Sem articulação, o poder de influência do consumidor sobre a cidadania e a democracia é apenas ilusório
Mesmo tendo a crise financeira mundial de 2008/2009 causado um certo arrefecimento no entusiasmo neoliberal que dominou o cenário após o final da Guerra Fria, ainda vivemos um período marcado pelo descrédito geral nas instituições políticas e no próprio papel do Estado. Parte disso vem mesmo da ojeriza aos políticos profissionais e à tecnoburocracia, percebidos como cupins da máquina pública. Mas outra origem desse quadro é a percepção (realista) de que países e governos podem cada vez menos diante de fatores globais emergentes, como os capitais, os mercados e as corporações supranacionais. Sem falar nos fatores naturais – biológicos, climáticos e ecológicos.
Crescemos aprendendo que todo poder emana do povo, e em seu nome é exercido. Idealmente, isso seria traduzido, na prática, pelo equilíbrio entre o poder do Estado e o contrapoder dos cidadãos, os quais, de modo mais ou menos direto, designariam seus governantes.
Ao emergirem os poderes supranacionais – capazes de subordinar até mesmo os governos de países -, brota uma questão essencial: onde está o contrapoder a eles? Se o cidadão manda apenas no ente subordinado, quem será o contraponto ao poder supremo? Sendo parte da mesma lógica de mercado que criou tal situação, tem sido apontado como candidato natural o consumidor, agora elevado a consumidor-cidadão.
Tal raciocínio não apenas é lógico, como também muito atraente: afinal, nada mais sexy que se livrar do figurino antiquado de cidadão-eleitor e assumir a estampa charmosa de quem, todo dia, vota com a carteira, e ainda com a vantagem de agir sobre o Rei Mercado, e não perante um reles Estado decadente.
Não é surpresa, então, que ganhem aceitação cada vez maior as propostas que unem consumo e cidadania. Mas as coisas não são assim tão simples: um olhar mais atento sobre esse novo personagem revela que, se existe, sem dúvida, um potencial para exercício de cidadania por meio das escolhas de consumo, existe também o risco de que a (con)fusão entre consumo e cidadania acabe de vez com as chances de um controle democrático sobre os poderes sociais máximos.
Há várias razões para isso, incluindo, por exemplo, os questionamentos sobre iniquidade (se o voto/cidadania se dá pelo consumo, quem mais pode consumir é mais cidadão?) E sobre autonomia (se a mídia/indústria cultural “faz a cabeça” do consumidor, que capacidade crítica terá ele como cidadão?). Temos também as questões dos valores (se, como quer a ciência econômica, o consumidor decide visando maximizar sua própria satisfação, qual seria o objetivo de seu “voto com a carteira”?) E a da informação (com base em que informações/discernimento o consumidor-cidadão exerceria sua cidadania?).
Além dessas questões que, sozinhas, já podem alimentar extensos debates, temos outra, destacada por sua natureza intrinsecamente política: o consumo-cidadão alimenta ou combate os riscos de atomização da sociedade?
Em termos simples, a atomização corresponde à total desarticulação entre os indivíduos que compõem a base social: é a situação em que cada pessoa pode até ter seus direitos e bens garantidos individualmente (por exemplo, por uma eficiente legislação e sistema judiciário), mas na qual, pela inexistência de interações e organizações visando o interesse comum (o “público”), perde-se totalmente a capacidade de ação política “de baixo para cima”.
Chega-se a uma sociedade que, mesmo próspera, ordeira e segura, está privada de sua capacidade crítica coletiva, ou seja, da possibilidade de contestar, confrontar e resistir ao poder. Torna-se um aglomerado de pseudocidadãos estéreis.
As propostas que enfatizam o impacto das “pequenas ações cotidianas de consumo” e a defesa dos direitos do consumidor (apropriáveis individualmente) têm seu lado positivo, na medida em que buscam, respectivamente, direcionar para o bem comum os impactos de ações individuais, e salvaguardar direitos legítimos.
Mas, ao valorizar sobremaneira fatos que transcorrem nessa dimensão estritamente individual, correm o risco de promover como sinônimos de cidadania situações que, em última instância, podem levar à esterilização da mesma.
A saída, ao que tudo indica (e como já fazem algumas entidades), é combinar, de forma permanente e inseparável, as referidas ações individuais com práticas que conduzam à valorização e ao fortalecimento das redes de cooperação e articulação social. Só assim ajudaremos para que cada indivíduo se torne não apenas um praticante do consumo-cidadão, mas sim um verdadeiro consumidor-cidadão democrático.
*Secretário-executivo do Grupo de Articulação das ONGs Brasileiras na ISO 26000, é pesquisador em sustentabilidade e consumo (aron@ecopress.org.br). Este artigo baseou-se na dissertação Consumo, Cidadania e a Construção da Democracia no Brasil Contemporâneo: observações e reflexões sobre a história do Idec, apresentada pelo autor na FGV-Eaesp, em fevereiro de 2010.