O eleitorado ainda quer ver nos políticos algo que se assemelhe a convicção, pelo menos na Austrália. Foi a lição ministrada a Kevin Rudd, que perdeu popularidade – e o cargo de primeiro-ministro – depois de abandonar seu projeto sobre mudança climática
O tema da mudança climática em geral é uma pedra no sapato dos políticos: há que se comprometer com cortes de emissões, mas garantir que setor econômico algum sairá prejudicado. Há que mostrar liderança ao mundo, sem perder a competitividade jamais. Por fim, há que agir. Encarar assunto tão complexo, com intricadas implicações locais e globais, é difícil em todos os países. Não é à toa que, recentemente, a França abandonou a ideia de uma taxa sobre o carbono e o Senado americano arquivou um projeto de lei sobre as mudanças do clima. Na Austrália, entretanto, foi a ausência – e não a presença – da mudança climática na agenda que movimentou o círculo político às vésperas de eleições nacionais.
O primeiro-ministro Kevin Rudd cometeu suicídio político ao postergar seu projeto para criar um esquema de cap-and-trade [1] para reduzir emissões de carbono, acabou sem popularidade, adotando medidas desesperadas e, finalmente, perdeu o cargo em um golpe interno de seu partido, o Trabalhista. Dois meses depois, as eleições produziram um Parlamento dividido, sem maioria para nenhuma das duas grandes legendas, mas com um renovado mandato para o Partido Verde, o único a abordar o tema do clima durante a campanha. Pela primeira vez os Verdes obtiveram uma cadeira na Câmara dos Deputados e, com nove assentos no Senado, garantiram o controle desta casa: sem eles, não haverá maioria para aprovar legislação.
[1] Instrumento econômico pelo qual quem excede sua cota de emissões pode comprar permissões de quem emite abaixo da cota.
Rudd foi eleito em 2007 – ano dourado para a mobilização em relação às mudanças do clima e que resultou em um Nobel para Al Gore e o IPCC – com uma plataforma fortemente centrada na questão ambiental. Ainda na oposição, em 2006, caracterizou a mudança climática como “o maior desafio moral, econômico e social do nosso tempo” e apresentou uma visão em que a Austrália lideraria o mundo ao se comprometer a cortar as emissões de carbono. Menos de três anos depois, diante do fracasso da reunião de Copenhague, com a perspectiva de eleições e um líder da oposição hostil à questão do clima, Rudd optou por engavetar o projeto que havia dado sentido a sua administração. Deixou uma nação inteira a se perguntar: caiu a máscara? Até que ponto o compromisso de Rudd com a mitigação da mudança climática era moral ou apenas político?
Óbvio, é a reputação
Para Robert Manne, professor de política e relações internacionais da La Trobe University, em Melbourne, e presidente do conselho editorial da revista mensal The Monthly, Rudd tem convicções morais, mas foi mal aconselhado por assessores ligados a facções de direita dentro do Partido Trabalhista. Eles o teriam convencido de que tinha mais a perder se insistisse no projeto de cap-and-trade – rejeitado duas vezes pelo Senado – do que se o abandonasse. “Eles são tão cínicos, pensam que toda a política é aritmética e contabilidade de votos”, disse Manne a Página22. “Não compreendem fatores menos óbvios, como a reputação de um político e a sensação de que ele tem convicções.”
Mas, se nem toda política é aritmética, porque Rudd optou por abandonar seu tema mais caro e expor-se ao eleitorado? “O que Rudd não percebeu é que, se ele representava qualquer coisa na mente do público australiano, era a ação contra a mudança climática”, afirma Manne. E pagou caro por isso. Depois do anúncio da postergação do projeto para reduzir as emissões, em fins de abril, as pesquisas de opinião detectaram queda de 8% na preferência dos eleitores pelos Trabalhistas, deixando o partido com 35%, ante os 43% da coalizão de oposição entre os Liberais e os Nacionais.
Com eleições previstas para antes do fim do ano, o primeiro-ministro passou a anunciar, em vão, medidas de impacto na tentativa de reavivar a popularidade. Até mesmo a proposta de taxar em 40% os exorbitantes lucros das companhias mineradoras – que teoricamente beneficiaria os donos dos recursos minerais, os cidadãos australianos – teve o efeito contrário. Rudd acabou acuado em seu próprio partido e deposto, em junho, por sua vice, Julia Gillard, em uma manobra política sem precedentes e que deixou o país boquiaberto. Julia, depois de apaziguar os ânimos das mineradoras em relação ao novo imposto – amenizando a dentada sobre seus lucros –, convocou eleições para agosto.
Verdes no país marrom
A mudança climática quase não apareceu na plataforma de campanha de Julia. Em vez da visão grandiosa de uma Austrália líder na mitigação de emissões, prometeu formar uma Assembleia de 150 cidadãos comuns para ajudar o país a alcançar um consenso sobre como avançar.
A Austrália tem uma das maiores taxas de emissão de carbono per capita do mundo e é um dos países que, comprovadamente, sofrem os efeitos das mudanças nos padrões globais do clima há décadas, com estações chuvosas mais curtas e verões mais quentes. A economia do país, entretanto, é fortemente dependente do setor minerador e a Austrália responde por 25% das exportações mundiais de carvão – considerado o mais sujo dos combustíveis fósseis.
A coalizão de oposição, na pessoa de seu líder Tony Abbott, rejeita a ideia de que a mudança climática decorre de atividades humanas e taxou o sistema de cap-and-trade de emissões de “apenas mais um grande imposto” sobre a economia australiana. Abbott declarou que, sob seu comando, a Austrália jamais dará um preço ao carbono.
Parece claro para qualquer eleitor que falta convicção tanto a Julia, autora do golpe de misericórdia em Rudd, quanto a Abbott, que em dezembro, às vésperas da reunião da ONU sobre a mudança climática em Copenhague, roubou a liderança da coalizão de Malcolm Turnbull e acabou com os planos do governo de um acordo para aprovar o projeto do clima no Senado. E foi sem convicção que os australianos foram às urnas em 21 de agosto. Ao contrário de 2007, este ano não houve clamor nas ruas para que a questão do clima fosse levada às urnas.
Para Robert Manne, a campanha internacional dos céticos contra a mitigação das mudanças climáticas – que ele considera a mais bem-sucedida campanha de propaganda em tempos de paz – conseguiu convencer um pequeno número de australianos desde 2007, mas a maioria ainda espera ver ações para reduzir emissões.
O problema na Austrália é que o debate é largamente influenciado pelos partidos políticos, explica ele. “Porque os políticos falharam em agir, um lado postergou e o outro não quer fazer nada, a opinião pública tem dificuldade em se expressar.” Em 2007, o clima foi um dos temas abraçados por um dos partidos, o que forçou o outro, e o restante da nação, a prestar atenção.
Talvez os cidadãos australianos não tenham conseguido expressar seu desejo de ver na campanha dos principais partidos a grande questão moral de nosso tempo. Mas, coletivamente, eles se expressaram claramente nas urnas. O resultado das eleições não permitiu a nenhum dos dois grandes partidos formar um novo governo e, no fechamento desse texto, estimava-se pelo menos duas semanas de negociações de ambos com os Verdes e quatro parlamentares independentes para decidir quem vai governar a Austrália pelos próximos três anos.
“Os eleitores australianos são os grandes vencedores da eleição”, escreveu um leitor ao jornal The Age, de Melbourne. “Obtivemos aquilo porque votamos e os partidos Liberal e Trabalhista tiveram o que mereciam. Eles não nos deram visão, sonho, aspiração, soluções, nada, e nós, o público eleitor, não demos nada a eles: poder, mandato ou licença”. Outro leitor emendou: “Mensagem da eleição para os dois maiores partidos: é o meio ambiente, estúpido”.
Nem todos os eleitores estão sintonizados com as questões ambientais, mas parece claro que a grande maioria sente-se distante da política diante de tanta aritmética, cálculo, suicídio e homicídio político. Entretanto, a ascensão dos Verdes – com 14% dos votos no Senado e 12% na Câmara – parece indicar que ainda há um partido apto a carregar o que sobra da visão, sonho e aspiração da sociedade australiana. A cor da sua bandeira não deixa dúvida sobre as convicções que os movem.
* Jornalista e fundadora de Página22.[:en]O eleitorado ainda quer ver nos políticos algo que se assemelhe a convicção, pelo menos na Austrália. Foi a lição ministrada a Kevin Rudd, que perdeu popularidade – e o cargo de primeiro-ministro – depois de abandonar seu projeto sobre mudança climática
O tema da mudança climática em geral é uma pedra no sapato dos políticos: há que se comprometer com cortes de emissões, mas garantir que setor econômico algum sairá prejudicado. Há que mostrar liderança ao mundo, sem perder a competitividade jamais. Por fim, há que agir. Encarar assunto tão complexo, com intricadas implicações locais e globais, é difícil em todos os países. Não é à toa que, recentemente, a França abandonou a ideia de uma taxa sobre o carbono e o Senado americano arquivou um projeto de lei sobre as mudanças do clima. Na Austrália, entretanto, foi a ausência – e não a presença – da mudança climática na agenda que movimentou o círculo político às vésperas de eleições nacionais.
O primeiro-ministro Kevin Rudd cometeu suicídio político ao postergar seu projeto para criar um esquema de cap-and-trade [1] para reduzir emissões de carbono, acabou sem popularidade, adotando medidas desesperadas e, finalmente, perdeu o cargo em um golpe interno de seu partido, o Trabalhista. Dois meses depois, as eleições produziram um Parlamento dividido, sem maioria para nenhuma das duas grandes legendas, mas com um renovado mandato para o Partido Verde, o único a abordar o tema do clima durante a campanha. Pela primeira vez os Verdes obtiveram uma cadeira na Câmara dos Deputados e, com nove assentos no Senado, garantiram o controle desta casa: sem eles, não haverá maioria para aprovar legislação.
[1] Instrumento econômico pelo qual quem excede sua cota de emissões pode comprar permissões de quem emite abaixo da cota.
Rudd foi eleito em 2007 – ano dourado para a mobilização em relação às mudanças do clima e que resultou em um Nobel para Al Gore e o IPCC – com uma plataforma fortemente centrada na questão ambiental. Ainda na oposição, em 2006, caracterizou a mudança climática como “o maior desafio moral, econômico e social do nosso tempo” e apresentou uma visão em que a Austrália lideraria o mundo ao se comprometer a cortar as emissões de carbono. Menos de três anos depois, diante do fracasso da reunião de Copenhague, com a perspectiva de eleições e um líder da oposição hostil à questão do clima, Rudd optou por engavetar o projeto que havia dado sentido a sua administração. Deixou uma nação inteira a se perguntar: caiu a máscara? Até que ponto o compromisso de Rudd com a mitigação da mudança climática era moral ou apenas político?
Óbvio, é a reputação
Para Robert Manne, professor de política e relações internacionais da La Trobe University, em Melbourne, e presidente do conselho editorial da revista mensal The Monthly, Rudd tem convicções morais, mas foi mal aconselhado por assessores ligados a facções de direita dentro do Partido Trabalhista. Eles o teriam convencido de que tinha mais a perder se insistisse no projeto de cap-and-trade – rejeitado duas vezes pelo Senado – do que se o abandonasse. “Eles são tão cínicos, pensam que toda a política é aritmética e contabilidade de votos”, disse Manne a Página22. “Não compreendem fatores menos óbvios, como a reputação de um político e a sensação de que ele tem convicções.”
Mas, se nem toda política é aritmética, porque Rudd optou por abandonar seu tema mais caro e expor-se ao eleitorado? “O que Rudd não percebeu é que, se ele representava qualquer coisa na mente do público australiano, era a ação contra a mudança climática”, afirma Manne. E pagou caro por isso. Depois do anúncio da postergação do projeto para reduzir as emissões, em fins de abril, as pesquisas de opinião detectaram queda de 8% na preferência dos eleitores pelos Trabalhistas, deixando o partido com 35%, ante os 43% da coalizão de oposição entre os Liberais e os Nacionais.
Com eleições previstas para antes do fim do ano, o primeiro-ministro passou a anunciar, em vão, medidas de impacto na tentativa de reavivar a popularidade. Até mesmo a proposta de taxar em 40% os exorbitantes lucros das companhias mineradoras – que teoricamente beneficiaria os donos dos recursos minerais, os cidadãos australianos – teve o efeito contrário. Rudd acabou acuado em seu próprio partido e deposto, em junho, por sua vice, Julia Gillard, em uma manobra política sem precedentes e que deixou o país boquiaberto. Julia, depois de apaziguar os ânimos das mineradoras em relação ao novo imposto – amenizando a dentada sobre seus lucros –, convocou eleições para agosto.
Verdes no país marrom
A mudança climática quase não apareceu na plataforma de campanha de Julia. Em vez da visão grandiosa de uma Austrália líder na mitigação de emissões, prometeu formar uma Assembleia de 150 cidadãos comuns para ajudar o país a alcançar um consenso sobre como avançar.
A Austrália tem uma das maiores taxas de emissão de carbono per capita do mundo e é um dos países que, comprovadamente, sofrem os efeitos das mudanças nos padrões globais do clima há décadas, com estações chuvosas mais curtas e verões mais quentes. A economia do país, entretanto, é fortemente dependente do setor minerador e a Austrália responde por 25% das exportações mundiais de carvão – considerado o mais sujo dos combustíveis fósseis.
A coalizão de oposição, na pessoa de seu líder Tony Abbott, rejeita a ideia de que a mudança climática decorre de atividades humanas e taxou o sistema de cap-and-trade de emissões de “apenas mais um grande imposto” sobre a economia australiana. Abbott declarou que, sob seu comando, a Austrália jamais dará um preço ao carbono.
Parece claro para qualquer eleitor que falta convicção tanto a Julia, autora do golpe de misericórdia em Rudd, quanto a Abbott, que em dezembro, às vésperas da reunião da ONU sobre a mudança climática em Copenhague, roubou a liderança da coalizão de Malcolm Turnbull e acabou com os planos do governo de um acordo para aprovar o projeto do clima no Senado. E foi sem convicção que os australianos foram às urnas em 21 de agosto. Ao contrário de 2007, este ano não houve clamor nas ruas para que a questão do clima fosse levada às urnas.
Para Robert Manne, a campanha internacional dos céticos contra a mitigação das mudanças climáticas – que ele considera a mais bem-sucedida campanha de propaganda em tempos de paz – conseguiu convencer um pequeno número de australianos desde 2007, mas a maioria ainda espera ver ações para reduzir emissões.
O problema na Austrália é que o debate é largamente influenciado pelos partidos políticos, explica ele. “Porque os políticos falharam em agir, um lado postergou e o outro não quer fazer nada, a opinião pública tem dificuldade em se expressar.” Em 2007, o clima foi um dos temas abraçados por um dos partidos, o que forçou o outro, e o restante da nação, a prestar atenção.
Talvez os cidadãos australianos não tenham conseguido expressar seu desejo de ver na campanha dos principais partidos a grande questão moral de nosso tempo. Mas, coletivamente, eles se expressaram claramente nas urnas. O resultado das eleições não permitiu a nenhum dos dois grandes partidos formar um novo governo e, no fechamento desse texto, estimava-se pelo menos duas semanas de negociações de ambos com os Verdes e quatro parlamentares independentes para decidir quem vai governar a Austrália pelos próximos três anos.
“Os eleitores australianos são os grandes vencedores da eleição”, escreveu um leitor ao jornal The Age, de Melbourne. “Obtivemos aquilo porque votamos e os partidos Liberal e Trabalhista tiveram o que mereciam. Eles não nos deram visão, sonho, aspiração, soluções, nada, e nós, o público eleitor, não demos nada a eles: poder, mandato ou licença”. Outro leitor emendou: “Mensagem da eleição para os dois maiores partidos: é o meio ambiente, estúpido”.
Nem todos os eleitores estão sintonizados com as questões ambientais, mas parece claro que a grande maioria sente-se distante da política diante de tanta aritmética, cálculo, suicídio e homicídio político. Entretanto, a ascensão dos Verdes – com 14% dos votos no Senado e 12% na Câmara – parece indicar que ainda há um partido apto a carregar o que sobra da visão, sonho e aspiração da sociedade australiana. A cor da sua bandeira não deixa dúvida sobre as convicções que os movem.
* Jornalista e fundadora de Página22.