Da economia à medicina, passando pela crise ambiental, há indícios de que é hora de reconhecer: somos infinitamente mais ignorantes do que conhecedores
“Infelizmente, não sabemos”, diz a economista francesa Esther Duflo sobre o papel que a ajuda internacional exerce no combate à pobreza. “Nunca saberemos.” Os bilhões de dólares destinados a erradicar a pobreza na África no passado não melhoraram o desempenho econômico – medido pelo Produto Interno Bruto – de países que receberam ajuda. “Mas como saber o que teria acontecido sem essa ajuda?”, questiona Esther, pesquisadora do Massachusetts Institute of Technology (MIT), instituição onde também se graduou.
Para ela, tal situação nos deixa no mesmo pé em que o médico da Idade Média que usava sanguessugas como tratamento. “Às vezes o paciente melhora, às vezes ele morre. É efeito das sanguessugas ou alguma outra coisa? Não sabemos.”
Como era de imaginar, Esther Duflo causa espécie entre seus colegas economistas, que raramente admitem sua ignorância, mesmo diante de um problema com a dimensão da pobreza. Ela lembra que, no caso da pobreza, há pelo menos dois grandes campos que se arvoram saber a resposta*. Um, liderado pelo economista Jeffrey Sachs, da Universidade Columbia, garante que a ajuda internacional reduz a pobreza, mas é preciso mais. Outro, encabeçado pelo economista William Easterly, da New York University, defende que mais ajuda só piora a situação, pois aumenta a corrupção e a dependência dos países pobres em relação aos ricos.
*Assista à apresentação de Esther Duflo no TED – Ideas Worth Spreading
Uma vez que modelos e estatísticas não levam a uma resposta conclusiva, Esther optou por ir a campo – passo que causa ainda mais estranheza, uma vez que se aprende nos livros-texto sobre a impossibilidade de experimentos controlados nas sociedades humanas para testar hipóteses econômicas.
Esther e seu laboratório no MIT – o Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-Pal) – vêm há anos praticando “testes controlados de aleatoriedade” para apontar quais ações levam à redução da pobreza e, assim, contribuir para as políticas sociais. A ideia é a mesma utilizada pela medicina para testar novas drogas, em que se tenta estabelecer causas e efeitos e, assim, livrar-se da aleatoriedade com que conviviam o médico medieval e suas sanguessugas.
Tome-se, por exemplo, a eficácia do microcrédito como ferramenta para catapultar os cidadãos para fora da pobreza extrema. A estratégia do J-Pal é dar o remédio – no caso o microcrédito – a um grupo de uma determinada população, mas não a outro. Este último funciona como o “controle”, com basicamente as mesmas características do primeiro, exceto pela falta de microcrédito. Se, ao fim do experimento, os grupos mostrarem resultados diversos, pode-se dizer que a diferença foi causada pelo “remédio”.
Nem sempre é possível aplicar o método praticado por Esther Duflo e, mesmo quando é possível, o desafio consiste em fazer as perguntas certas, do jeito certo. Os testes controlados de aleatoriedade possuem a virtude de quebrar o problema em questões menores e, embora os resultados não respondam à questão maior sobre o papel da ajuda na redução da pobreza, é possível saber os efeitos de, por exemplo, microcrédito, mais educação ou imunização de uma dada população. Esses elementos, se atacados, provavelmente contribuirão para reduzir a pobreza.
Mas talvez a ousadia maior esteja em admitir nossa suprema ignorância, seja em estabelecer causas e efeitos dos fenômenos naturais à nossa volta, seja em conhecer o que motiva a própria espécie humana a se comportar como se comporta. Ao admitir que não sabem, Esther e seus colaboradores abrem-se a formular perguntas que talvez possam vir a ser respondidas, mas que, com certeza, levarão a mais perguntas. Isso, lembra o biólogo Robert Root-Bernstein, é a base da ciência. “As respostas são importantes principalmente ao nos levar a novas perguntas”, escreveu ele em um livro inteiro dedicado à ignorância.
Em As Virtudes da Ignorância – Complexidade, Sustentabilidade e os Limites do Conhecimento (The University Press of Kentucky, 2008), Bernstein assina um capítulo intitulado “Eu não sei!” “O objetivo de centrar-se na ignorância é construir conhecimento à luz tanto do que sabemos quanto do que não sabemos”, escreveu ele. “Construir mais conhecimento vai revelar novas formas de ignorância, ad infinitum. Para mim, conhecimento e ignorância são o ‘yin e yang’ da compreensão. Você não pode ter um sem ter o outro, e, quando eles estão fora de equilíbrio, o mundo está com problemas.”
De acordo com os organizadores do livro, o mundo está com problemas pelo menos desde o Iluminismo, período que sucedeu a Idade Média e seus médicos com- sanguessugas, e que enraizou a visão ocidental baseada na racionalidade.
As revoluções científicas, políticas e econômicas que a nova visão de mundo proporcionou permitiram ao homem lançar-se na aventura de controlar a natureza, criar economias e tecnologias que o levaram além da subsistência, e libertar o indivíduo de governos, religiões, tradições familiares e do passado.
A resposta aos problemas que derivam dessas novas atividades – por exemplo, poluição, corrupção, injustiça – é mais racionalidade e conhecimento. Porém, escreve Bernstein, se um problema persiste – seria o caso da poluição, da corrupção, da injustiça, e da pobreza? –, “é precisamente porque o conhecimento existente é inadequado para enfrentá-lo ou causou o problema em primeiro lugar”.
Currículo da ignorância
Mesmo com a moderna medicina em lugar das sanguessugas, os médicos talvez saibam melhor do que ninguém que somos infinitamente mais ignorantes do que conhecedores. “Sabemos, de fato, muito pouco para efetivamente prevenir doenças, curar e aliviar o sofrimento”, segundo a filósofa Ann Kerwin. “A medicina está implicada em nossa ignorância, em nossa incapacidade de compreender nossos sistemas complexos, formas de reparação e reconstrução.”
Ann ajudou a criar, nos idos dos anos 1980, o Currículo sobre Ignorância na Medicina (Curriculum on Medical Ignorance, ou CMI), da Escola de Medicina da Universidade do Arizona, que incentiva médicos aspirantes e profissionais a pensar, ponderar, duvidar, revisar, pesquisar e a explorar sua ignorância.
Para ajudar os estudantes a fazer isso, Ann e os demais formuladores do CMI desenharam um “mapa da ignorância”, em que identificam várias formas com que ela ocorre: todas as coisas que você sabe que não sabe (ignorância aberta), todas as coisas que você não sabe que não sabe (ignorância oculta), todas as coisas que você acha que sabe, mas não sabe (erros), todas as coisas que você não sabe que sabe (conhecimento tácito), conhecimento perigoso ou proibido (tabu), e todas as coisas muito dolorosas de saber, então você não as sabe (negação).
“Como educadores da medicina, devemos preparar os estudantes para o futuro”, escrevem Marlys Witte, Peter Crown, Michael Bernas e Charles Witte, responsáveis pelo CMI na Universidade do Arizona. “Apesar disso, os estudantes gastam a maior parte de seus anos de ciência básica memorizando o conhecimento do dia, que em grande parte estará desatualizado logo depois.” Em vez disso, acreditam, é essencial que os alunos “aprendam a como aprender, cuidadosa e continuamente, ao longo de suas vidas”. E que vejam a universidade não como “fábrica de conhecimento”, mas como um “commons da ignorância”, ou seja, o lugar ideal para aprender e descobrir o desconhecido.
O CMI é apenas um currículo em uma imensidão de escolas – de medicina, economia e tantas outras disciplinas – que se dedicam a ensinar o conhecimento corrente e não seu questionamento. Para quebrar com isso, os organizadores de As Virtudes da Ignorância propõem que a humanidade assuma o seu forte e adote uma visão de mundo baseada na ignorância. “Isso não significa”, dizem eles, “que não devemos buscar o conhecimento ou que somos estúpidos ou malvados. Mas nos força a nos lembrar das coisas, nos leva a esperar por segundas chances, e nos dá incentivo a manter a escala pequena.”
Esses três elementos vêm bem a calhar no momento em que – para citar mais um problema sem solução além da pobreza, corrupção, injustiça – 60 mil barris de petróleo por dia se espalham pelas águas do Golfo do México, sem fim à vista. O que mais podemos aprender desse triste episódio, além de que somos profundamente ignorantes diante da enorme complexidade e interdependência do mundo à nossa volta? O que aconteceria se, como lembrou o colunista americano David Roberts, não houvesse nada que pudesse cessar o derramamento? Talvez aí nos lembrássemos de nossa imensa ignorância. E aprendêssemos, como disse o poeta Wendell Berry, a perguntar o que precisamos saber.
*Jornalista e fundadora de Página 22[:en]Da economia à medicina, passando pela crise ambiental, há indícios de que é hora de reconhecer: somos infinitamente mais ignorantes do que conhecedores
“Infelizmente, não sabemos”, diz a economista francesa Esther Duflo sobre o papel que a ajuda internacional exerce no combate à pobreza. “Nunca saberemos.” Os bilhões de dólares destinados a erradicar a pobreza na África no passado não melhoraram o desempenho econômico – medido pelo Produto Interno Bruto – de países que receberam ajuda. “Mas como saber o que teria acontecido sem essa ajuda?”, questiona Esther, pesquisadora do Massachusetts Institute of Technology (MIT), instituição onde também se graduou.
Para ela, tal situação nos deixa no mesmo pé em que o médico da Idade Média que usava sanguessugas como tratamento. “Às vezes o paciente melhora, às vezes ele morre. É efeito das sanguessugas ou alguma outra coisa? Não sabemos.”
Como era de imaginar, Esther Duflo causa espécie entre seus colegas economistas, que raramente admitem sua ignorância, mesmo diante de um problema com a dimensão da pobreza. Ela lembra que, no caso da pobreza, há pelo menos dois grandes campos que se arvoram saber a resposta*. Um, liderado pelo economista Jeffrey Sachs, da Universidade Columbia, garante que a ajuda internacional reduz a pobreza, mas é preciso mais. Outro, encabeçado pelo economista William Easterly, da New York University, defende que mais ajuda só piora a situação, pois aumenta a corrupção e a dependência dos países pobres em relação aos ricos.
*Assista à apresentação de Esther Duflo no TED – Ideas Worth Spreading
Uma vez que modelos e estatísticas não levam a uma resposta conclusiva, Esther optou por ir a campo – passo que causa ainda mais estranheza, uma vez que se aprende nos livros-texto sobre a impossibilidade de experimentos controlados nas sociedades humanas para testar hipóteses econômicas.
Esther e seu laboratório no MIT – o Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-Pal) – vêm há anos praticando “testes controlados de aleatoriedade” para apontar quais ações levam à redução da pobreza e, assim, contribuir para as políticas sociais. A ideia é a mesma utilizada pela medicina para testar novas drogas, em que se tenta estabelecer causas e efeitos e, assim, livrar-se da aleatoriedade com que conviviam o médico medieval e suas sanguessugas.
Tome-se, por exemplo, a eficácia do microcrédito como ferramenta para catapultar os cidadãos para fora da pobreza extrema. A estratégia do J-Pal é dar o remédio – no caso o microcrédito – a um grupo de uma determinada população, mas não a outro. Este último funciona como o “controle”, com basicamente as mesmas características do primeiro, exceto pela falta de microcrédito. Se, ao fim do experimento, os grupos mostrarem resultados diversos, pode-se dizer que a diferença foi causada pelo “remédio”.
Nem sempre é possível aplicar o método praticado por Esther Duflo e, mesmo quando é possível, o desafio consiste em fazer as perguntas certas, do jeito certo. Os testes controlados de aleatoriedade possuem a virtude de quebrar o problema em questões menores e, embora os resultados não respondam à questão maior sobre o papel da ajuda na redução da pobreza, é possível saber os efeitos de, por exemplo, microcrédito, mais educação ou imunização de uma dada população. Esses elementos, se atacados, provavelmente contribuirão para reduzir a pobreza.
Mas talvez a ousadia maior esteja em admitir nossa suprema ignorância, seja em estabelecer causas e efeitos dos fenômenos naturais à nossa volta, seja em conhecer o que motiva a própria espécie humana a se comportar como se comporta. Ao admitir que não sabem, Esther e seus colaboradores abrem-se a formular perguntas que talvez possam vir a ser respondidas, mas que, com certeza, levarão a mais perguntas. Isso, lembra o biólogo Robert Root-Bernstein, é a base da ciência. “As respostas são importantes principalmente ao nos levar a novas perguntas”, escreveu ele em um livro inteiro dedicado à ignorância.
Em As Virtudes da Ignorância – Complexidade, Sustentabilidade e os Limites do Conhecimento (The University Press of Kentucky, 2008), Bernstein assina um capítulo intitulado “Eu não sei!” “O objetivo de centrar-se na ignorância é construir conhecimento à luz tanto do que sabemos quanto do que não sabemos”, escreveu ele. “Construir mais conhecimento vai revelar novas formas de ignorância, ad infinitum. Para mim, conhecimento e ignorância são o ‘yin e yang’ da compreensão. Você não pode ter um sem ter o outro, e, quando eles estão fora de equilíbrio, o mundo está com problemas.”
De acordo com os organizadores do livro, o mundo está com problemas pelo menos desde o Iluminismo, período que sucedeu a Idade Média e seus médicos com- sanguessugas, e que enraizou a visão ocidental baseada na racionalidade.
As revoluções científicas, políticas e econômicas que a nova visão de mundo proporcionou permitiram ao homem lançar-se na aventura de controlar a natureza, criar economias e tecnologias que o levaram além da subsistência, e libertar o indivíduo de governos, religiões, tradições familiares e do passado.
A resposta aos problemas que derivam dessas novas atividades – por exemplo, poluição, corrupção, injustiça – é mais racionalidade e conhecimento. Porém, escreve Bernstein, se um problema persiste – seria o caso da poluição, da corrupção, da injustiça, e da pobreza? –, “é precisamente porque o conhecimento existente é inadequado para enfrentá-lo ou causou o problema em primeiro lugar”.
Currículo da ignorância
Mesmo com a moderna medicina em lugar das sanguessugas, os médicos talvez saibam melhor do que ninguém que somos infinitamente mais ignorantes do que conhecedores. “Sabemos, de fato, muito pouco para efetivamente prevenir doenças, curar e aliviar o sofrimento”, segundo a filósofa Ann Kerwin. “A medicina está implicada em nossa ignorância, em nossa incapacidade de compreender nossos sistemas complexos, formas de reparação e reconstrução.”
Ann ajudou a criar, nos idos dos anos 1980, o Currículo sobre Ignorância na Medicina (Curriculum on Medical Ignorance, ou CMI), da Escola de Medicina da Universidade do Arizona, que incentiva médicos aspirantes e profissionais a pensar, ponderar, duvidar, revisar, pesquisar e a explorar sua ignorância.
Para ajudar os estudantes a fazer isso, Ann e os demais formuladores do CMI desenharam um “mapa da ignorância”, em que identificam várias formas com que ela ocorre: todas as coisas que você sabe que não sabe (ignorância aberta), todas as coisas que você não sabe que não sabe (ignorância oculta), todas as coisas que você acha que sabe, mas não sabe (erros), todas as coisas que você não sabe que sabe (conhecimento tácito), conhecimento perigoso ou proibido (tabu), e todas as coisas muito dolorosas de saber, então você não as sabe (negação).
“Como educadores da medicina, devemos preparar os estudantes para o futuro”, escrevem Marlys Witte, Peter Crown, Michael Bernas e Charles Witte, responsáveis pelo CMI na Universidade do Arizona. “Apesar disso, os estudantes gastam a maior parte de seus anos de ciência básica memorizando o conhecimento do dia, que em grande parte estará desatualizado logo depois.” Em vez disso, acreditam, é essencial que os alunos “aprendam a como aprender, cuidadosa e continuamente, ao longo de suas vidas”. E que vejam a universidade não como “fábrica de conhecimento”, mas como um “commons da ignorância”, ou seja, o lugar ideal para aprender e descobrir o desconhecido.
O CMI é apenas um currículo em uma imensidão de escolas – de medicina, economia e tantas outras disciplinas – que se dedicam a ensinar o conhecimento corrente e não seu questionamento. Para quebrar com isso, os organizadores de As Virtudes da Ignorância propõem que a humanidade assuma o seu forte e adote uma visão de mundo baseada na ignorância. “Isso não significa”, dizem eles, “que não devemos buscar o conhecimento ou que somos estúpidos ou malvados. Mas nos força a nos lembrar das coisas, nos leva a esperar por segundas chances, e nos dá incentivo a manter a escala pequena.”
Esses três elementos vêm bem a calhar no momento em que – para citar mais um problema sem solução além da pobreza, corrupção, injustiça – 60 mil barris de petróleo por dia se espalham pelas águas do Golfo do México, sem fim à vista. O que mais podemos aprender desse triste episódio, além de que somos profundamente ignorantes diante da enorme complexidade e interdependência do mundo à nossa volta? O que aconteceria se, como lembrou o colunista americano David Roberts, não houvesse nada que pudesse cessar o derramamento? Talvez aí nos lembrássemos de nossa imensa ignorância. E aprendêssemos, como disse o poeta Wendell Berry, a perguntar o que precisamos saber.
*Jornalista e fundadora de Página 22