um simples post em seu devido lugar, a web.
A peleja da informação é parecida com a da comida que é parecida com a do transporte. É permitido consultar correios eletrônicos e sites oficiais para a população de quase 12 milhões de habitantes. É permitido comer o que o governo estipula na cota da cesta básica e também é possível andar de um lado para outro da Ilha em ônibus caindo aos pedaços, depois de enfrentar devidamente uma fila. Para outros tantos 3 milhões de cubanos espalhados pelo mundo, o acesso à internet é simples como o nosso, a comida é farta e o transporte, para qualquer lugar, fácil.
O que une uns e outros é a urgência de falar após quase 50 anos de silêncio. A revolução da internet chegou a essa gente com um duplo impacto. A vontade, as ganas, como dizem, é tão premente que não se fica imune às centenas, aos milhares de comentários que povoam a blogostroika. Os palpites acalorados refletem a separação de uma grande família, mas, acima de tudo, o desejo de liberdade de expressão. É nesse quesito que somam forças.
A filha mais notória do movimento é Yoani Sánchez, uma blogueira cubana que ganhou recentemente um prêmio espanhol na área de comunicação, o Ortega y Gasset. Yoani foi apontada como uma das personalidades mais influentes no jornalismo digital. Sem pompa e com muita elegância e fluência, Yoani contabiliza, post a post em seu Generación Y, um inacreditável público de mais de 3 mil visitantes por dia. O interesse são suas descrições precisas, algumas vezes ácidas, do cotidiano precário, das dificuldades de transporte ou histórias comezinhas, como a terrível impossibilidade de oferecer opções gostosas de comida para seu filho, de férias dentro de casa, ou a situação de um casarão que ameaça ruir na esquina.
O nome Generación Y é menção direta à geração de cubanos que ganhou nomes russos, os começados por Y, quando estes eram os aliados da vez. O episódio do prêmio concedido a Yoani colocou lenha na fogueira do ciberespaço.
Fidel Castro saiu das profundezas de seu quartel e se deu ao trabalho de escrever um artigo contra a cubana mais famosa do momento. O artigo no diário oficial Granma considerou submissão ao imperialismo aceitar um prêmio destes.
Yoani aceitou, deu entrevistas à metade da imprensa mundial, mas, no final das contas, não conseguiu arredar o pé de Havana para buscar seu galardão. As autoridades negaram-lhe permissão para ir a Madri.
A negativa e o artigo do Comandante afastado surtiram o efeito esperado. Manifestações de solidariedade e admiração para uma cidadã que não tem medo de pôr sua foto no mesmo espaço em que desvela sua cidade tal como é. E a voz de Yoani animou a turma.
Generación Asere, um grupo de sete, cada qual em um país, transformou-se numa polêmica revista de atualidades com fotos, vídeos e comentários sobre a vida em Cuba. Penúltimos Dias, um dos mais atualizados, fornece informações fresquinhas de Cuba desde Barcelona, onde vive Ernesto Hernández Busto. Desarraigos Provocados emerge da Alemanha, onde outra jovem e inteligente cubana se empenha na esperança de manter de pé o desejado encontro dos blogueiros. Já em Pareja No Verbal, um sociólogo trata de que o amor sempre triunfe.
Meu mundo é o seu
Medea, ou Olga, tanto faz para ela, começou a blogar há pouco mais de um ano, em plena crise existencial. “A pior crise de meia-idade que eu já vi”, disse o filho, de 22 anos, através da mãe blogueira. Uma pesquisa na internet, que acessa fácil e livremente de seu emprego em Miami, mostrou que não estava só. Existia a tal blogosfera cubana e, nela, desde as agruras de gente que saiu da Ilha espremida numa balsa até receita de bisteca de frazada.
Alguns relatavam suas recordações do povoado, outros publicavam a música fundamental de suas vidas, quadrinhos soviéticos, análises políticas, críticas literárias 22 anos, através da mãe blogueira. Sentir que tem algo a dizer ganha conotação para além do clichê neste caso. Olga saiu de Cuba, mas sua história continuou lá.
Este é o meu mundo – foi a ficha que caiu simultaneamente para todos eles com a possibilidade de construção de um blog. Mais que isso. A possibilidade de criação ou recriação de um país calado na rede mundial digital.
O mesmo mundo que encantou Olga foi descoberto no El Parque Trillo, o blog com o nome do lugar onde nasceu Carmen na sua “Ilha Infinita”. Suas regras: este é um caderno de uma habitante de Miami que crê na tolerância e aceita comentários com certa “blogoética”, de qualquer amigo velho ou novo, ama a polêmica e a liberdade e vai aceitar colaborações no futuro.
Na esteira do romantismo que resvala nesses sítios, Carmen é das que crêem que a blogosfera cubana resgata o que a imprensa tradicional ignorou por anos. O mito do pequeno Davi enfrentando Golias escondeu o que interessa, ela diz. “Geograficamente fora”, acredita ainda que os que estão em Cuba não necessitam ser cubanos de verdade. Precisam, primeiro, de liberdade. O que faz com que os exilados estejam mais próximos da cubanía, o jeito muito próprio de chamar a alma cubana.
Quem tem razão nesses espaços ou qual o final reservado para Pablo e Sara não importa. Travestidos como Medea ou de cara lavada como Yoani, os cubanos usufruem, como nunca, do espaço cibernético e do poder que aí exercem um indivíduo e um grupo de indivíduos.
Talvez a graça esteja na ficção derramada nessas páginas, nas alegorias, e quem sabe os sonhos de liberdade de expressão nunca saiam da web. Em definitivo, a blogostroika mostra pontos de vista e tira a perspectiva da voz única. Carmen em seu El Parque Trillo diz que a internet é como uma festa em que todos querem dançar. É como ser livre.[:en]Os cubanos descobriram no universo digital um atalho para diminuir a distância imposta pelo regime de Fidel Castro. Encontraram-se os que vivem dentro e fora da Ilha. Com a blogostroika, compartilham reminiscências, música, receitas, críticas literárias, fotos. Acima de tudo, o desejo de liberdade de expressão
Pablo é um intelectual cubano de renome, mas muito acomodado. Pablo vive em Havana. Sara é uma profissional da informática de ponta. Sara vive em Miami. Os dois tiveram uma conturbada relação de muitos anos e se reencontram acidentalmente em uma troca de correio eletrônico que vai se prolongando e reflete o conflito existente entre os dois países e as frustrações e tormentas de uma relação marcada pelo destino político.
A novela já está no capítulo 63 e segue repleta de comentários de leitores cubanos, americanos, cubanos que estão na Ilha e os que decidiram partir e levaram sua cubanía ainda com mais convicção.
O blog Yo Soy Medea, onde se pode acompanhar a saga de Pablo e Sara, é de autoria de Olga Lastra, uma cubana que saiu de seu país há 12 anos, casou-se na nova terra, tem dois filhos, ex-amores do seu lugar de origem e o desejo de ver a liberdade de expressão no país onde nasceu. Já que não pode retornar definitivamente ao que imagina e sobre o que escreve, conduz uma luta ferrenha, uma novela, silenciosa aos olhos de um regime que usa totens, outdoors e eufóricas festividades para convencer da sua eficácia.
Essa batalha de formiguinha, no entanto, já arregimentou ao menos 20 mil outros cubanos espalhados pelo mundo, dentro de Havana e arredores. A artilharia pesada é com palavras, internet e links trocados entre os que têm o que dizer e criaram um universo digital em contraponto aos limites à expressão impostos pelo governo.
Com interesses diversos, de culinária a literatura, teatro, jornalismo a reminiscências sobre brinquedos russos da infância de muitos, a blogostroika cubana tomou corpo nos últimos anos. Em agosto de 2009, um grupo que se autodenomina “Bloggers por um Sonho” quer se reunir em Miami e Palma de Mallorca para ver suas caras e fomentar o debate.
Em Cubadice, blog feito por uma exilada na Itália, o convite é feito assim: “Convite permanente a todos os blogueiros do mundo para participar deste encontro. É somente indispensável levar no coração uma gota de amor por Cuba”.
As ideias e sonhos eles já conhecem e compartilham, alguns em maior, outros em menor velocidade. Os que estão em Cuba ainda cumprem a saga de frequentar cafés ou hotéis para turistas para colocar um simples post em seu devido lugar, a web.
A peleja da informação é parecida com a da comida que é parecida com a do transporte. É permitido consultar correios eletrônicos e sites oficiais para a população de quase 12 milhões de habitantes. É permitido comer o que o governo estipula na cota da cesta básica e também é possível andar de um lado para outro da Ilha em ônibus caindo aos pedaços, depois de enfrentar devidamente uma fila. Para outros tantos 3 milhões de cubanos espalhados pelo mundo, o acesso à internet é simples como o nosso, a comida é farta e o transporte, para qualquer lugar, fácil.
O que une uns e outros é a urgência de falar após quase 50 anos de silêncio. A revolução da internet chegou a essa gente com um duplo impacto. A vontade, as ganas, como dizem, é tão premente que não se fica imune às centenas, aos milhares de comentários que povoam a blogostroika. Os palpites acalorados refletem a separação de uma grande família, mas, acima de tudo, o desejo de liberdade de expressão. É nesse quesito que somam forças.
A filha mais notória do movimento é Yoani Sánchez, uma blogueira cubana que ganhou recentemente um prêmio espanhol na área de comunicação, o Ortega y Gasset. Yoani foi apontada como uma das personalidades mais influentes no jornalismo digital. Sem pompa e com muita elegância e fluência, Yoani contabiliza, post a post em seu Generación Y, um inacreditável público de mais de 3 mil visitantes por dia. O interesse são suas descrições precisas, algumas vezes ácidas, do cotidiano precário, das dificuldades de transporte ou histórias comezinhas, como a terrível impossibilidade de oferecer opções gostosas de comida para seu filho, de férias dentro de casa, ou a situação de um casarão que ameaça ruir na esquina.
O nome Generación Y é menção direta à geração de cubanos que ganhou nomes russos, os começados por Y, quando estes eram os aliados da vez. O episódio do prêmio concedido a Yoani colocou lenha na fogueira do ciberespaço.
Fidel Castro saiu das profundezas de seu quartel e se deu ao trabalho de escrever um artigo contra a cubana mais famosa do momento. O artigo no diário oficial Granma considerou submissão ao imperialismo aceitar um prêmio destes.
Yoani aceitou, deu entrevistas à metade da imprensa mundial, mas, no final das contas, não conseguiu arredar o pé de Havana para buscar seu galardão. As autoridades negaram-lhe permissão para ir a Madri.
A negativa e o artigo do Comandante afastado surtiram o efeito esperado. Manifestações de solidariedade e admiração para uma cidadã que não tem medo de pôr sua foto no mesmo espaço em que desvela sua cidade tal como é. E a voz de Yoani animou a turma.
Generación Asere, um grupo de sete, cada qual em um país, transformou-se numa polêmica revista de atualidades com fotos, vídeos e comentários sobre a vida em Cuba. Penúltimos Dias, um dos mais atualizados, fornece informações fresquinhas de Cuba desde Barcelona, onde vive Ernesto Hernández Busto. Desarraigos Provocados emerge da Alemanha, onde outra jovem e inteligente cubana se empenha na esperança de manter de pé o desejado encontro dos blogueiros. Já em Pareja No Verbal, um sociólogo trata de que o amor sempre triunfe.
Meu mundo é o seu
Medea, ou Olga, tanto faz para ela, começou a blogar há pouco mais de um ano, em plena crise existencial. “A pior crise de meia-idade que eu já vi”, disse o filho, de 22 anos, através da mãe blogueira. Uma pesquisa na internet, que acessa fácil e livremente de seu emprego em Miami, mostrou que não estava só. Existia a tal blogosfera cubana e, nela, desde as agruras de gente que saiu da Ilha espremida numa balsa até receita de bisteca de frazada.
Alguns relatavam suas recordações do povoado, outros publicavam a música fundamental de suas vidas, quadrinhos soviéticos, análises políticas, críticas literárias 22 anos, através da mãe blogueira. Sentir que tem algo a dizer ganha conotação para além do clichê neste caso. Olga saiu de Cuba, mas sua história continuou lá.
Este é o meu mundo – foi a ficha que caiu simultaneamente para todos eles com a possibilidade de construção de um blog. Mais que isso. A possibilidade de criação ou recriação de um país calado na rede mundial digital.
O mesmo mundo que encantou Olga foi descoberto no El Parque Trillo, o blog com o nome do lugar onde nasceu Carmen na sua “Ilha Infinita”. Suas regras: este é um caderno de uma habitante de Miami que crê na tolerância e aceita comentários com certa “blogoética”, de qualquer amigo velho ou novo, ama a polêmica e a liberdade e vai aceitar colaborações no futuro.
Na esteira do romantismo que resvala nesses sítios, Carmen é das que crêem que a blogosfera cubana resgata o que a imprensa tradicional ignorou por anos. O mito do pequeno Davi enfrentando Golias escondeu o que interessa, ela diz. “Geograficamente fora”, acredita ainda que os que estão em Cuba não necessitam ser cubanos de verdade. Precisam, primeiro, de liberdade. O que faz com que os exilados estejam mais próximos da cubanía, o jeito muito próprio de chamar a alma cubana.
Quem tem razão nesses espaços ou qual o final reservado para Pablo e Sara não importa. Travestidos como Medea ou de cara lavada como Yoani, os cubanos usufruem, como nunca, do espaço cibernético e do poder que aí exercem um indivíduo e um grupo de indivíduos.
Talvez a graça esteja na ficção derramada nessas páginas, nas alegorias, e quem sabe os sonhos de liberdade de expressão nunca saiam da web. Em definitivo, a blogostroika mostra pontos de vista e tira a perspectiva da voz única. Carmen em seu El Parque Trillo diz que a internet é como uma festa em que todos querem dançar. É como ser livre.