Que fim levou o sonho feliz de cidade, quando 57% dos habitantes dizem querer deixá-la
Realizado em 1965, São Paulo S/A, o filme de Luiz Sérgio Person, tratava do desejo de um rompimento com a vida burguesa, limitada ao trabalho e acumulação de bens, e de um embate com a melhor representação disso, a cidade de São Paulo. Mas o personagem central, Carlos, interpretado por Walmor Chagas, vivencia esse dilemma e não rompe com uma nem com outra situação. Decide encarar São Paulo, seus medos e desejos e todos os paradoxos envolvidos na trama desse que é considerado um clássico do Cinema Novo.
Qualquer semelhança é mera coincidência com os tempos de agora, o que também atesta a perenidade do filme de Person. Sem a pujança da década desenvolvimentista dos anos 1950 nem a torrente de imigrantes que recebeu de lá até os idos dos 60 e 70, São Paulo continua lugar de sonhos e oportunidades para muitos e hostilidades e desilusões para estes mesmos muitos.
Mas, quando a cidade para literalmente em razão das chuvas, pessoas morrem afogadas na periferia, a luz acaba em bairros de classe média ou uma pesquisa aponta que mais da metade da população sairia de São Paulo, se pudesse, um alerta geral se instala. É uma situaçãolimite? Que fim levou o sonho feliz de cidade?
As chuvas escancaram ainda mais a fragilidade da distribuição de renda, da habitação e do sistema de transporte, aumentando a desconfiança de que o poder público possa realmente administrar o lugar-símbolo do progresso e desenvolvimento no Brasil. A pesquisa* Indicadores de Referência de Bem-Estar (Irbem), realizada pelo Movimento Nossa São Paulo, mostrou que 57% dos entrevistados disseram que sairiam de São Paulo, se houvesse a oportunidade. Mas quem tem esta oportunidade? E por que as pessoas continuam em São Paulo?
*realizada em conjunto com o Ibope Inteligência entre os dias 2 e 16 de dezembro de 2009, com um dimensionamento de 1. 512 entrevistas
A satisfação geral com a qualidade de vida na cidade ganhou nota 4,8 entre os ouvidos na Irbem. O coordenadorexecutivo do Nossa São Paulo, Mauricio Broinizi Pereira, contemporiza os resultados. “O cotidiano é difícil, pesado, não é uma cidade que faz as pessoas acreditarem em qualidade de vida, leveza. É um lugar caro, com muita desigualdade social, o que cria uma tensão, mas existem muitas coisas interessantes, como as oportunidades de trabalho, cultura, lazer e renda. Acredito que a pesquisa mostre que mesmo os que gostam de São Paulo mantêm o senso crítico. Provavelmente esses 57% deixariam a cidade com pesar em relação a diversas coisas.”
São 15 temas sobre qualidade de vida com 170 questões ao todo, entre elas a pergunta fatal que mostrou o desconforto dos 57%.
MEU NOME É TRABALHO
Saindo do maniqueísmo do “ame-a ou deixe-a”, o levantamento traz uma satisfação relativa com trabalho, renda e perspectivas na carreira – os pilares da atração para os migrantes da capital. Dos entrevistados, 55% disseram estar satisfeitos com o trabalho atual, perspectivas futuras e crescimento na carreira. Não é mais o dado arrebatador do celeiro de empregos e dinheiro, mas sugere de alguma forma o que mantém as pessoas na cidade.
Gilvandro Freitas, vindo de Remígio, cidade de 25 mil habitantes no interior da Paraíba, é uma delas. Segundo ele, a rotina de porteiro na região da Consolação vale mais a pena do que a antiga profissão de vaqueiro, na terra natal. “Aqui, se o cabra quiser, consegue juntar dinheiro, nem que seja um pouquinho”, afirma.
Para aumentar a renda e se preparar para a chegada do primeiro filho, ele decidiu usar as férias, em fevereiro, trabalhando em um estacionamento. O bebê nasce em julho, mas Vando, como é chamado no prédio, só vai conhecê-lo em 2011, quando tira férias de novo e volta a Remígio: “É o mais duro de pensar”.
Há pouco mais de um ano na capital paulista, Vando levou dois dias e meio de viagem de carro, na companhia do irmão, que vinha insistindo no convite há tempos. “Só aceitei quando tive a oferta de emprego no prédio, mas vim pensando em voltar para lá, ter minha casinha e montar algum negócio para o futuro”, conta Vando, que até então não conhecia nenhuma outra grande cidade além de João Pessoa. O tamanho de São Paulo assustou Vando, e o frio também.
Um medo novo que vem crescendo entre os habitantes de São Paulo é o de alagamento. Antes reduzidas a regiões periféricas, as enchentes aparecem como temor de 28% dos entrevistados na pesquisa Irbem. A mesma pergunta, no ano passado, amedrontava apenas 8% das pessoas.
COM DATA DE VALIDADE
Paula Santos, por enquanto, não teve tempo de pensar na chuva. Há três meses está em São Paulo, cavando um lugar ao Sol, junto com outros 68 mil migrantes que chegam à cidade a cada ano. Desembarcou num sábado e começou a trabalhar num shopping center na semana seguinte. Formada em Ciências Sociais em Natal, o plano final é fazer mestrado em Antropologia e buscar trabalho na área, mas o tempo anda curto para estudar.
Dividindo um apartamento com quatro meninas na Rua Augusta, “no olho do furacão”, como ela diz, Paula acha que sua estadia tem data de validade. “Acho que São Paulo é um lugar para se passar. Ou você gosta ou odeia. Eu gosto, mas não me vejo morando aqui por muitos anos. Vai ter uma hora que vou cansar e querer sair, mesmo que depois volte para mais uma temporada”, diz.
Maurício Broinizi lembra a sedução que a cidade exerce sobre os mais jovens, o sonho da realização profissional, o crescimento na carreira e o enriquecimento. “Mesmo os migrantes, depois de instalados na cidade, se deparam com a pujança econômica, vitrines, custo de vida alto e ambicionam ter mais que um simples emprego. Mas a história de tirar a sorte grande não é como antes, quem está no mercado vê seus limites e não vive muito mais de ilusão”, afirma.
Entre os dez aspectos com maior índice de satisfação apurados pela pesquisa estão a relação com os amigos, a família, o uso da internet, as campanhas de vacinação, o relacionamento amoroso, a prática religiosa, o trabalho e a carreira. Curioso que, talvez, apenas os dois últimos guardem uma relação mais direta com a cidade.
Na outra mão, entre os tópicos que mereceram os piores índices de satisfação estão a honestidade dos governantes, a punição à corrupção, a transparência dos gastos públicos, a participação popular na administração municipal, a segurança no trânsito, o respeito ao pedestre e a distribuição de renda.
ROTA DE FUGA
Quem pode tem feito um meio-termo entre o que existe de pior e de melhor em São Paulo. Broinizi lembra o fluxo de paulistanos que optam por viver em cidades próximas, mais palatáveis, conjugando qualidade de vida e as possibilidades de trabalho da capital. Para isso, a internet cai como uma luva, mesmo com uma conexão 3G que, às vezes, deixa a desejar, ressalva Ana Cristina Ayer, rebatizada Índigo, por vontade própria, assinatura de seus 22 livros de histórias infantojuvenis.
Índigo é das que efetivaram a rota de fuga talvez sonhada pelos 57%. Sem colocar o plano no papel, quase no susto, ela vislumbrou a ideia de deixar a megalópole e debandar para a roça. Dois meses depois de conhecer o terreno a pouco mais de uma hora de São Paulo, próximo à cidade de Juquitiba, ela já estava em silêncio, convivendo com plantas e bichos que não faziam parte de seu repertório urbano. “Foi meio meteórico, não passou muito pelo racional. Acho que, se a gente pensasse demais, não viríamos”, conta ela diretamente do Sítio Pau-d’Alho, onde vive com o marido há pouco mais de um ano.
Como que encantada pelo admirável mundo novo, passou a postar anotações bem-humoradas sobre a relação com a fauna e flora do lugar no seu blog, que também ganhou outro batismo – Vida no Campo – desde a grande virada. Na esteira do diário, a vida virtual de Índigo mantém-se quase intacta, mesmo com a distância.
“Embora eu esteja fora de São Paulo, meu trabalho todo está lá. Agora é possível migrar fisicamente, mas estar em dois lugares ao mesmo tempo”, diz a campineira que viveu 12 anos em Sampa, mas nunca se entendeu bem com a cidade. “Achava que era um lugar necessário para começar minha carreira. Era onde as coisas aconteciam, mas olhava para a cidade como algo com data pra acabar. Com o passar do tempo, as reuniões ficaram cada vez mais escassas e eu já trabalhava só em casa. Quando vi que era possível cair fora, saí.”
Formada em jornalismo nos Estados Unidos, Índigo foi morar em São Paulo porque considerava necessário participar do burburinho literário para dar impulso à carreira: “Foi uma época superimportante para conhecer as pessoas e ver como funciona esse mundo da literatura, que só se conhece frequentando”. Para manter a rede de contatos tecida durante tanto tempo, a web foi a salvação da lavoura.
Sem precisar romper com o mundo do trabalho, a adaptação à vida rural também pareceu mais suave. “Quando você continua trabalhando conectado, recebendo e-mail, não sente tanto. Então não é tão radical essa questão da mudança do tempo, porque a internet consegue furar qualquer barreira”, diz. No balanço da história, Índigo aprendeu a abrir a caixa de e-mails “apenas” algumas vezes por dia, em vez de mantê-la no ar o dia todo.
Para usar o Correio convencional e reciclar o lixo, ela precisa percorrer 11 quilômetros (5 em estrada de terra) até Juquitiba. Já as compras de supermercado e os serviços de banco, só esticando a viagem até São Lourenço, a 20 quilômetros. “Nenhuma das duas cidades tem tudo que a gente precisa, então resolvemos coisas diferentes nas duas”, conta.
Ou, como alguém já disse, o melhor lugar do mundo pode ser aquele em que não estamos.
O nó górdio do transporte e da habitação
Especialistas em urbanismo defendem o investimento em transporte coletivo e a urbanização de bairros de baixa densidade demográfica como prioridades dos governos que administram São Paulo. Pontos nevrálgicos da cidade expostos nas pesquisas – no cotidiano de ricos e pobres – voltam ao debate neste momento em que as eleições se aproximam.A tragédia dos moradores do Jardim Pantanal, na Zona Leste, por exemplo, evidencia a necessidade de um projeto de urbanização antes da simples remoção de populações das áreas de várzea. “Remove primeiro e ‘depois’ vai resolver. ‘Depois’ é nunca! Entendo a posição dos moradores do Jardim Romano que não estão querendo sair, porque primeiro é preciso construir o bairro novo, perto”, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “As pessoas têm direitos constituídos naquele lugar e o reconhecimento do direito de posse está lá também, está tudo definido e legislado, mas não se aplica. Porque, se for levar até as últimas consequências, remover essas famílias das várzeas, quero saber se nós vamos remover tudo que está em várzea, o Alto de Pinheiros, por exemplo”, questiona Raquel, que também é consultora das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, em seu blog na internet.
O ex-vereador de São Paulo e mestre e doutor em Estruturas Ambientais Urbanas pela USP Nabil Bonduki aposta que a ocupação de bairros de baixa densidade, onde a mobilidade pode ser facilitada, é uma das medidas cabíveis para a cidade. Lugares como Vila Maria, antigas regiões industriais, como também Vila Leopoldina, parte da Barra Funda e Lapa de Baixo, poderiam receber a implantação de um transporte coletivo de massa em integração com a linha férrea. “Temos de adensar algumas áreas para liberar outras, mas é preciso qualificar a região”, afirma. Nesse sentido, a reforma e a ampliação dos corredores de ônibus são fundamentais no processo de reurbanização da cidade. A expansão do metrô é bem vista pelos urbanistas, mas se faz necessária maior discussão sobre para onde o sistema está crescendo.
Leia mais sobre as propostas dos urbanistas Nabil Bonduki e Raquel Rolnik.[:en]Que fim levou o sonho feliz de cidade, quando 57% dos habitantes dizem querer deixá-la
Realizado em 1965, São Paulo S/A, o filme de Luiz Sérgio Person, tratava do desejo de um rompimento com a vida burguesa, limitada ao trabalho e acumulação de bens, e de um embate com a melhor representação disso, a cidade de São Paulo. Mas o personagem central, Carlos, interpretado por Walmor Chagas, vivencia esse dilemma e não rompe com uma nem com outra situação. Decide encarar São Paulo, seus medos e desejos e todos os paradoxos envolvidos na trama desse que é considerado um clássico do Cinema Novo.
Qualquer semelhança é mera coincidência com os tempos de agora, o que também atesta a perenidade do filme de Person. Sem a pujança da década desenvolvimentista dos anos 1950 nem a torrente de imigrantes que recebeu de lá até os idos dos 60 e 70, São Paulo continua lugar de sonhos e oportunidades para muitos e hostilidades e desilusões para estes mesmos muitos.
Mas, quando a cidade para literalmente em razão das chuvas, pessoas morrem afogadas na periferia, a luz acaba em bairros de classe média ou uma pesquisa aponta que mais da metade da população sairia de São Paulo, se pudesse, um alerta geral se instala. É uma situaçãolimite? Que fim levou o sonho feliz de cidade?
As chuvas escancaram ainda mais a fragilidade da distribuição de renda, da habitação e do sistema de transporte, aumentando a desconfiança de que o poder público possa realmente administrar o lugar-símbolo do progresso e desenvolvimento no Brasil. A pesquisa* Indicadores de Referência de Bem-Estar (Irbem), realizada pelo Movimento Nossa São Paulo, mostrou que 57% dos entrevistados disseram que sairiam de São Paulo, se houvesse a oportunidade. Mas quem tem esta oportunidade? E por que as pessoas continuam em São Paulo?
*realizada em conjunto com o Ibope Inteligência entre os dias 2 e 16 de dezembro de 2009, com um dimensionamento de 1. 512 entrevistas
A satisfação geral com a qualidade de vida na cidade ganhou nota 4,8 entre os ouvidos na Irbem. O coordenadorexecutivo do Nossa São Paulo, Mauricio Broinizi Pereira, contemporiza os resultados. “O cotidiano é difícil, pesado, não é uma cidade que faz as pessoas acreditarem em qualidade de vida, leveza. É um lugar caro, com muita desigualdade social, o que cria uma tensão, mas existem muitas coisas interessantes, como as oportunidades de trabalho, cultura, lazer e renda. Acredito que a pesquisa mostre que mesmo os que gostam de São Paulo mantêm o senso crítico. Provavelmente esses 57% deixariam a cidade com pesar em relação a diversas coisas.”
São 15 temas sobre qualidade de vida com 170 questões ao todo, entre elas a pergunta fatal que mostrou o desconforto dos 57%.
MEU NOME É TRABALHO
Saindo do maniqueísmo do “ame-a ou deixe-a”, o levantamento traz uma satisfação relativa com trabalho, renda e perspectivas na carreira – os pilares da atração para os migrantes da capital. Dos entrevistados, 55% disseram estar satisfeitos com o trabalho atual, perspectivas futuras e crescimento na carreira. Não é mais o dado arrebatador do celeiro de empregos e dinheiro, mas sugere de alguma forma o que mantém as pessoas na cidade.
Gilvandro Freitas, vindo de Remígio, cidade de 25 mil habitantes no interior da Paraíba, é uma delas. Segundo ele, a rotina de porteiro na região da Consolação vale mais a pena do que a antiga profissão de vaqueiro, na terra natal. “Aqui, se o cabra quiser, consegue juntar dinheiro, nem que seja um pouquinho”, afirma.
Para aumentar a renda e se preparar para a chegada do primeiro filho, ele decidiu usar as férias, em fevereiro, trabalhando em um estacionamento. O bebê nasce em julho, mas Vando, como é chamado no prédio, só vai conhecê-lo em 2011, quando tira férias de novo e volta a Remígio: “É o mais duro de pensar”.
Há pouco mais de um ano na capital paulista, Vando levou dois dias e meio de viagem de carro, na companhia do irmão, que vinha insistindo no convite há tempos. “Só aceitei quando tive a oferta de emprego no prédio, mas vim pensando em voltar para lá, ter minha casinha e montar algum negócio para o futuro”, conta Vando, que até então não conhecia nenhuma outra grande cidade além de João Pessoa. O tamanho de São Paulo assustou Vando, e o frio também.
Um medo novo que vem crescendo entre os habitantes de São Paulo é o de alagamento. Antes reduzidas a regiões periféricas, as enchentes aparecem como temor de 28% dos entrevistados na pesquisa Irbem. A mesma pergunta, no ano passado, amedrontava apenas 8% das pessoas.
COM DATA DE VALIDADE
Paula Santos, por enquanto, não teve tempo de pensar na chuva. Há três meses está em São Paulo, cavando um lugar ao Sol, junto com outros 68 mil migrantes que chegam à cidade a cada ano. Desembarcou num sábado e começou a trabalhar num shopping center na semana seguinte. Formada em Ciências Sociais em Natal, o plano final é fazer mestrado em Antropologia e buscar trabalho na área, mas o tempo anda curto para estudar.
Dividindo um apartamento com quatro meninas na Rua Augusta, “no olho do furacão”, como ela diz, Paula acha que sua estadia tem data de validade. “Acho que São Paulo é um lugar para se passar. Ou você gosta ou odeia. Eu gosto, mas não me vejo morando aqui por muitos anos. Vai ter uma hora que vou cansar e querer sair, mesmo que depois volte para mais uma temporada”, diz.
Maurício Broinizi lembra a sedução que a cidade exerce sobre os mais jovens, o sonho da realização profissional, o crescimento na carreira e o enriquecimento. “Mesmo os migrantes, depois de instalados na cidade, se deparam com a pujança econômica, vitrines, custo de vida alto e ambicionam ter mais que um simples emprego. Mas a história de tirar a sorte grande não é como antes, quem está no mercado vê seus limites e não vive muito mais de ilusão”, afirma.
Entre os dez aspectos com maior índice de satisfação apurados pela pesquisa estão a relação com os amigos, a família, o uso da internet, as campanhas de vacinação, o relacionamento amoroso, a prática religiosa, o trabalho e a carreira. Curioso que, talvez, apenas os dois últimos guardem uma relação mais direta com a cidade.
Na outra mão, entre os tópicos que mereceram os piores índices de satisfação estão a honestidade dos governantes, a punição à corrupção, a transparência dos gastos públicos, a participação popular na administração municipal, a segurança no trânsito, o respeito ao pedestre e a distribuição de renda.
ROTA DE FUGA
Quem pode tem feito um meio-termo entre o que existe de pior e de melhor em São Paulo. Broinizi lembra o fluxo de paulistanos que optam por viver em cidades próximas, mais palatáveis, conjugando qualidade de vida e as possibilidades de trabalho da capital. Para isso, a internet cai como uma luva, mesmo com uma conexão 3G que, às vezes, deixa a desejar, ressalva Ana Cristina Ayer, rebatizada Índigo, por vontade própria, assinatura de seus 22 livros de histórias infantojuvenis.
Índigo é das que efetivaram a rota de fuga talvez sonhada pelos 57%. Sem colocar o plano no papel, quase no susto, ela vislumbrou a ideia de deixar a megalópole e debandar para a roça. Dois meses depois de conhecer o terreno a pouco mais de uma hora de São Paulo, próximo à cidade de Juquitiba, ela já estava em silêncio, convivendo com plantas e bichos que não faziam parte de seu repertório urbano. “Foi meio meteórico, não passou muito pelo racional. Acho que, se a gente pensasse demais, não viríamos”, conta ela diretamente do Sítio Pau-d’Alho, onde vive com o marido há pouco mais de um ano.
Como que encantada pelo admirável mundo novo, passou a postar anotações bem-humoradas sobre a relação com a fauna e flora do lugar no seu blog, que também ganhou outro batismo – Vida no Campo – desde a grande virada. Na esteira do diário, a vida virtual de Índigo mantém-se quase intacta, mesmo com a distância.
“Embora eu esteja fora de São Paulo, meu trabalho todo está lá. Agora é possível migrar fisicamente, mas estar em dois lugares ao mesmo tempo”, diz a campineira que viveu 12 anos em Sampa, mas nunca se entendeu bem com a cidade. “Achava que era um lugar necessário para começar minha carreira. Era onde as coisas aconteciam, mas olhava para a cidade como algo com data pra acabar. Com o passar do tempo, as reuniões ficaram cada vez mais escassas e eu já trabalhava só em casa. Quando vi que era possível cair fora, saí.”
Formada em jornalismo nos Estados Unidos, Índigo foi morar em São Paulo porque considerava necessário participar do burburinho literário para dar impulso à carreira: “Foi uma época superimportante para conhecer as pessoas e ver como funciona esse mundo da literatura, que só se conhece frequentando”. Para manter a rede de contatos tecida durante tanto tempo, a web foi a salvação da lavoura.
Sem precisar romper com o mundo do trabalho, a adaptação à vida rural também pareceu mais suave. “Quando você continua trabalhando conectado, recebendo e-mail, não sente tanto. Então não é tão radical essa questão da mudança do tempo, porque a internet consegue furar qualquer barreira”, diz. No balanço da história, Índigo aprendeu a abrir a caixa de e-mails “apenas” algumas vezes por dia, em vez de mantê-la no ar o dia todo.
Para usar o Correio convencional e reciclar o lixo, ela precisa percorrer 11 quilômetros (5 em estrada de terra) até Juquitiba. Já as compras de supermercado e os serviços de banco, só esticando a viagem até São Lourenço, a 20 quilômetros. “Nenhuma das duas cidades tem tudo que a gente precisa, então resolvemos coisas diferentes nas duas”, conta.
Ou, como alguém já disse, o melhor lugar do mundo pode ser aquele em que não estamos.
O nó górdio do transporte e da habitação
Especialistas em urbanismo defendem o investimento em transporte coletivo e a urbanização de bairros de baixa densidade demográfica como prioridades dos governos que administram São Paulo. Pontos nevrálgicos da cidade expostos nas pesquisas – no cotidiano de ricos e pobres – voltam ao debate neste momento em que as eleições se aproximam.A tragédia dos moradores do Jardim Pantanal, na Zona Leste, por exemplo, evidencia a necessidade de um projeto de urbanização antes da simples remoção de populações das áreas de várzea. “Remove primeiro e ‘depois’ vai resolver. ‘Depois’ é nunca! Entendo a posição dos moradores do Jardim Romano que não estão querendo sair, porque primeiro é preciso construir o bairro novo, perto”, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “As pessoas têm direitos constituídos naquele lugar e o reconhecimento do direito de posse está lá também, está tudo definido e legislado, mas não se aplica. Porque, se for levar até as últimas consequências, remover essas famílias das várzeas, quero saber se nós vamos remover tudo que está em várzea, o Alto de Pinheiros, por exemplo”, questiona Raquel, que também é consultora das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, em seu blog na internet.
O ex-vereador de São Paulo e mestre e doutor em Estruturas Ambientais Urbanas pela USP Nabil Bonduki aposta que a ocupação de bairros de baixa densidade, onde a mobilidade pode ser facilitada, é uma das medidas cabíveis para a cidade. Lugares como Vila Maria, antigas regiões industriais, como também Vila Leopoldina, parte da Barra Funda e Lapa de Baixo, poderiam receber a implantação de um transporte coletivo de massa em integração com a linha férrea. “Temos de adensar algumas áreas para liberar outras, mas é preciso qualificar a região”, afirma. Nesse sentido, a reforma e a ampliação dos corredores de ônibus são fundamentais no processo de reurbanização da cidade. A expansão do metrô é bem vista pelos urbanistas, mas se faz necessária maior discussão sobre para onde o sistema está crescendo.
Leia mais sobre as propostas dos urbanistas Nabil Bonduki e Raquel Rolnik.