A ativista canadense Maude Barlow quer que as pessoas fiquem bravas ao ver uma garrafa de água mineral. Quando isso acontecer, diz, terão adquirido consciência para lidar com a crise que hoje faz da água o elemento mais visível das desigualdades no mundo. Estrela do documentário Flow e autora do livro Blue Covenant – The global water crisis and the coming battle for the right to water, com lançamento no Brasil previsto para janeiro de 2009, Maude critica a privatização dos recursos hídricos e a emergência de mercados que tratam a água como commodity. Ela acredita que, com a dificuldade no acesso à água limpa e potável, o mundo será forçado a declará-la um recurso compartilhado, gerido para proteger o ciclo hidrológico e a vida. O mais importante para que isso aconteça é mudar as práticas de produção de alimentos e, particularmente no Brasil, incluir a água nas discussões sobre os biocombustíveis. Exportar etanol, defende Maude, não significa exportar sustentabilidade.
Seu livro é um alerta sobre a crise global da água. Mas há diferentes problemas e abordagens – na Austrália, por exemplo, a seca se aprofunda e buscam-se soluções, como a dessalinização, enquanto no Brasil parece haver a sensação de que nunca faltará água. O que torna a crise global? Há soluções globais ou apenas abordagens locais?
O que faz a crise global é o fato de que ela é importante mesmo em lugares onde ainda tem água, porque há pessoas morrendo e isso vai mudar o cenário político e geopolítico. Lugares como a China, onde ainda tem bastante água, estão abusando terrivelmente e vão descobrir que terão de mudar suas escolhas econômicas, porque vão ficar sem água. O mundo vai mudar por causa da crise da água: haverá refugiados, pessoas que vivem em lugares onde não tem muita água vão se mudar para lugares onde tem mais água. Locais sem muita água vão depender de outros onde há água para produzir comida ou produtos – é o que chamamos de comércio virtual de água. Por exemplo, o Brasil é um grande exportador de água por meio de suas exportações de alimentos e, particularmente, de biocombustíveis, que absorvem uma enorme quantidade de água. A noção de que lugares como o Brasil e o Canadá – meu país – estão longe desse problema não é mais verdadeira. A solução para a crise mundial da água é começar a cuidar novamente, conservar, proteger as fontes, devolver água à natureza, adotar sistemas integrados de gestão e de regulação das bacias hidrográficas.
O Brasil iniciou um projeto de transposição do Rio São Francisco para levar água a partes do Semi-Árido Nordestino, inclusive para fins de irrigação. Quais as conseqüências de desconectar a água da terra?
Essa noção de que se pode tirar a água de onde ela foi posta pela natureza e levá-la para onde queremos, e então usá-la para irrigação, é como brincar de ser Deus. Você está tirando a água de um ecossistema em que ela é necessária para o funcionamento saudável do ciclo hidrológico e a mandando para outro lugar, e, provavelmente, vai acabar destruindo esse recurso. É isso, parece, que não conseguimos entender: o fato de que, ao removermos água dos rios ou aqüíferos, ou ao removermos a vegetação que retém a água na paisagem, podemos ficar sem água, podemos destruir ecossistemas inteiros e criar desertos. Quando fazemos isso, mudamos o ciclo hidrológico, reduzimos a quantidade de chuva em uma área. No Brasil, isso vem junto com a destruição da Amazônia, que, está provado, ajuda a diminuir a quantidade de chuva. Combinado com transposição e uso da água para irrigação massiva, o desmatamento afeta o ciclo hidrológico. As pessoas precisam começar a entender que existem conseqüências ambientais, e, portanto, humanas, desse tipo de comportamento. Eu acho que é um erro terrível para o Brasil fazer isso. Gostaria de dizer ao Brasil que olhasse para outros países que também acharam que tinham recursos ilimitados. É o caso do Mar de Aral, na antiga União Soviética. Na verdade, um lago tão grande que era chamado de mar, que foi usado para irrigar e plantar algodão, e agora está quase morto. Há outras regiões do mundo, e a China é uma delas, onde havia a premissa de que a água nunca acabaria.
Em alguns lugares, a forma usada pelos governos para garantir um fluxo ambiental mínimo nos rios e aqüíferos é comprar água de volta dos agricultores e irrigadores. A senhora é contrária a esse tipo de mercado para a água. Por quê?
Sou totalmente contra. Acho que, mesmo para um público empresarial, tornou-se senso comum dizer que a água é diferente de tênis ou carros, e não se pode submetê-la às mesmas regras de mercado, por ela ser insubstituível, finita e essencial à vida. É preciso ver a água de uma maneira diferente, com um conjunto de regras e regulações para conservá-la. A situação na Austrália, na Califórnia, no Texas e em outros lugares onde existe um mercado de água mostra que, em vez de deixar a água nos rios e aqüíferos onde ela é necessária para um ciclo hidrológico saudável, permite-se que ela seja desconectada da terra, que seja comercializada, vendida, até mesmo legada em testamento.
No caso da Austrália, a água é removida e enviada para as grandes cidades, que, quando acabam de usar, jogam a água no mar, não de volta para a bacia hidrográfica. Quando deixamos que decisões sobre a água sejam tomadas pelo mercado, elas são baseadas no lucro, não em qualo melhor uso humano ou ambiental para a água. Não é sobre como a água pode ser usada pelo ecossistema e, portanto, para o funcionamento saudável do ciclo da vida, mas como ela pode gerar lucro. A última novidade na Austrália é que estão deixando grandes companhias de investimento comercializar os direitos à água, portanto, não só deixam o mercado decidir uma questão de vida ou morte, como deixam o mercado externo decidir. E essas empresas de investimento não se importam com o meio ambiente ou com os australianos, mas em fazer dinheiro – e, se há dinheiro a ser feito com a escassez, então o valor da água sobe.
Qual é a alternativa?
É o que muitos lugares fizeram e outros estão começando a fazer, é declarar a água, inclusive a subterrânea, patrimônio comum, um public trust que não pertence a ninguém, mas ao povo daquele país ou comunidade. Um exemplo é o estado americano de Vermont, que acaba de aprovar uma lei declarando a água um public trust que pertence a todo o povo de Vermont, às futuras gerações e aos ecossistemas. Eles estabeleceram prioridades, dizendo que, em tempos de escassez, a primeira necessidade é dispor de água para beber, a segunda, para produzir alimentos localmente para que as pessoas possam comer, e, em um distante terceiro lugar, estão os objetivos comerciais, inclusive a produção de alimentos para exportação.
Então eu diria que a alternativa é declarar a água como patrimônio do povo, dos ecossistemas que nos dão vida, e das futuras gerações. E instituir um sistema de permissões baseado na disponibilidade de água e em um conjunto de princípios que coloca as comunidades locais em primeiro lugar. Isso terá que acontecer ao redor do mundo, e vai mudar a economia global, vai significar que teremos de parar de pensar em crescimento ilimitado e começar a buscar maneiras mais sustentáveis de viver e, particularmente, de produzir alimentos.
A legislação brasileira também segue esses princípios. Existem outros lugares que possuem o mesmo tipo de legislação?
Alguns outros estados da região americana de New England; a província canadense do Québec não aprovou legislação, mas está analisando. A Europa não usa a mesma linguagem, mas aprovou legislação em 2000 para proteger todos os cursos d’água para o povo europeu e implantou a gestão sustentável e integrada das bacias, de forma que, se uma bacia cruza as fronteiras políticas, os países têm que trabalhar juntos para protegê-la. Há países que declararam a água um direito humano, o que também é uma forma de dizer que é um public trust. O Uruguai foi o primeiro país do mundo a realizar um referendo nacional – eles aprovaram uma resolução que obrigou uma emenda à Constituição, em que se estabelece que a água é um direito humano, o que é o mesmo do que estabelecer um public trust. Na Colômbia, um grupo chamado Ecofondo acaba de reunir os 2 milhões de assinaturas necessárias para chamar um plebiscito. No México também há grupos colhendo assinaturas para um referendo. O que está acontecendo é que estamos começando a ver um tipo de movimento contrário à noção de água como commodity, como um bem que visa o lucro, como uma forma de ter mais exportações, e em defesa da água como um elemento comum, um recurso compartilhado, que precisa ser protegido.
No Brasil a água é considerada um bem público dotado de valor econômico, o que permite cobrar pelo seu uso. Como funciona o public trust? Há cobrança pela água?
Em Vermont era um vale-tudo, todas as grandes companhias de água engarrafada, por exemplo, vinham, alugavam ou compravam terras, abriam um poço para alcançar o lençol freático e bombeavam. Os grupos locais reclamavam que isso não podia acontecer, mas as companhias mandavam a água para a sedenta Los Angeles, para a Flórida e outros lugares. Então, Vermont e outros estados da Nova Inglaterra começaram a aprovar leis em que se dizia: “Essa água subterrânea é nossa, vocês não podem vir e tirá-la daqui”. Mesmo que a companhia tenha uma permissão, é preciso saber se ela é sustentável, se, ao retirar água, não se destrói o lençol. E é preciso pagar por ela e, em alguns casos, criar empregos locais. A mesma história está acontecendo em outros lugares, como na Índia, onde as empresas estabelecem plantas engarrafadoras e bombeiam a água, porque os políticos locais querem o dinheiro das licenças. Uma pequena comunidade chegou até a Suprema Corte e está forçando as plantas a fechar. Essas lutas estão acontecendo em todos os lugares.
O Brasil exporta água por meio da soja, da carne e de outros produtos, mas as receitas das exportações são importantes e o País, aos poucos, começa a reduzir a pobreza e a combater as desigualdades. O respeito pelas fontes locais de água necessariamente implica menos comércio, ou há instâncias em que o comércio virtual pode ajudar a economizar água e a ajudar a melhorar a vida das pessoas?
Essa é a teoria, a idéia de que as partes do mundo que têm água, ou que não precisam de irrigação para produzir alimentos, usem sua água para produzir e exportar alimentos para lugares que não têm água. Claro que isso nem sempre funciona assim, porque não é essa lógica que determina como nos comportamos. Os dois maiores exportadores de água do mundo são os Estados Unidos e a Austrália, e ambos estão ficando sem água. E países da África estão usando seus patéticos recursos… a história que vem à mente é a do belo Lago Naivasha, no Quênia, que está morrendo porque fornece rosas à Europa. Produzir rosas leva muita água e o lago está cercado de grandes corporações que bombeiam água. Se você compra uma rosa no Dia dos Namorados em qualquer lugar da Inglaterra ou da Europa, ela provavelmente veio do Lago Naivasha, e é provável que o lago morra em cinco ou dez anos.
Então, a teoria supostamente é que os países ricos em água produzem as safras mais intensivas em água e exportam. Mas na realidade não é sempre assim. Mesmo quando isso ocorre, em países como o Canadá e o Brasil, nós somos superotimistas sobre o quanto nossos recursos vão durar. Pensando em outro recurso, o Canadá tinha tanto bacalhau na Costa Atlântica que diziam que os pescadores há 100 ou 200 anos podiam andar sobre os cardumes, que o oceano era como um lençol de peixes. Agora eles se foram. Essa noção de que os recursos não se acabam simplesmente não é verdadeira.
É uma questão de sustentabilidade, de pensar a longo prazo?
O problema é que não estamos usando a água de maneira sustentável, estamos extraindo, e eu uso esse termo de maneira muito deliberada. Estamos extraindo água subterrânea, estamos explorando nossos rios, muitos dos grandes rios do mundo não alcançam mais o oceano. No meu país nós nem mapeamos nossa água subterrânea, nem sabemos o quanto temos e se é sustentável permitir seu uso para exportar gado, para produzir e exportar grãos, que são intensivos em água, e agora para produzir uma enorme quantidade de biocombustíveis. A província canadense de Alberta fornece aos Estados Unidos muito petróleo pesado, que destrói grandes quantidades de água, porque é preciso extrair esse óleo da areia. Um dos principais pesquisadores de recursos hídricos do mundo, o professor David Schindler, diz que Alberta vai se tornar uma província sem água em 10 a 15 anos se continuarmos a usar desse jeito. E Alberta é um daqueles lugares que tinham água sem fim. Bem, a novidade é que não existe algo como água sem fim, nem no Brasil.
Mas o óleo pesado é um combustível fóssil. No caso do Brasil, os biocombustíveis ajudam a reduzir as emissões de CO2. Ao mesmo tempo, o Brasil acaba de encontrar grandes reservas de petróleo, poderíamos parar de produzir etanol, proteger a terra e a água e passar a queimar petróleo. É uma equação difícil.
É um paradoxo terrível, e eu concordo que é um caso diferente do de Alberta, embora no final a questão seja o dinheiro e, desse ponto de vista, há semelhanças. Porque agora o Brasil está produzindo cana-de-açúcar não só para seu próprio uso de biocombustíveis, mas para exportar. E isso tem a ver com dinheiro, não tem a ver com exportar sustentabilidade. Acho que há um ponto em que o objetivo deixa de ser apenas reduzir as emissões de gases de efeito estufa e a dependência dos combustíveis fósseis, e o que importa é o dinheiro. E essa é a parte difícil, porque você quer que seu país se torne mais rico, não quer negar qualidade de vida às pessoas.
É aqui que eu digo: é um equilíbrio o que temos de encontrar. E, quando o assunto é água, o que eu percebo é que ninguém está prestando atenção, não se inclui a água na equação quando se busca o equilíbrio. Para mim, os biocombustíveis são o exemplo perfeito de tentar solucionar um problema ao criar outro, porque não queremos ter menos carros e usar o transporte público, não queremos mudar nosso modo de vida. Em vez disso, achamos outra maneira, mas não paramos para pensar se temos como sustentar isso do ponto de vista da água. Cana-de-açúcar, como outros biocombustíveis, absorve enormes quantidades de água. Quando há crítica aos biocombustíveis, fala-se sobre a extensão de terra usada para alimentar carros em vez de pessoas e o efeito que isso tem nos preços dos alimentos em todo o mundo. Poucas pessoas se perguntam quanta água vai no processo e se temos essa água disponível. O Brasil pode argumentar que, sim, agora temos essa água. Mas eu digo que, nesse ritmo de crescimento dos biocombustíveis, vamos ver prejuízo para os recursos hídricos do Brasil.
A Califórnia deu grandes subsídios aos agricultores para produzirem biocombustíveis, e, de acordo com uma estimativa, eles vão precisar de um Rio Colorado inteiro e mais um terço para cumprir as projeções de produção. Bem, eles não têm outro Rio Colorado, na verdade, o rio está em “declínio catastrófico”, o Lago Mead – parte de um sistema de reservatórios que funciona como um seguro para o rio – vai desaparecer em 12 anos. É como a falência da Merrill Lynch e do Lehman Brothers, esses reservatórios também estão falindo, um a um.
Por que é tão difícil incluir água, um recurso vital, na equação?
Ainda não temos consciência, ainda pensamos na seca como algo cíclico ou dizemos que a causa é a mudança climática. Eu chamo isso de síndrome da mudança climática. Não vemos que o que estamos fazendo com a água tem impacto no clima, e que o que deveríamos fazer com a água poderia ser parte da resposta à mudança climática. Se você leva água de volta a um lugar árido, esfria a terra, o ar. Tratar melhor a água é uma das respostas ao aquecimento global. Acho que é porque todos aprendemos no primário que há uma quantidade fixa de água na Terra, que circula no ciclo hidrológico e não vai a outro lugar, não acaba, podemos usar quanto quisermos porque ela sempre volta para lagos e rios. Aprendemos esse mito da abundância e nunca desaprendemos.
A realidade é que, sim, a água ainda está em algum lugar na Terra, não é que desapareceu, mas não está mais acessível, estamos ficando sem água limpa, potável, no mundo. É isso que as pessoas ainda não entenderam e não sei o que as fará entender, por isso escrevi meu livro e passo meu tempo dando palestras e organizando as pessoas. Quando você tem essa consciência, você vê a água de maneira diferente. Nunca mais olha para uma garrafa d’água da mesma forma, água em uma garrafa plástica me deixa brava. Quero dizer às pessoas: por que bebem essa coisa em uma garrafa feita de combustíveis fósseis e químicos, quando a água que sai da sua torneira é, ou deveria ser, limpa e boa? Por que estamos fazendo isso?
Nem todo mundo tem água limpa na torneira, ou mesmo torneira. Então é também um problema de desigualdade, não é?
Sim, e é por isso que sempre falo sobre a crise ecológica e a crise de desigualdade juntas. É preciso colocá-las juntas, porque as pessoas pobres sofrem em todos os lugares, mas os casos extremos acontecem onde não há muita água. Os pobres em lugares com muita água podem estar mais ou menos bem em termos de água, mas aqueles que vivem em lugares onde não há muita água estão morrendo. Há locais em que o Banco Mundial forçou a entrada de companhias privadas em comunidades pobres e, se você não tem dinheiro para pagar as tarifas que elas estabelecem, não recebe água, é assim, simples. A água está disponível com base no lucro. Não digo que as pessoas não devam pagar pela água, ou pelo serviço, mas, quando uma grande corporação estabelece um preço muito alto, não há alternativa. Uma agência do governo pode estabelecer um preço baixo, de forma que não seja negado a ninguém o direto de suprir as necessidades básicas. Acima de uma necessidade, em caso de desperdício ou de abuso, então paga-se um preço alto.
Há maneiras de usar o mercado, se quisermos usar essa palavra, para ajudar as pessoas e a indústria a conservar, e para cobrar daqueles que têm lucro com a água. Mas não se deve negar água a ninguém no mundo porque as pessoas não podem pagar. Em Sandton, o distrito financeiro de Johannesburgo, na África do Sul, há esses lindos hotéis cinco-estrelas, com torres altas e brilhantes, separados de uma favela, onde não há água, por um rio em que há avisos sobre uma infestação de cólera. Eu estive lá para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em 2002. Nos hotéis havia essas garrafas d’água de boutique e, do outro lado do rio, as pessoas não tinham água, engarrafada ou não, e, portanto, tinham que usar a água do rio.
A água é o sinal mais visível da desigualdade no nosso mundo. E, à medida que o preço começa a subir, haverá enormes diferenças entre aqueles que têm acesso, porque podem comprar água engarrafada, podem tratar a água, colocá-la em piscinas e irrigar campos de golfe, e aqueles que não têm acesso. Em Detroit, Michigan, há três anos, 42 mil famílias ficaram sem água porque não podiam pagar suas contas de água. Então não acontece só nos países do chamado Terceiro Mundo, vamos ver essas desigualdades em todo o planeta.
Ao mesmo tempo, as empresas têm sido pressionadas a cortar o consumo, tratar os efluentes, pagar por serviços ambientais e obter a licença social para operar. Uma vez que não é tão fácil convencer as pessoas a mudar hábitos de consumo, essas corporações poderiam ser aliadas no movimento em defesa da água?
Primeiro, elas deveriam pagar muito mais pela água que usam. Muitas das empresas de água engarrafada, de alimentos e bebidas e as corporações do agribusiness têm acesso à água e não pagam por ela, ou pagam um mínimo. Eu vi, em Melbourne, na Austrália, uma planta que pagava coisa de 200 dólares pela água. Em segundo lugar, elas deveriam usar com base em um sistema de permissão, em conformidade com a sustentabilidade do recurso. Lugares como a Califórnia, que permitem uso massivo por companhias de agribusiness que exportam água, vão ter que controlar a situação, ou se arriscar a ficar sem água. É melhor estar à frente desse processo do que atrás, é melhor poder planejar. Basicamente é preciso assegurar que haja água suficiente para a saúde ecológica.
Depois vemos quanta água sobra e dividimos segundo um conjunto de princípios. É a única maneira de gerir a água, e isso provavelmente significa cortar o acesso ao uso pesado desse recurso natural pelos grandes usuários industriais. O grande culpado pela destruição da água no mundo são nossas práticas agrícolas, nossa agricultura industrial, a pecuária intensiva, o uso de químicos, nitratos, fertilizantes. O maior problema é a produção insustentável de alimentos, a exemplo da Revolução Verde, que destruiu enormes quantidades de água. A coisa mais importante que podemos fazer é mudar para práticas mais sustentáveis de produção de alimentos. Se as empresas querem trabalhar conosco para fazer isso acontecer, maravilha. Se as empresas resistirem a isso, então haverá confronto, porque no finalos governos vão ter que cuidar de suas populações, é o trabalho deles, e não tornar essas corporações ainda mais ricas.
Mas em geral é isso o que fazem.
Sim, é o que está acontecendo nos EUA, com a ajuda a essas grandes corporações financeiras – agora o governo, talvez, não tenha escolha. O problema é que, com a desregulamentação, cria-se uma situação em que quase certamente haverá conflito com as comunidades, que precisam de água. Sim, nós convidamos as empresas a trabalhar conosco, mas não aposto muito nisso porque o que tenho visto, mais com as grandes empresas do que com as pequenas, é que elas só querem saber de se apropriar, e depois fogem quando a água acaba.
Por que é diferente com as pequenas empresas?
Há algumas boas pessoas na comunidade empresarial que reconhecem a necessidade de práticas corporativas sustentáveis, e queremos que trabalhem conosco, não quero dizer que todas as empresas são más. A questão é se vão trabalhar para encontrar soluções conosco, com a população, ou se vão resistir e ser forçadas, no fim, ou porque acabou a água ou porque os políticos caíram em si e perceberam que têm de cuidar do povo.
E a outra ponta da equação? Há esforços sendo feitos para tornar transparente ao consumidor quanta água é usada na elaboração de diferentes produtos? Diante da falta de informação, como deve agir o consumidor?
O conceito de pegada da água está sendo desenvolvido, assim como foi desenvolvida a noção de pegada ecológica. Já está disponível para os EUA, e pode facilmente ser transferido e traduzido para outros lugares. Mostra quais são os usos da água, sabemos quanta água se gasta para pôr um bife no prato. Então, as pessoas poderiam comer um pouco menos de carne.
Sabemos quanta água vai em outros produtos, carros, computadores – os chips de computadores levam muita água. Estamos desenvolvendo essa noção da pegada da água para que as pessoas comecem a pensar que ela está embutida em nosso estilo de vida e em como mudá-lo. E estamos tentando desenvolver a consciência em torno do comportamento individual – o quão longo é o seu banho, se realmente precisa ter um gramado ou pode substituí-lo por alguma outra coisa que não precise de tanta água. Temos que mudar a noção de que, só porque você pode comprar água, pode usar o quanto quiser. É um processo difícil, um trabalho enorme, mas, se não compreendermos isso coletivamente e entendermos que não há lugar para se esconder de uma crise como essa, que é uma crise muito mais grave do que a de energia, então seremos responsáveis também coletivamente.