A tecnologia e a globalização entram como aliados do fenômeno que combate o status quo por meio da arte, e no qual o processo de mobilização é tão importante quanto a manifestação em si
Por Ana Cristina D’Angelo
Quando o artista francês Philippe Petit atravessava de uma torre gêmea à outra do World Trade Center em um cabo de aço, numa manhã de 1974, só sabia que a cena se fixaria no imaginário das pessoas. Isso se a performance desse certo. A correria de uma manhã no coração financeiro de Nova York foi interrompida pela imagem de um corpo frágil que se deitava no fio entre os prédios mais altos do mundo só para ver o céu ou que tirava um dos pés daquela linha fina, vista de tamanha distância, em um desafio-surpresa que levara meses para ser concretizado assim, como planejaram Petit e seus amigos: original, surpreendente e efêmero. O artista não justificou a ação como fez inúmeras outras vezes, lançando performances por um fio na catedral de Notre-Dame e em monumentos antes intocados pelo mundo, tramando ações em segredo.
Sem o aparato tecnológico, as insurgências poéticas de Philippe Petit renderam-lhe prisões, rápidas, e repercussão nas cidades por onde passou. A lembrança desse choque bem-humorado foi registrada no filme vencedor do Oscar de melhor documentário este ano, O Equilibrista. Como enfrentar quem usa o humor e a poesia? Petit não ambicionava mais do que aquele momento, não queria se eleger a cargo algum e, acima de tudo, era um boa-praça. Ainda que suas ações tenham ocorrido em sua maioria na década de 70, ali se reuniam características do arte-ativismo que vemos hoje: uma mescla de movimentos artísticos anteriores, ocupação do espaço público, urbano, planos e ações coletivas organizados na surdina, em que o processo é tão importante quanto o ato. Agora, o arte-ativismo conta com aliados fundamentais – a tecnologia e a globalização. “Se vai dar certo, só saberemos fazendo” é uma máxima de coletivos artísticos em suas intervenções.
Ir contra o capitalismo ou questionar o atual estágio do modelo econômico e seus danos – consumismo exagerado, controle invisível de grandes organizações, degradação ambiental – sem ser absorvido por ele é possível? Burlando o sistema de arte convencional e o aparato oficial da política, os arte-ativistas buscam essa brecha nos espaços públicos e onde haja interesse comum.
O termo surgiu pela primeira vez em artigo, de 1984, da teórica e ativista americana Lucy Lippard. Nesse texto, ela tenta diferenciar arte política, que faz uma reflexão do momento, do arte-ativista, que põe a mão na massa e se envolve com o cotidiano. Nesse sentido, o objeto de arte em si não tem tanta importância, explica o doutorando em Arte-Ativismo pela USP André Mesquita. “O processo e a convivência com os outros, colocando a arte na vida, são o que importa. Os coletivos têm esse espírito de fazer a coisa juntos e valorizar um campo de transversalidade, no qual a arte vaiconversar com a política, economia, arquitetura, com os movimentos sociais.”
Uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, em Seattle (EUA), pode ser considerada um marco no tipo de protesto que se alastrou pelo mundo. Pulverizados, com bastante uso de internet e mensagens de celular, os protestos de Seattle, além de tudo, ocorreram no centro do consumismo cool mundial, terra de nomes como Microsoft e Nintendo, onde ninguém suspeitava de uma insurgência de tamanha repercussão contra o sistema. Jovens simplesmente sentavam ao longo de uma rua, impedindo o acesso dos participantes à reunião que debateria a rodada do milênio, articulando movimentos sincronizados no espaço público, com o uso de fantasias e ataques a pontos polêmicos das discussões que as nações ricas levavam em portas fechadas.
Em Gênova, em 2001, quando se reuniam os países integrantes do G-8, os manifestantes repetiram a saraivada de protestos organizados com táticas de guerrilha e deixaram a polícia e os políticos perplexos. “Os movimentos arte-ativistas usam táticas e estratégias, como na guerra. A tática é usada pelo mais fraco – assim como na luta de boxe -, você está em território inimigo. Então transforma aquilo em uma linguagem subversiva. Os zapatistas usaram isso da melhor forma possível, conseguiram espaço na TV e no rádio, na selva se comunicavam pela internet, deram um viés radical para o uso da mídia”, analisa Mesquita.
Já o diretor editoral da Conrad (editora pioneira no lançamento de títulos ligados ao arte-ativismo com a coleção Baderna), Rogério Campos, avalia que o efeito-surpresa de Seattle tem relação com a crise das esquerdas pós-queda do Muro de Berlim. “O pensamento daquela hora era de que os jovens estavam alienados, e depois dos grandes protestos não queriam saber de nada, muito menos de política. Ali se percebeu que tinha gente pensando e articulando movimentos anticapitalismo da forma mais corrosiva possível: com humor”, sugere o diretor.
Um dos títulos da Conrad, considerado uma Bíblia por muitos, é o TAZ – Zona Autônoma Temporária, de Hakim Bey, que lançou a ideia de combater o poder criando espaços (virtuais ou não) de liberdade que surjam e desapareçam o tempo todo. Discutia-se até mesmo a identidade do autor do livro. No fim dos anos 80, o TAZ ficou circulando livremente na forma de panfleto e hoje é citado por teóricos que estudam as raves, o universo dos hackers, a ideia de organização fluida (mais sobre o TAZ na reportagem “A gente é o mundo que é a gente”, na edição 28 de Página22).
Acredita-se que o conceito de TAZ tenha inspirado muitas das táticas de rua dos manifestantes em Seattle. Mais de uma autoridade policial constatou, aterrorizada, que era muito difícil acompanhar a estratégia dos manifestantes de formar grupos aleatoriamente, atacar e depois desmanchar aquelas formações para se juntar em outros grupos, com novos objetivos.
Ao mesmo tempo que esses manifestos e ensaios de Hakim Bey recebiam a atenção de ativistas e das autoridades, passaram também a ganhar elogios entusiasmados por sua qualidade literária. “O TAZ instaurou isso do você-faz-e-sai-fora. Consolidar posições é um erro. Isso inspirou muita gente na questão da liderança de movimentos. Eles hoje se questionam o tempo todo”, analisa Campos.
Em menor escala que os grandes protestos das décadas de 60 e 70, o arte-ativismo também caminha para focos mais direcionados e específicos de protesto. Com o uso da tecnologia, o alcance é multiplicado e as fronteiras geográficas ficam menores. Esses protestos-contágio também passaram a ser adotados pelas causas da sustentabilidade, organizações ambientais criaram eventos como o Dia de Ação Global, a World Naked Ride Bike (Bicicletada Pelada) ou o Reclaim the Streets.
A cidade e a catraca
Movimentos com foco local também proliferam em torno de causas nascidas, às vezes, em um bairro. Em São Paulo, em 2004, um protesto ganhou proporções interessantes. Um coletivo chamado Contra Filé fazia um projeto sobre regiões da cidade, apoiado pelo Sesc. Elegeram a catraca como símbolo de separação e controle da cidade. As pessoas não conhecem o lugar onde moram e estão isoladas, foi a conclusão do grupo. A imagem também remetia a “catracas” na vida de cada um como controles invisíveis existentes no espaço urbano. Colocaram uma catraca velha no Largo do Arouche e lançaram ali um programa de “descatracalização da vida”.
Prefeitura e mídia reagiram, criticando o mau uso do patrimônio público. Mas o cartunista Laerte adorou a ideia e fez tirinhas com a catraca invisível, enquanto outros articulistas de jornais importantes absorveram a história, até que o vestibular da Fuvest elegeu a descatracalização da vida como tema de redação.
Em seguida, o símbolo foi usado por vários movimentos no País, pedindo transporte público gratuito. Outro caso emblemático teve como cenário o Edifício Prestes Maia, no centro da cidade. Tomado por sem-teto, o prédio passou por seguidas tentativas de desocupação pela polícia e, em 2006, o poder público precisou enfrentar antes a intervenção artística.
Os artistas se juntaram aos moradores do prédio, fazendo parte da ocupação, arrecadando livros, comida e passando os dias com os moradores ameaçados de despejo. “Um dia em que a polícia entrou e começou a dar tiros de bala de borracha, uma menina, disse que aí viu o que estava fazendo”, relata o pesquisador da USP André Mesquita, que entrevistou mais de 30 coletivos para a sua dissertação. Há críticas de que os artistas surgem nas situações-limite e, depois, desaparecem. No próprio blog dos artistas envolvidos com a ocupação do Prestes Maia, eles fazem um mea-culpa em charges e quadrinhos. “Tem gente que só participou do movimento e depois sumiu, e só apareceu mais tarde em jornais. A quem pertence o resultado final?”
As questões do espaço urbano tomam bastante a pauta dos movimentos. O termo “gentrificação”, por exemplo, foicunhado para se referir a áreas degradadas que o poder público toma para fazer moradias para a classe média. Limpezas urbanas ocorreram em Nova York, Barcelona e Berlim. Movimentos sociais de arte-ativismo organizaram uma publicação que narra episódios de gentrificação em diversas grandes metrópoles mundiais, na qualo episódio do Prestes Maia foi incluído.
Mas, diante do avanço e da desigualdade da produção capitalista e dos monopólios e oligopólios que controlam a vida das cidades, outro mundo é realmente possível através dessas insurgências poéticas? Qualo efeito desses pequenos atos político-artísticos na vida coletiva?
“Acho que a todo momento as pessoas querem fazer alguma coisa, pode não virar política pública, mas pelo menos você foi lá e se manifestou. Porque, no fundo, as pessoas acham que vão mudar algo. Pode ser que nunca tenha uma tarifa zero para o transporte público em São Paulo, mas é bom brigar pelo impossível. Não é utópico e romântico, é a questão da arte que penetra no cotidiano, e que faz as pessoas se mobilizarem”, responde Mesquita.
Famosos e anônimos
Promover beleza ou espanto é com que lida Adriano Paulino, artista mineiro responsável por ilustrar as páginas desta reportagem usando a técnica do estêncil. “O estêncil é muito rápido e relativamente barato. Você sai com os moldes pelo meio da rua e vai mandando. Em geral, gosto de fazer um movimento inverso do que a gente vive. Corto estêncil de personalidades, celebridades e coloco na rua, olhando para os mortais.”
Quem passa pelos bairros de Floresta e Santa Tereza, em Belo Horizonte, pode dar de cara com uma Marilyn Monroe no muro, Johnny Depp passeando na parede ou Paulinho da Viola, Tarcísio Meira e Glória Menezes. A rua é a galeria de arte. A técnica é antiga, mas ganhou fôlego com a internet. Adriano fotografa os locais onde aplicou seu trabalho e faz um intercâmbio das imagens com adeptos da técnica em vários países, além de interagir com quem passa pela rua. “Existe uma sintonia com quem faz trabalhos na rua e hoje tem essa simultaneidade, acabou de mandar e já está na internet.” Com influência de Andy Warhol, o artista mineiro especula: “Imagine se ele tivesse conhecido a web”.
A rede é ainda espaço para o cyberativismo de muitas organizações. Abaixo-assinados ganham escala mundial replicados em simples correios eletrônicos, caso do Avaaz, grupo que briga por temas tão amplos e distintos como o fim da guerra do Iraque, contra o aquecimento global e, recentemente, por investigações sobre a origem da gripe suína.
O texto – que só circula pela rede – sugere que está cada vez mais claro de onde veio a gripe: muito provavelmente de uma gigantesca fazenda industrial de criação de suínos mantida por uma corporação multinacional americana no estado de Veracruz, no México. A proposta do Avaaz é um protesto em massa com assinaturas colhidas virtualmente, seguida de uma ação no plano bem real: “Se conseguirmos 200 mil assinaturas, entregaremos o abaixo-assinado à OMS, em Genebra, juntamente com um rebanho de porcos de papelão. Para cada mil assinaturas, acrescentaremos um porco ao rebanho”.
De modo equivalente, o arte-ativismo pode provocar um inusitado grupo de transeuntes olhando para o céu numa segunda-feira cinzenta em Nova York para ver o malabarismo de Petit. É a arte tirando coisas do lugar e sacudindo as pessoas. Se vai abalar ou não, só fazendo saberemos.[:en]A tecnologia e a globalização entram como aliados do fenômeno que combate o status quo por meio da arte, e no qual o processo de mobilização é tão importante quanto a manifestação em si
Por Ana Cristina D’Angelo
Quando o artista francês Philippe Petit atravessava de uma torre gêmea à outra do World Trade Center em um cabo de aço, numa manhã de 1974, só sabia que a cena se fixaria no imaginário das pessoas. Isso se a performance desse certo. A correria de uma manhã no coração financeiro de Nova York foi interrompida pela imagem de um corpo frágil que se deitava no fio entre os prédios mais altos do mundo só para ver o céu ou que tirava um dos pés daquela linha fina, vista de tamanha distância, em um desafio-surpresa que levara meses para ser concretizado assim, como planejaram Petit e seus amigos: original, surpreendente e efêmero. O artista não justificou a ação como fez inúmeras outras vezes, lançando performances por um fio na catedral de Notre-Dame e em monumentos antes intocados pelo mundo, tramando ações em segredo.
Sem o aparato tecnológico, as insurgências poéticas de Philippe Petit renderam-lhe prisões, rápidas, e repercussão nas cidades por onde passou. A lembrança desse choque bem-humorado foi registrada no filme vencedor do Oscar de melhor documentário este ano, O Equilibrista. Como enfrentar quem usa o humor e a poesia? Petit não ambicionava mais do que aquele momento, não queria se eleger a cargo algum e, acima de tudo, era um boa-praça. Ainda que suas ações tenham ocorrido em sua maioria na década de 70, ali se reuniam características do arte-ativismo que vemos hoje: uma mescla de movimentos artísticos anteriores, ocupação do espaço público, urbano, planos e ações coletivas organizados na surdina, em que o processo é tão importante quanto o ato. Agora, o arte-ativismo conta com aliados fundamentais – a tecnologia e a globalização. “Se vai dar certo, só saberemos fazendo” é uma máxima de coletivos artísticos em suas intervenções.
Ir contra o capitalismo ou questionar o atual estágio do modelo econômico e seus danos – consumismo exagerado, controle invisível de grandes organizações, degradação ambiental – sem ser absorvido por ele é possível? Burlando o sistema de arte convencional e o aparato oficial da política, os arte-ativistas buscam essa brecha nos espaços públicos e onde haja interesse comum.
O termo surgiu pela primeira vez em artigo, de 1984, da teórica e ativista americana Lucy Lippard. Nesse texto, ela tenta diferenciar arte política, que faz uma reflexão do momento, do arte-ativista, que põe a mão na massa e se envolve com o cotidiano. Nesse sentido, o objeto de arte em si não tem tanta importância, explica o doutorando em Arte-Ativismo pela USP André Mesquita. “O processo e a convivência com os outros, colocando a arte na vida, são o que importa. Os coletivos têm esse espírito de fazer a coisa juntos e valorizar um campo de transversalidade, no qual a arte vaiconversar com a política, economia, arquitetura, com os movimentos sociais.”
Uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, em Seattle (EUA), pode ser considerada um marco no tipo de protesto que se alastrou pelo mundo. Pulverizados, com bastante uso de internet e mensagens de celular, os protestos de Seattle, além de tudo, ocorreram no centro do consumismo cool mundial, terra de nomes como Microsoft e Nintendo, onde ninguém suspeitava de uma insurgência de tamanha repercussão contra o sistema. Jovens simplesmente sentavam ao longo de uma rua, impedindo o acesso dos participantes à reunião que debateria a rodada do milênio, articulando movimentos sincronizados no espaço público, com o uso de fantasias e ataques a pontos polêmicos das discussões que as nações ricas levavam em portas fechadas.
Em Gênova, em 2001, quando se reuniam os países integrantes do G-8, os manifestantes repetiram a saraivada de protestos organizados com táticas de guerrilha e deixaram a polícia e os políticos perplexos. “Os movimentos arte-ativistas usam táticas e estratégias, como na guerra. A tática é usada pelo mais fraco – assim como na luta de boxe -, você está em território inimigo. Então transforma aquilo em uma linguagem subversiva. Os zapatistas usaram isso da melhor forma possível, conseguiram espaço na TV e no rádio, na selva se comunicavam pela internet, deram um viés radical para o uso da mídia”, analisa Mesquita.
Já o diretor editoral da Conrad (editora pioneira no lançamento de títulos ligados ao arte-ativismo com a coleção Baderna), Rogério Campos, avalia que o efeito-surpresa de Seattle tem relação com a crise das esquerdas pós-queda do Muro de Berlim. “O pensamento daquela hora era de que os jovens estavam alienados, e depois dos grandes protestos não queriam saber de nada, muito menos de política. Ali se percebeu que tinha gente pensando e articulando movimentos anticapitalismo da forma mais corrosiva possível: com humor”, sugere o diretor.
Um dos títulos da Conrad, considerado uma Bíblia por muitos, é o TAZ – Zona Autônoma Temporária, de Hakim Bey, que lançou a ideia de combater o poder criando espaços (virtuais ou não) de liberdade que surjam e desapareçam o tempo todo. Discutia-se até mesmo a identidade do autor do livro. No fim dos anos 80, o TAZ ficou circulando livremente na forma de panfleto e hoje é citado por teóricos que estudam as raves, o universo dos hackers, a ideia de organização fluida (mais sobre o TAZ na reportagem “A gente é o mundo que é a gente”, na edição 28 de Página22).
Acredita-se que o conceito de TAZ tenha inspirado muitas das táticas de rua dos manifestantes em Seattle. Mais de uma autoridade policial constatou, aterrorizada, que era muito difícil acompanhar a estratégia dos manifestantes de formar grupos aleatoriamente, atacar e depois desmanchar aquelas formações para se juntar em outros grupos, com novos objetivos.
Ao mesmo tempo que esses manifestos e ensaios de Hakim Bey recebiam a atenção de ativistas e das autoridades, passaram também a ganhar elogios entusiasmados por sua qualidade literária. “O TAZ instaurou isso do você-faz-e-sai-fora. Consolidar posições é um erro. Isso inspirou muita gente na questão da liderança de movimentos. Eles hoje se questionam o tempo todo”, analisa Campos.
Em menor escala que os grandes protestos das décadas de 60 e 70, o arte-ativismo também caminha para focos mais direcionados e específicos de protesto. Com o uso da tecnologia, o alcance é multiplicado e as fronteiras geográficas ficam menores. Esses protestos-contágio também passaram a ser adotados pelas causas da sustentabilidade, organizações ambientais criaram eventos como o Dia de Ação Global, a World Naked Ride Bike (Bicicletada Pelada) ou o Reclaim the Streets.
A cidade e a catraca
Movimentos com foco local também proliferam em torno de causas nascidas, às vezes, em um bairro. Em São Paulo, em 2004, um protesto ganhou proporções interessantes. Um coletivo chamado Contra Filé fazia um projeto sobre regiões da cidade, apoiado pelo Sesc. Elegeram a catraca como símbolo de separação e controle da cidade. As pessoas não conhecem o lugar onde moram e estão isoladas, foi a conclusão do grupo. A imagem também remetia a “catracas” na vida de cada um como controles invisíveis existentes no espaço urbano. Colocaram uma catraca velha no Largo do Arouche e lançaram ali um programa de “descatracalização da vida”.
Prefeitura e mídia reagiram, criticando o mau uso do patrimônio público. Mas o cartunista Laerte adorou a ideia e fez tirinhas com a catraca invisível, enquanto outros articulistas de jornais importantes absorveram a história, até que o vestibular da Fuvest elegeu a descatracalização da vida como tema de redação.
Em seguida, o símbolo foi usado por vários movimentos no País, pedindo transporte público gratuito. Outro caso emblemático teve como cenário o Edifício Prestes Maia, no centro da cidade. Tomado por sem-teto, o prédio passou por seguidas tentativas de desocupação pela polícia e, em 2006, o poder público precisou enfrentar antes a intervenção artística.
Os artistas se juntaram aos moradores do prédio, fazendo parte da ocupação, arrecadando livros, comida e passando os dias com os moradores ameaçados de despejo. “Um dia em que a polícia entrou e começou a dar tiros de bala de borracha, uma menina, disse que aí viu o que estava fazendo”, relata o pesquisador da USP André Mesquita, que entrevistou mais de 30 coletivos para a sua dissertação. Há críticas de que os artistas surgem nas situações-limite e, depois, desaparecem. No próprio blog dos artistas envolvidos com a ocupação do Prestes Maia, eles fazem um mea-culpa em charges e quadrinhos. “Tem gente que só participou do movimento e depois sumiu, e só apareceu mais tarde em jornais. A quem pertence o resultado final?”
As questões do espaço urbano tomam bastante a pauta dos movimentos. O termo “gentrificação”, por exemplo, foicunhado para se referir a áreas degradadas que o poder público toma para fazer moradias para a classe média. Limpezas urbanas ocorreram em Nova York, Barcelona e Berlim. Movimentos sociais de arte-ativismo organizaram uma publicação que narra episódios de gentrificação em diversas grandes metrópoles mundiais, na qualo episódio do Prestes Maia foi incluído.
Mas, diante do avanço e da desigualdade da produção capitalista e dos monopólios e oligopólios que controlam a vida das cidades, outro mundo é realmente possível através dessas insurgências poéticas? Qualo efeito desses pequenos atos político-artísticos na vida coletiva?
“Acho que a todo momento as pessoas querem fazer alguma coisa, pode não virar política pública, mas pelo menos você foi lá e se manifestou. Porque, no fundo, as pessoas acham que vão mudar algo. Pode ser que nunca tenha uma tarifa zero para o transporte público em São Paulo, mas é bom brigar pelo impossível. Não é utópico e romântico, é a questão da arte que penetra no cotidiano, e que faz as pessoas se mobilizarem”, responde Mesquita.
Famosos e anônimos
Promover beleza ou espanto é com que lida Adriano Paulino, artista mineiro responsável por ilustrar as páginas desta reportagem usando a técnica do estêncil. “O estêncil é muito rápido e relativamente barato. Você sai com os moldes pelo meio da rua e vai mandando. Em geral, gosto de fazer um movimento inverso do que a gente vive. Corto estêncil de personalidades, celebridades e coloco na rua, olhando para os mortais.”
Quem passa pelos bairros de Floresta e Santa Tereza, em Belo Horizonte, pode dar de cara com uma Marilyn Monroe no muro, Johnny Depp passeando na parede ou Paulinho da Viola, Tarcísio Meira e Glória Menezes. A rua é a galeria de arte. A técnica é antiga, mas ganhou fôlego com a internet. Adriano fotografa os locais onde aplicou seu trabalho e faz um intercâmbio das imagens com adeptos da técnica em vários países, além de interagir com quem passa pela rua. “Existe uma sintonia com quem faz trabalhos na rua e hoje tem essa simultaneidade, acabou de mandar e já está na internet.” Com influência de Andy Warhol, o artista mineiro especula: “Imagine se ele tivesse conhecido a web”.
A rede é ainda espaço para o cyberativismo de muitas organizações. Abaixo-assinados ganham escala mundial replicados em simples correios eletrônicos, caso do Avaaz, grupo que briga por temas tão amplos e distintos como o fim da guerra do Iraque, contra o aquecimento global e, recentemente, por investigações sobre a origem da gripe suína.
O texto – que só circula pela rede – sugere que está cada vez mais claro de onde veio a gripe: muito provavelmente de uma gigantesca fazenda industrial de criação de suínos mantida por uma corporação multinacional americana no estado de Veracruz, no México. A proposta do Avaaz é um protesto em massa com assinaturas colhidas virtualmente, seguida de uma ação no plano bem real: “Se conseguirmos 200 mil assinaturas, entregaremos o abaixo-assinado à OMS, em Genebra, juntamente com um rebanho de porcos de papelão. Para cada mil assinaturas, acrescentaremos um porco ao rebanho”.
De modo equivalente, o arte-ativismo pode provocar um inusitado grupo de transeuntes olhando para o céu numa segunda-feira cinzenta em Nova York para ver o malabarismo de Petit. É a arte tirando coisas do lugar e sacudindo as pessoas. Se vai abalar ou não, só fazendo saberemos.