O medo e a culpa pela crise ambiental global já viraram caso para o divã. Página22 propõe uma investigação psíquica para iluminar as alternativas transformadoras entre a alienação e o catastrofismo
Quando Christopher McCandless se formou em História e Antropologia na Emory University, no estado da Geórgia (EUA), seus planos não incluíam iniciar uma carreira ou constituir uma família. Em lugar disso, o jovem de 21 anos doou todo dinheiro que tinha para instituições de caridade, literalmente queimou os trocados que restavam, e lançou-se em uma jornada para viver longe da civilização.
Trabalhava quando necessário, mas na maior parte do tempo viveu do que a natureza oferecia em cavernas e acampamentos improvisados. Em busca do isolamento absoluto no ambiente selvagem, chegou até as montanhas do Alasca, onde morreu de fome, dois anos após o começo de sua viagem. McCandless tornou-se um símbolo da inconformidade com os valores da sociedade capitalista, graças a Jon Krakaeur, que conta sua história no livro Into the Wild, e ao filme homônimo de Sean Penn.
McCandless morreu em 1992. Fosse 2008, é bem provável que as especulações sobre os motivos de sua escolha incluíssem também o diagnóstico tardio de ecoansiedade.
No país do consumismo e o maior poluidor do mundo, a nova síndrome virou alvo de inúmeros debates e reportagens. Trata-se da crise de ansiedade desencadeada pela consciência dos rumos da civilização, dos impactos ambientais decorrentes da lógica de produção e consumo, da perspectiva apocalíptica das mudanças climáticas e da parcela inafastável de responsabilidade que recai sobre cada ser humano.
Bastou passar por uma banca de jornal e deparar-se com a manchete da revista Time sobre o aquecimento global – “Be Worried. Be very worried” –, para que a jornalista Liz Galst tivesse um crise de tremedeira, suor e palpitações. Sua busca por redenção e respostas tranformou-se na reportagem de capa “Eco-Anxiety”, na revista Plenty, publicada em 2006. Em um vídeo disponível no portal YouTube, um “ecoansioso” participa de uma dinâmica de grupo organizada por uma “ecoterapueta”, durante a qual declara, mortificado: “Não consigo mais viver sabendo que estamos matando a nossa mãe”, referindo-se ao planeta Terra.
A discussão desse fenômeno pode até soar a invencionisse, principalmente na esteira da moda de associar o prefixo “eco” a todo tipo de conceito. Mas, tenha o nome que tiver, esse tipo de reação extremada pode facilmente acometer ambientalistas de plantão em outros cantos do mundo, inclusive no Brasil. Suas causas estão disseminadas e supostamente residem na profusão de informações ambientais, por vezes catastróficas e, noutras vezes, contraditórias.
“Quando vejo cada vez mais os meus pacientes decididos a não terem filhos porque não sabem o que vai ser do mundo, imagino que as pessoas estão realmente sob grande pressão”, conta a psiquiatra Ana Paula Carvalho.
Nessa toada, as boas intenções podem acabar tendo o mesmo fim simbólico de McCandless, isoladas e sem esperança. Como diz Al Gore no filme Uma Verdade Inconveniente, algumas pessoas passam diretamente do estágio da negação da crise ambiental global para o de paralisante desespero. Como fazer com que as pessoas estacionem em um meio do caminho que represente atitudes produtivas e inovadoras pode ser a pergunta do século.
O FIM ESTÁ PRÓXIMO
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 2003, o psicanalista Contardo Calligaris especula sobre as motivações psíquicas do movimento ambientalista. Ele expõe a aparente contradição entre o desejo de transformação e o de perenidade: “Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do Cosmos imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza”.
Calligaris conclui que nossa inquietude diante da fragilidade dos sistemas naturais está relacionada com a incapacidade de enfrentar e aceitar a nossa própria mortalidade.
Se a premissa estiver correta, associar a mensagem socioambiental com a idéia de fim dos tempos pode torná-la um tabu, assim como a finitude da vida humana. “Observe que é da nossa cultura afastar do convívio social as pessoas que estão morrendo ou estão muito doentes. Se não conseguimos nem lidar com a morte cotidiana, como vamos lidar com a sensação de perda do mundo?”, questiona Marisa Moura Verdade, doutora em psicologia do desenvolvimento humano e pesquisadora na área de psicologia da morte.
Um vídeo produzido pelo Greenpeace, em que aparecem imagens de desastres provocados pelas mudanças climáticas ao som de What a Wonderful World e a mensagem “Lembra quando a sua geração queria mudar o mundo? Parabéns! Vocês conseguiram”, pode ser um soco no estômago. Mas será também um motor de transformação?
Para Cristina Carvalho Pinto, uma das mais respeitadas publicitárias do País e fundadora da agência especializada em mercado ético, a Full Jazz, a resposta é taxativa: “Todo catastrofismo é anti-sustentabilidade. Não é possível construir nada sem uma visão positiva do mundo”. Cristina é crítica feroz desse tipo de estratégia, mas é também propositiva. Sua idéia de eficiência para a comunicação da sustentabilidade consiste na prática ancestral de contar histórias.
“Você já se perguntou por que as telenovelas têm a maior audiência do horário nobre?” Ela mesma responde: “Porque nos ajudam a rever a nossa própria existência através das histórias de terceiros. É um processo empático. Eu imediatamente entro numa conexão muito além do racional”. Como exemplo de uma boa história, ela cita a guinada do magnata do petróleo T. Boone Pickens.
Depois de enriquecer espetacularmente com a exploração de combustíveis fósseis no Texas, Pickens foi ao Congresso americano no final de julho para apresentar um plano de substituição da matriz energética nacional por fontes renováveis – pela encomenda do plano pagou US$ 50 milhões, e mais US$ 8 milhões na maior fazenda de energia eólica do mundo, com previsão de entrada em funcionamento para 2014. “São essas histórias que precisam aparecer. Precisamos inspirar as pessoas, e não aterrorizá-las”, diz Cristina.
Segundo Ana Paula, o sentimento de culpa raramente produz atitudes construtivas: “A culpa geralmente entra num ciclo vicioso em que a pessoa repete o comportamento exatamente por se sentir impotente diante do que está causando esse sentimento”. A psiquiatra compara o catastrofismo ambiental com as antigas campanhas de combate ao uso de drogas, na época em que reinava o bordão “A Droga Mata”. “Quando o adolescente usa a droga, ele percebe que não morre. Da mesma forma, uma pessoa que toma um banho de duas horas não sente o impacto ambiental daquela atitude. Educar é melhor que convencer”, reflete.
PENSO, LOGO DESISTO
O assistente editorial Bruno Correia considera-se imune aos efeitos dramáticos das campanhas socioambientais. “Eu fico sabendo dos números do desmatamento na Amazônia, mas é uma coisa tão grande que eu não consigo compreender. Nunca estive na Amazônia e também nunca estive nas geleiras que estão derretendo.”
Mesmo assim, fica consternado ao constatar o enorme volume de papel que vai para o lixo na empresa onde trabalha. Abriu mão do carro para andar de ônibus, só compra os produtos eletrônicos mais econômicos e trocou todas as lâmpadas incandescentes da sua casa pelas fluorescentes. Esta última atitude lhe rendeu uma decepção, quando descobriu que as novas lâmpadas contêm elementos tóxicos que podem ter mais impacto ambiental na hora do descarte.
“Eu achei que estivesse ajudando. Agora fiquei mal com isso, não sei o que fazer”, lamenta. O testemunho de Bruno é bastante significativo para duas questões centrais no debate sobre a sensibilização do público para a causa ambiental. A primeira diz respeito ao esforço de abstração para vincular ações do cotidiano aos impactos no meio ambiente distante, assim como para incorporar a noção de que habitamos um complexo sistema chamado planeta. “É uma abstração muito grande, eu sou habitante de um pedacinho só desse planeta. Ver o mundo como a casa da humanidade é muito difícil”, considera Marisa.
A segunda questão é a responsabilidade de trabalhar com uma quantidade enorme de informações, que raramente são conclusivas, como o caso da escolha das lâmpadas. “Se por um lado a gente tem que ter consciência, a gente também tem que ter em mãos a possibilidade de executar isso com o mínimo de trabalho”, reivindica Bruno.
Para Eda Tassara, coordenadora do Laboratório de Psicologia Sócio-Ambiental e Intervenção (Lapsi), da USP, a humanidade armou sua própria arapuca quando se afastou do pensamento integrado humanístico que formou alguns dos maiores pensadores até o fim do século XIX, para criar uma lógica cada vez mais fragmentada e massificada, ao passo que a realidade humana se tornou continuamente mais complexa.
“É uma dificuldade, porque requer um pensamento sistêmico. E, hoje em dia, quem é que tem esse tipo de formação? As informações recebidas são episódicas e fragmentadas. É preciso inserir isso num contexto de continuidade, mas falta instrumental analítico às pessoas”, explica.
Para ilustrar sua ideia, Eda abre um precedente como psicóloga e narra seu próprio sonho recorrente: ela tenta se comunicar com alguém, mas não lembra o número de telefone, ou lembra, mas o celular está desconectado, ou está fora do País e quer voltar, mas não encontra o passaporte. “Isso é um eco do mundo contemporâneo, onde você sabe que não consegue mais ter o controle da sua existência na amplitude das informações que recebe”, interpreta.
A FORÇA DO HÁBITO
Carlos Aymar encontrou sua própria resposta para esse mal-estar na forma de uma mudança radical. No começo dos anos 1980, abandonou o curso de arquitetura em São Paulo e mudou-se para a Praia de Barra do Una, no município de São Sebastião, à época com apenas 300 habitantes. Atualmente, orgulha-se do fato de que da sua casa “não sai lixo”. O que é orgânico vai para o quintal, o que é seco vai para a coleta seletiva, garantida pela prefeitura.
Quando questionado se os moradores dos grandes centros urbanos têm as mesmas oportunidades que ele para uma vida mais sustentável, Carlos diz que não: “O diferencial é que, na grande cidade, já tem tudo modelado. Eu aqui ainda vejo a possibilidade de novos rumos de desenvolvimento”. Mesmo assim, ele cobra a responsabilização dos indivíduos, onde quer que morem: “Eu não dependo do mercado. Se eu não quiser, eu não peço a sacolinha de plástico no supermercado. É uma questão de postura”.
A postura a que ele se refere abarca necessariamente a mudança de hábitos, algo que 9 em cada 10 pessoas consideram uma missão penosa. Mas por que, afinal, é tão difícil alterá-los? Em Humano, Demasiado Humano, Friedrich Nietzsche define o “costume” como a junção do agradável ao útil: “O usual faz-se mais facilmente, melhor, portanto, com mais agrado, sente-se nisso um prazer e sabe-se, por experiência, que o habitual deu bom resultado”.
Segundo Ana Paula, o cérebro humano é programado para economizar energia, graças a uma resposta adaptativa que não evoluiu desde os tempos das cavernas. Quando se incorpora um hábito, o cérebro decora aquele comportamento e, ao reproduzi-lo no modo “piloto automático”, economiza energia. Alterá-lo implica, portanto, um desgaste.
“Toda mudança gera estresse, mesmo que seja uma coisa boa, como o nascimento de uma criança, por exemplo. Quando se muda alguma coisa, o que mais tem é reclamação”, diz a psiquiatra. Se tomarmos como certas as duas explicações, a médica e a filosófica, veremos que a escolha individual se coloca entre o prazer e o estresse. Não exatamente um dilema.
Alheio a essa divagação, o jornalista Iberê Thenório fundou em 2007 o blog Atitude Verde para propor um desafio: demonstrar que seria possível viver uma vida 100% sustentável de uma forma 100% agradável. A tese ainda não se confirmou na prática. “Eu queria parar de usar o carro, o elevador, de comer carne… Mas vi que daria muito trabalho e que o melhor era descobrir as soluções aos poucos e ir colocando no blog”, revela.
Felizmente, há outros determinantes para o comportamento humano, além do eventual prazer proporcionado pela estagnação. “Separar lixo, por exemplo, dá trabalho. Evitar agrotóxicos, transgênicos, dá trabalho. Mas, dependendo da forma como isso é encarado, pode também ter o prazer”, diz Iberê. Para ele, a motivação está mais em propagar uma cultura de sustentabilidade do que no efeito prático de suas ações individuais, como a energia elétrica economizada ou o aparelho eletrônico que deixou de ser comprado. “Para mim, mais importante que a mudança de comportamento é a mudança de mentalidade”, conclui.
AGENDA 21 DA COZINHA
Se é verdade que a ideia da sustentabilidade no cotidiano pode ser confusa ou, até mesmo, contraditória, ao menos uma mensagem parece emergir de maneira bastante clara: é preciso reavaliar as práticas de consumo e a direção é a parcimônia. É algo que não se resolve apenas com a escolha de “produtos verdes” ou com práticas facilitadas de compensação, como a neutralização de carbono. Como aponta Iberê, tão ou mais importante que as emissões evitadas ou a garrafa pet reciclada é a oportunidade de renovar uma lógica cultural que dá sentido ao consumo.
O resultado é que o consumidor – talvez até mais que o cidadão – entrou para o centro desse debate, transformado ora em súdito do mercado, porque estaria refém do que as empresas oferecem, ora em soberano, porque teria condições de mandar e desmandar no mercado com o poder da própria carteira.
Em seu livro Consumo Verde, Democracia Ecológica e Cidadania: Possibilidades de Diálogo?, a socióloga Fátima Portilho chama esse processo de “ambientalização do cotidiano” ou “agenda da mesa da cozinha” – o momento em que o tema ambiental transcende a alçada dos partidos políticos, do Estado e das empresas e passa a se instalar também na esfera individual.
Para Fátima, essa é a forma de materializar e dar concretude aos novos valores, o que atribui ao ato de comprar uma nova função ética e política. Mas, assim como o velho consumismo, associado a conotações pejorativas como alienação e individualismo, a nova variante também se presta à distinção social.
“Consumir não é uma prática individualizada, é sempre relacional”, diz a socióloga, “A cada vez que pratico o consumo consciente, eu me sinto parte de um todo, até de uma comunidade imaginária. Quanto mais eu me sinto parte da causa, mais eu sinto que as minhas ações são importantes.”
A outra face da mesma moeda seria a sensação de isolamento. Desguarnecidos desse senso de coletividade, alguns consumidores podem desconfiar de que suas escolhas não passam de ação marginal ineficaz, diante da ação contrária da maioria. Para esse tipo de crise, o antídoto recomendado por Fátima é “coletivizar-se”: “Trocar com os vizinhos, organizar um grupo no bairro, escrever para o jornal… No Rio de Janeiro, por exemplo, temos as redes ecológicas que são cooperativas de consumidores que compram produtos orgânicos, evitando os atravessadores. No fundo, a idéia de ‘cada um faz a sua parte’ é muito legal, mas pode ser bastante desanimadora também”.
Tão importante quanto coletivizar, segundo Fátima, é a co-responsabilização dos diferentes atores. “Essa ‘culpabilização’ exclusivamente para o lado do consumidor é extremamente problemática e ineficiente, porque é limitada”. Admitir que o consumidor não tem o condão de mudar o mundo sozinho é também empoderá-lo para cobrar de empresas e governos as reformas sistêmicas necessárias.
Em última análise, todos esses caminhos fazem parte de um processo paulatino, que requer paciência e criatividade. São virtudes que dificilmente despontam num ambiente de medo, emoção que convém mais à impulsividade e à irracionalidade. Talvez por isso, a publicitária Cristina Carvalho Pinto tenha resumido a questão nessa única ideia: “Sustentabilidade é tema para os corajosos de primeira linha”.[:en]O medo e a culpa pela crise ambiental global já viraram caso para o divã. PÁGINA 22 propõe uma investigação psíquica para iluminar as alternativas transformadoras entre a alienação e o catastrofismo
Quando Christopher McCandless se formou em História e Antropologia na Emory University, no estado da Geórgia (EUA), seus planos não incluíam iniciar uma carreira ou constituir uma família. Em lugar disso, o jovem de 21 anos doou todo dinheiro que tinha para instituições de caridade, literalmente queimou os trocados que restavam, e lançou-se em uma jornada para viver longe da civilização.
Trabalhava quando necessário, mas na maior parte do tempo viveu do que a natureza oferecia em cavernas e acampamentos improvisados. Em busca do isolamento absoluto no ambiente selvagem, chegou até as montanhas do Alasca, onde morreu de fome, dois anos após o começo de sua viagem. McCandless tornou-se um símbolo da inconformidade com os valores da sociedade capitalista, graças a Jon Krakaeur, que conta sua hitória no livro Into the Wild, e ao filme homônimo de Sean Penn.
McCandless morreu em 1992. Fosse 2008, é bem provável que as especulações sobre os motivos de sua escolha incluíssem também o diagnóstico tardio de ecoansiedade.
No país do consumismo e o maior poluidor do mundo, a nova síndrome virou alvo de inúmeros debates e reportagens. Trata-se da crise de ansiedade desencadeada pela consciência dos rumos da civilização, dos impactos ambientais decorrentes da lógica de produção e consumo, da perspectiva apocalíptica das mudanças climáticas e da parcela inafastável de responsabilidade que recai sobre cada ser humano.
Bastou passar por uma banca de jornal e deparar-se com a manchete da revista Time sobre o aquecimento global – “Be Worried. Be very worried” –, para que a jornalista Liz Galst tivesse um crise de tremedeira, suor e palpitações. Sua busca por redenção e respostas tranformou-se na reportagem de capa “Eco- Anxiety”, na revista Plenty, publicada em 2006. Em um vídeo disponível no portal YouTube, um “ecoansioso” participa de uma dinâmica de grupo organizada por uma “ecoterapueta”, durante a qual declara, mortificado: “Não consigo mais viver sabendo que estamos matando a nossa mãe”, referindo-se ao planeta Terra.
A discussão desse fenômeno pode até soar a invencionisse, principalmente na esteira da moda de associar o prefixo “eco” a todo tipo de conceito. Mas, tenha o nome que tiver, esse tipo de reação extremada pode facilmente acometer ambientalistas de plantão em outros cantos do mundo, inclusive no Brasil. Suas causas estão disseminadas e supostamente residem na profusão de informações ambientais, por vezes catastróficas e, noutras vezes, contraditórias.
“Quando vejo cada vez mais os meus pacientes decididos a não terem filhos porque não sabem o que vai ser do mundo, imagino que as pessoas estão realmente sob grande pressão”, conta a psiquiatra Ana Paula Carvalho.
Nessa toada, as boas intenções podem acabar tendo o mesmo fim simbólico de McCandless, isoladas e sem esperança. Como diz Al Gore no filme Uma Verdade Inconveniente, algumas pessoas passam diretamente do estágio da negação da crise ambiental global para o de paralisante desespero. Como fazer com que as pessoas estacionem em um meio do caminho que represente atitudes produtivas e inovadoras pode ser a pergunta do século.
O FIM ESTÁ PRÓXIMO
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 2003, o psicanalista Contardo Calligaris especula sobre as motivações psíquicas do movimento ambientalista. Ele expõe a aparente contradição entre o desejo de transformação e o de perenidade: “Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do Cosmos imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza”.
Calligaris conclui que nossa inquietude diante da fragilidade dos sistemas naturais está relacionada com a incapacidade de enfrentar e aceitar a nossa própria mortalidade.
Se a premissa estiver correta, associar a mensagem socioambiental com a idéia de fim dos tempos pode torná-la um tabu, assim como a finitude da vida humana. “Observe que é da nossa cultura afastar do convívio social as pessoas que estão morrendo ou estão muito doentes. Se não conseguimos nem lidar com a morte cotidiana, como vamos lidar com a sensação de perda do mundo?”, questiona Marisa Moura Verdade, doutora em psicologia do desenvolvimento humano e pesquisadora na área de psicologia da morte.
Um vídeo produzido pelo Greenpeace, em que aparecem imagens de desastres provocados pelas mudanças climáticas ao som de What a Wonderful World e a mensagem “Lembra quando a sua geração queria mudar o mundo? Parabéns! Vocês conseguiram”, pode ser um soco no estômago. Mas será também um motor de transformação?
Para Cristina Carvalho Pinto, uma das mais respeitadas publicitárias do País e fundadora da agência especializada em mercado ético, a Full Jazz, a resposta é taxativa: “Todo catastrofismo é anti-sustentabilidade. Não é possível construir nada sem uma visão positiva do mundo”. Cristina é crítica feroz desse tipo de estratégia, mas é também propositiva. Sua idéia de eficiência para a comunicação da sustentabilidade consiste na prática ancestral de contar histórias.
“Você já se perguntou por que as telenovelas têm a maior audiência do horário nobre?” Ela mesma responde: “Porque nos ajudam a rever a nossa própria existência através das histórias de terceiros. É um processo empático. Eu imediatamente entro numa conexão muito além do racional”. Como exemplo de uma boa história, ela cita a guinada do magnata do petróleo T. Boone Pickens.
Depois de enriquecer espetacularmente com a exploração de combustíveis fósseis no Texas, Pickens foi ao Congresso americano no final de julho para apresentar um plano de substituição da matriz energética nacional por fontes renováveis – pela encomenda do plano pagou US$ 50 milhões, e mais US$ 8 milhões na maior fazenda de energia eólica do mundo, com previsão de entrada em funcionamento para 2014. “São essas histórias que precisam aparecer. Precisamos inspirar as pessoas, e não aterrorizá-las”, diz Cristina.
Segundo Ana Paula, o sentimento de culpa raramente produz atitudes construtivas: “A culpa geralmente entra num ciclo vicioso em que a pessoa repete o comportamento exatamente por se sentir impotente diante do que está causando esse sentimento”. A psiquiatra compara o catastrofismo ambiental com as antigas campanhas de combate ao uso de drogas, na época em que reinava o bordão “A Droga Mata”. “Quando o adolescente usa a droga, ele percebe que não morre. Da mesma forma, uma pessoa que toma um banho de duas horas não sente o impacto ambiental daquela atitude. Educar é melhor que convencer”, reflete.
PENSO, LOGO DESISTO
O assistente editorial Bruno Correia considera-se imune aos efeitos dramáticos das campanhas socioambientais. “Eu fico sabendo dos números do desmatamento na Amazônia, mas é uma coisa tão grande que eu não consigo compreender. Nunca estive na Amazônia e também nunca estive nas geleiras que estão derretendo.”
Mesmo assim, fica consternado ao constatar o enorme volume de papel que vai para o lixo na empresa onde trabalha. Abriu mão do carro para andar de ônibus, só compra os produtos eletrônicos mais econômicos e trocou todas as lâmpadas incandescentes da sua casa pelas fluorescentes. Esta última atitude lhe rendeu uma decepção, quando descobriu que as novas lâmpadas contêm elementos tóxicos que podem ter mais impacto ambiental na hora do descarte.
“Eu achei que estivesse ajudando. Agora fiquei mal com isso, não sei o que fazer”, lamenta. O testemunho de Bruno é bastante significativo para duas questões centrais no debate sobre a sensibilização do público para a causa ambiental. A primeira diz respeito ao esforço de abstração para vincular ações do cotidiano aos impactos no meio ambiente distante, assim como para incorporar a noção de que habitamos um complexo sistema chamado planeta. “É uma abstração muito grande, eu sou habitante de um pedacinho só desse planeta. Ver o mundo como a casa da humanidade é muito difícil”, considera Marisa.
A segunda questão é a responsabilidade de trabalhar com uma quantidade enorme de informações, que raramente são conclusivas, como o caso da escolha das lâmpadas. “Se por um lado a gente tem que ter consciência, a gente também tem que ter em mãos a possibilidade de executar isso com o mínimo de trabalho”, reivindica Bruno.
Para Eda Tassara, coordenadora do Laboratório de Psicologia Sócio- Ambiental e Intervenção (Lapsi), da USP, a humanidade armou sua própria arapuca quando se afastou do pensamento integrado humanístico que formou alguns dos maiores pensadores até o fim do século XIX, para criar uma lógica cada vez mais fragmentada e massificada, ao passo que a realidade humana se tornou continuamente mais complexa.
“É uma dificuldade, porque requer um pensamento sistêmico. E, hoje em dia, quem é que tem esse tipo de formação? As informações recebidas são episódicas e fragmentadas. É preciso inserir isso num contexto de continuidade, mas falta instrumental analítico às pessoas”, explica.
Para ilustrar sua ideia, Eda abre um precedente como psicóloga e narra seu próprio sonho recorrente: ela tenta se comunicar com alguém, mas não lembra o número de telefone, ou lembra, mas o celular está desconectado, ou está fora do País e quer voltar, mas não encontra o passaporte. “Isso é um eco do mundo contemporâneo, onde você sabe que não consegue mais ter o controle da sua existência na amplitude das informações que recebe”, interpreta.
A FORÇA DO HÁBITO
Carlos Aymar encontrou sua própria resposta para esse mal-estar na forma de uma mudança radical. No começo dos anos 1980, abandonou o curso de arquitetura em São Paulo e mudou-se para a Praia de Barra do Una, no município de São Sebastião, à época com apenas 300 habitantes. Atualmente, orgulha-se do fato de que da sua casa “não sai lixo”. O que é orgânico vai para o quintal, o que é seco vai para a coleta seletiva, garantida pela prefeitura.
Quando questionado se os moradores dos grandes centros urbanos têm as mesmas oportunidades que ele para uma vida mais sustentável, Carlos diz que não: “O diferencial é que, na grande cidade, já tem tudo modelado. Eu aqui ainda vejo a possibilidade de novos rumos de desenvolvimento”. Mesmo assim, ele cobra a responsabilização dos indivíduos, onde quer que morem: “Eu não dependo do mercado. Se eu não quiser, eu não peço a sacolinha de plástico no supermercado. É uma questão de postura”.
A postura a que ele se refere abarca necessariamente a mudança de hábitos, algo que 9 em cada 10 pessoas consideram uma missão penosa. Mas por que, afinal, é tão difícil alterá-los? Em Humano, Demasiado Humano, Friedrich Nietzsche define o “costume” como a junção do agradável ao útil: “O usual faz-se mais facilmente, melhor, portanto, com mais agrado, sente-se nisso um prazer e sabe-se, por experiência, que o habitual deu bom resultado”.
Segundo Ana Paula, o cérebro humano é programado para economizar energia, graças a uma resposta adaptativa que não evoluiu desde os tempos das cavernas. Quando se incorpora um hábito, o cérebro decora aquele comportamento e, ao reproduzi-lo no modo “piloto automático”, economiza energia. Alterá-lo implica, portanto, um desgaste.
“Toda mudança gera estresse, mesmo que seja uma coisa boa, como o nascimento de uma criança, por exemplo. Quando se muda alguma coisa, o que mais tem é reclamação”, diz a psiquiatra. Se tomarmos como certas as duas explicações, a médica e a filosófica, veremos que a escolha individual se coloca entre o prazer e o estresse. Não exatamente um dilema.
Alheio a essa divagação, o jornalista Iberê Thenório fundou em 2007 o blog Atitude Verde para propor um desafio: demonstrar que seria possível viver uma vida 100% sustentável de uma forma 100% agradável. A tese ainda não se confirmou na prática. “Eu queria parar de usar o carro, o elevador, de comer carne… Mas vi que daria muito trabalho e que o melhor era descobrir as soluções aos poucos e ir colocando no blog”, revela.
Felizmente, há outros determinantes para o comportamento humano, além do eventual prazer proporcionado pela estagnação. “Separar lixo, por exemplo, dá trabalho. Evitar agrotóxicos, transgênicos, dá trabalho. Mas, dependendo da forma como isso é encarado, pode também ter o prazer”, diz Iberê. Para ele, a motivação está mais em propagar uma cultura de sustentabilidade do que no efeito prático de suas ações individuais, como a energia elétrica economizada ou o aparelho eletrônico que deixou de ser comprado. “Para mim, mais importante que a mudança de comportamento é a mudança de mentalidade”, conclui.
AGENDA 21 DA COZINHA
Se é verdade que a ideia da sustentabilidade no cotidiano pode ser confusa ou, até mesmo, contraditória, ao menos uma mensagem parece emergir de maneira bastante clara: é preciso reavaliar as práticas de consumo e a direção é a parcimônia. É algo que não se resolve apenas com a escolha de “produtos verdes” ou com práticas facilitadas de compensação, como a neutralização de carbono. Como aponta Iberê, tão ou mais importante que as emissões evitadas ou a garrafa pet reciclada é a oportunidade de renovar uma lógica cultural que dá sentido ao consumo.
O resultado é que o consumidor – talvez até mais que o cidadão – entrou para o centro desse debate, transformado ora em súdito do mercado, porque estaria refém do que as empresas oferecem, ora em soberano, porque teria condições de mandar e desmandar no mercado com o poder da própria carteira.
Em seu livro Consumo Verde, Democracia Ecológica e Cidadania: Possibilidades de Diálogo?, a socióloga Fátima Portilho chama esse processo de “ambientalização do cotidiano” ou “agenda da mesa da cozinha” – o momento em que o tema ambiental transcende a alçada dos partidos políticos, do Estado e das empresas e passa a se instalar também na esfera individual.
Para Fátima, essa é a forma de materializar e dar concretude aos novos valores, o que atribui ao ato de comprar uma nova função ética e política. Mas, assim como o velho consumismo, associado a conotações pejorativas como alienação e individualismo, a nova variante também se presta à distinção social.
“Consumir não é uma prática individualizada, é sempre relacional”, diz a socióloga, “A cada vez que pratico o consumo consciente, eu me sinto parte de um todo, até de uma comunidade imaginária. Quanto mais eu me sinto parte da causa, mais eu sinto que as minhas ações são importantes.”
A outra face da mesma moeda seria a sensação de isolamento. Desguarnecidos desse senso de coletividade, alguns consumidores podem desconfiar de que suas escolhas não passam de ação marginal ineficaz, diante da ação contrária da maioria. Para esse tipo de crise, o antídoto recomendado por Fátima é “coletivizar-se”: “Trocar com os vizinhos, organizar um grupo no bairro, escrever para o jornal… No Rio de Janeiro, por exemplo, temos as redes ecológicas que são cooperativas de consumidores que compram produtos orgânicos, evitando os atravessadores. No fundo, a idéia de ‘cada um faz a sua parte’ é muito legal, mas pode ser bastante desanimadora também”.
Tão importante quanto coletivizar, segundo Fátima, é a co-responsabilização dos diferentes atores. “Essa ‘culpabilização’ exclusivamente para o lado do consumidor é extremamente problemática e ineficiente, porque é limitada”. Admitir que o consumidor não tem o condão de mudar o mundo sozinho é também empoderá-lo para cobrar de empresas e governos as reformas sistêmicas necessárias.
Em última análise, todos esses caminhos fazem parte de um processo paulatino, que requer paciência e criatividade. São virtudes que dificilmente despontam num ambiente de medo, emoção que convém mais à impulsividade e à irracionalidade. Talvez por isso, a publicitária Cristina Carvalho Pinto tenha resumido a questão nessa única ideia: “Sustentabilidade é tema para os corajosos de primeira linha”.