Assim como as espécies, línguas são extintas em ritmo acelerado – levando embora mitos, modelos de raciocínio e visões de mundo
A cada duas semanas morre uma língua – geralmente, de morte morrida, juntamente com a última pessoa capaz de falá-la. Segundo o projeto Enduring Voices*, que tenta remar contra essa maré, mais da metade das 7 mil línguas faladas hoje provavelmente desaparecerão até 2100. Boa parte delas não tem registros escritos ou gravações.
*Projeto da revista National Geographic, pode ser acessado aqui
Um dos últimos óbitos linguísticos ocorreu nas Ilhas Andaman, próximas da costa da Índia, com a morte, em janeiro, de Boa Sr, a última mulher que falava a língua Bo*. Seu povo, provavelmente vindo da África, viveu no arquipélago por 65 mil anos, mas começou a declinar com a chegada dos colonizadores ingleses.
*Acesse uma gravação em que Boa Sr canta na língua Bo aqui
Com frequência, como nesse exemplo das Ilhas Andaman, o declínio de uma língua está associado à expansão de uma cultura hegemônica. É o caso do ryukyu, língua da ilha japonesa de Okinawa, que praticamente já não é falada por ninguém com menos de 20 anos. Ou do irlandês, que, embora legitimado como língua oficial da Irlanda e falado por 1 milhão de pessoas, já não é ensinado às crianças como primeira língua e poucos o usam de forma rotineira. É também o que acontece com algumas línguas da família maia, que dominava o Sul do México e boa parte da América Central. Elas ainda são faladas por milhões de pessoas, mas vêm declinando expressivamente.
A sobrevivência do maia e de outras línguas é importante, porque elas são guardiãs de uma fração da herança cultural que não pode ser traduzida. Com ela vão-se mitos, estruturas gramaticais, vocabulário, um determinado modelo de raciocínio, uma visão de mundo.
“Quando eu fazia pesquisa de campo no México, encontrei um homem que praticamente já não falava maia”, conta Luisa Maffi, diretora da Terralingua, uma organização de linguistas, biólogos e antropólogos que trabalha pela conservação de línguas ameaçadas. “Esse homem teve de levar a filha de 2 anos para tratar uma diarreia violenta numa clínica de outra cidade, porque já não sabia a expressão yakan k’ulub wamal – o nome maia de uma planta que poderia curá-la. Essa planta provavelmente crescia no quintal de sua casa.” A história, contada tempos atrás numa reportagem do The New York Times, ilustra como a perda de uma língua pode ter um impacto real, não meramente sentimental.
Dá para evitar a perda da diversidade linguística? Segundo o projeto Enduring Voices, da National Geographic, sim. Mas isso depende de um investimento substancial em programas educacionais, na elaboração de dicionários e no registro da tradição oral, mantida pelos mais velhos de cada comunidade.
O uso da tecnologia para salvar a memória de línguas moribundas é o tema de The Linguists, filme lançado no festival de cinema independente de Sundance dois anos atrás. Nesse documentário, David Harrison e Gregory Anderson visitam lugares remotos, de câmera e gravador em punho, em expedições linguísticas. Na Sibéria, por exemplo, eles procuram em vão por alguém que falasse o chulym médio, língua de nômades descendentes dos tártaros, até descobrir que o seu motorista, que até então negava tal conhecimento, revela a sua fluência na língua. Banido por Stalin, que queria unificar a linguagem da União Soviética à força, o chulym médio é falado hoje por poucas dezenas de pessoas.
“O destino das línguas está interligado ao das espécies, que enfrentam um ritmo de extinção sem paralelo”, escreveu, semanas atrás, David Harrison, em um artigo para a BBC. “O conhecimento científico nas duas áreas é comparável. Cerca de 80% das espécies de plantas e animais ainda não foram descritas e o mesmo vale para as línguas.” Por isso, conclui Harrison, é preciso injetar vitalidade nas línguas hoje isoladas. “Um habitante de uma ilha do Estreito de Torres, na Austrália, me disse que, para que a sua língua sobreviva, ela precisa se tornar relevante à sociedade atual”, escreve o linguista.”É preciso criar novas palavras, como uma que identifique um computador.” Modernizar para não morrer é a palavra de ordem para que o maia, o ryukyu ou o irlandês não virem uma vaga lembrança.