Quando historiadores do futuro se debruçarem sobre a origem da noção de responsabilidade social, provavelmente vão se deparar com o nome “Nike” e a última década do século XX.
Da campanha global de boicote à marca, após denúncias de trabalho infantil em fábricas da Indonésia, nasceram as primeiras respostas corporativas às demandas por justiça social e ambiental. E à empresa do batismo de fogo também foi dada a oportunidade de reinventar-se e liderar o caminho.
Foi nessa época que a ex-ativista pela causa da Aids, a britânica Hannah Jones, migrou para o mundo empresarial e acompanhou de perto o desafio de garantir trabalho digno nas mais de mil fábricas em 52 países. Da batuta de Hannah, atual vice-presidente de Negócios Sustentáveis e Inovação da Nike Inc., podem-se esperar respostas para as grandes ambições do futuro, tais como eliminar completamente o desperdício ou o impacto sobre o uso da água, metas internas para 2050. Mas o tempo de agir isoladamente ficou para trás.
Fundada em inovação, a Nike abriu mais de 400 patentes ligadas à sustentabilidade e criou a plataforma GreenXchange, espécie de brainstorm global sobre ecoeficiência. Para Hannah, a próxima onda de competitividade global se dará em torno das soluções socioambientais, que só podem ser alcançadas com o livre trânsito de ideias entre os mais diferentes atores. Competição e colaboração fundidas em uma só estratégia: é o novo nome do jogo.
A Nike até hoje é lembrada pelo episódio de trabalho degradante na Indonésia que culminou com a primeira campanha global de boicote. Foi o momento da virada? Foi um grande ponto de virada para nós. Eu diria que foi uma experiência formadora. É preciso olhar para trás e lembrar quem éramos naqueles dias. Uma companhia muito jovem, quase adolescente, que cresceu muito rapidamente, mas o mundo havia mudado ainda mais rapidamente. Se há uma coisa verdadeira hoje é que o arco da mudança opera mais rápido que nunca. E nós estávamos fora de sintonia com o que precisávamos ser.
Acredito que a forma como fomos atacados nos anos 90 foi a melhor coisa que já nos aconteceu. Porque nos fez acordar, antes de outras companhias, para o que significava responsabilidade e pensar em questões como as condições de trabalho e o meio ambiente de maneira central para o nosso negócio.
Começamos a ser atacados em 1992. Era algo muito novo. O termo responsabilidade corporativa não existia. Fomos uma das primeiras empresas a montar uma equipe de responsabilidade social. Para mim, no fim das contas, foi como um rito de passagem que nos ensinou muito sobre quem somos, com o que nos importamos e quais são as nossas aspirações. E nos ajudou a incorporar, talvez mais cedo que outras empresas, uma nova abordagem para os negócios.
A senhora acha que isso teve um impacto no mundo corporativo como um todo? Uma das coisas que esse episódio ensinou a todos foi o poder da sociedade civil em colar uma questão a uma marca, de modo a mobilizar a mídia. Foi uma lição interessante. Acho que foi o chamado de alerta, para quem estava atento, de que havia um movimento acontecendo. Além desse aprendizado da Nike, houve ainda outras experiências naqueles anos que propiciaram, na verdade, o nascimento da responsabilidade corporativa. E essa é uma das melhores coisas que aconteceram ao mundo dos negócios.
Como a empresa conseguiu resolver seus problemas com a cadeia de custódia? Lidamos com imensa complexidade. A Nike não possui nenhuma fábrica e muitas vezes corresponde a um pequeno percentual da produção das fábricas que contrata. São mais de mil delas, em 52 países, que empregam 1 milhão de trabalhadores. Essa é uma escala significativa, especialmente se considerarmos as múltiplas legislações nacionais, as diferentes normas culturais, as diferentes formas segundo as quais empresas operam e leis são aplicadas.
A tarefa de olhar para essa cadeia de suprimentos e declarar “vamos desempenhar um papel catalítico para melhorar as condições de trabalho” era algo que ninguém havia feito antes. Integramos um verdadeiro movimento de aprendizagem industrial. A primeira fase foi quando todos passaram a formular políticas de conduta e a dizer: “Estas são as regras às quais esperamos que as pessoas obedeçam”. Só isso já foi um enorme processo de negociação, entre a sociedade civil, governos e indústria.
Mas pouco depois começamos a perceber que, apesar de importante, era só um pedaço de papel. Na maioria dos países, a letra da lei não é adequadamente cumprida e a empresa precisou estabelecer o monitoramento como uma competência interna. Foi aí que teve início o que eu chamo de “a era do monitoramento”, em que todo mundo estava centrado em como se superar nesse ponto. É claro que isso também se tornou complicado e, de novo, muito político, do tipo “o meu monitoramento é melhor que o seu”, ou “quem vai certificar o certificador?”, “e quem monitora o certificador do certificador?” Estou sendo caricata, mas foi realmente um desafio importante desse processo.
Em 2006, a Nike deu uma guinada nessa conversa. Começamos a dizer que o monitoramento identifica os problemas e é importante. Mas, sozinho, não garante que os problemas serão resolvidos. Foi então que iniciamos a nossa jornada, rio acima, e perguntamos: o que realmente muda comportamentos?
Percebemos que a nossa indústria é relativamente pouco sofisticada. O que significa que as fábricas não costumam ter departamentos fortes de recursos humanos ou de TI adequados, coisas assim. Tínhamos que ajudar a construir, nas fábricas, a capacidade de gerenciar pessoas. Enquanto os ajudávamos a se mover na direção do Lean Manufacturing (modelo inaugurado pela Toyota, que elimina estoques e promove mais eficiência), começamos a capacitação em recursos humanos. Fizemos um protótipo de índex, que significa que todos os nossos parceiros são ranqueados com um mix de qualidade, desempenho, preço e sustentabilidade, que inclui direitos do trabalhador. Oferecemos incentivos com base nos resultados.
Eu costumo dizer: siga os incentivos. Se você conseguir unir o desenvolvimento de capacidades aos incentivos, a etapa final são os padrões. Nós precisamos que o governo eleve os padrões e garanta enforcement, de forma que haja condições iguais para todos. Porque, se a Nike chega numa fábrica e declara “eu quero que você obedeça às minhas regras”, algumas delas já me responderam assim: “Aquele produtor do outro lado da rua não me pede isso. E você vai me custar dinheiro inicialmente para melhorar. Então não vou trabalhar com você, vou com aquele cara que não está sendo julgado pelos mesmos padrões”. Eu digo isso no contexto do Brasil, como de qualquer país. É muito importante estabelecer as regras de base, porque essa vai se tornar uma questão de competitividade.
Toda essa experiência pode ser aplicada ao desafio atual de eliminar o couro proveniente do desmatamento da Amazônia? Sim. Estamos mantendo a mesma conversa com o Greenpeace (no relatório A Farra do Boi, a ONG demonstrou que a Nike e outras companhias estavam comprando couro de gado ilegal). Como você rastreia os materiais até a fazenda? É uma tarefa muito difícil, ninguém sabe ainda como fazer adequadamente. E como vamos dar escala a esse sistema? Essa é a inovação. Em segundo lugar: incentivos. Como vamos embutir isso na maneira como os negócios funcionam. Há algumas semanas, enviamos a nossa equipe de negócios para a Amazônia juntamente com o Greenpeace para entender o que acontece por lá. Em terceiro lugar: padrões. O que as marcas nacionais estão fazendo? Elas estão jogando com as mesmas regras? Enquanto nós, como indústria, continuarmos enviando sinais inconsistentes e enquanto não tivermos as políticas públicas corretas, não veremos as mudanças.
A Nike e outras empresas recentemente conclamaram as mil maiores companhias americanas a iniciarem seus processos de sustentabilidade. Por que envolver toda a comunidade de negócios? Nós fazemos muito trabalho nesse sentido. Não se passa um mês sem que tenhamos pelo menos uma grande empresa de outro mercado nos visitando para descobrir o que fazemos e pedir a nossa ajuda. A Nike não pode resolver tudo sozinha. Nós podemos inovar, liderar esse processo e estamos comprometidos com isso. Mas, se queremos mudança sistêmica, não apenas precisamos trabalhar com a nossa indústria, mas com múltiplas indústrias. Para ter novos materiais descolados do consumo de recursos naturais escassos, precisamos dos melhores cientistas, das maiores empresas químicas, dos fazendeiros. É possível que tenhamos que trabalhar com um tipo de indústria inteiramente novo. Para atingir o closed loop e ter produtos sempre reciclados, o que precisamos é que todas as grandes empresas de logística comecem a trabalhar em como adquirir escala em logística reversa.
Depois de abrir patentes, a Nike criou o programa GreenXchange para compartilhar suas inovações e conquistar novos parceiros. O conceito de competitividade está sendo redefinido? Sim. Uma das coisas que eu faço muito e minha equipe também é olhar para a história, em particular, como a Google veio à vida. E como a revolução digital aconteceu. Em parte, isso só foi possível porque eles redefiniram o que significava competir. Toda essa noção de inovação aberta nasceu do poder de compartilhar informações. Acho que viemos de uma era em que o conhecimento, ou ter as respostas, era a sua vantagem competitiva. Agora estamos mudando para uma era em que fazer as perguntas certas poderá ser a sua vantagem competitiva. Como me aproximo da sabedoria das massas? Há um imenso valor em não ver algo como propriedade, mas entender que, se posso compartilhar a minha inovação, e receber inovação de outros, isso ajuda a que todos nos movamos mais rapidamente.
Como é a relação com stakeholders atualmente? Há um trabalho preventivo, de antecipar demandas? Sim, temos um relacionamento muito bom, colaborativo. Ninguém passa pelo que nós passamos sem perceber como a sociedade civil é crucial para nos tornar aptos a encontrar as soluções certas. De certa forma, esse foi o pré-requisito para adotarmos essa política de inovação aberta. Começamos a notar que compartilhamos a mesma visão de sucesso com muitos dos nossos stakeholders e frequentemente eles apresentam soluções que nós nunca havíamos imaginado, simplesmente porque eles têm uma perspectiva completamente diferente.
As empresas vêm se deparando com o imperativo da transparência, mas muitas tendem a comemorar e tornar públicos os acertos e, no entanto, omitir os erros. A senhora acredita que chegará um tempo em que transparência significará dividir com o público os erros, as dúvidas, os dilemas? Com toda certeza. Se você verificar os nossos três últimos relatórios de sustentabilidade, verá que nós mesmos reportamos as nossas dificuldades e os nossos desafios. Eu prefiro dizer a você onde eu tenho um problema, do que esperar que você venha me dizer qual é o meu problema. Eu prefiro lhe dizer quais são os meus desafios, porque você pode ter a resposta. Se eu não definir o problema, como posso obter a solução?
Aqueles de nós que entenderam que transparência é uma ferramenta poderosa para inovação estão agarrando essa oportunidade. Aqueles que não entenderam ainda serão forçados. Estamos vendo o surgimento de padrões globais de reporting, um número crescente de países e investidores demandando isso. Eu prefiro seguir nessa direção e liderar o caminho que ser forçada a fazer alguma coisa.
Qual é a abordagem da Nike sobre o fracasso? A nossa companhia é fundada em inovação. É um componente essencial de como pensamos sobre nós mesmos e como operamos. Se você vai habilitar alguém a ser criativo, não pode haver medo. Medo e criatividade não andam juntos. Inovação significa ampliar fronteiras e encontrar novas ideias de ruptura. Algumas delas serão loucas. E isso deve ser aceito. Se não permitirmos essa amplitude de fronteiras e então recompensá-la, em lugar de sancionar, vamos trancar a inovação. É um processo contínuo. Cada um dos nossos tênis aprendeu com o anterior. Em uma geração de tênis eu aprendi que poderia reduzir desperdício. Na geração seguinte eu descobri uma nova tecnologia capaz de retirar completamente o desperdício da equação. A chave é reiterar a inovação.
Como foi introduzir o paradigma da sustentabilidade em todos os departamentos? Precisaram demitir pessoas, ou contratar aquelas com determinadas habilidades e conhecimento? Colocar uma nova agenda na mesa, numa empresa ou em qualquer lugar, é uma jornada longa. É preciso liderança. E nós temos muita sorte de ter um líder, Mark Parker, nosso CEO, que entende muito claramente essa visão e sua importância. Isso tem um efeito cascata sobre a organização. O segundo ponto é que nós trabalhamos muito com educação dos funcionários. Eu tenho uma equipe de 140 pessoas, mas o meu objetivo é que todos os 33 mil funcionários considerem que estão trabalhando para SB & I (negócios sustentáveis e inovação, na sigla em inglês).
Se você pensar no modelo de negócios como um mosaico, em que cada pessoa está fazendo o seu pedaço de trabalho na sua especialidade, não há ninguém na Nike Inc. que não possa contribuir com pelo menos uma coisa. Se você trabalha no varejo, como pode repensar a embalagem ou a decoração da loja? Se você trabalha no marketing, como pode usar o poder da nossa marca, e nossa habilidade de contar histórias, para incentivar mudança social? A chave para mim é não ter todo mundo correndo para ser mais verde. Em lugar disso, é preciso ter foco: faça apenas uma coisa e use a sua expertise. Isso é desafio de inovação organizacional.
Como uma empresa pode se envolver com ações sociais e ao mesmo tempo se diferenciar da filantropia? Em primeiro lugar, eu não desconsideraria por completo a filantropia. Acho que o importante é considerar um portfólio de abordagens, algumas delas mais praticadas e conhecidas e outras mais no terreno da inovação. Se você olhar para o poder da Clinton Global Initiative, pode perceber que há espaço para filantropia. Mas cada vez mais percebemos que há ferramentas interessantes baseadas em modelos de negócios que podem ser aplicados a soluções sociais. Por exemplo, investir em empreendedorismo local. Acabamos de voltar do Rio, onde patrocinamos a Homeless World Cup. Nesse contexto, ajudamos uma organização a criar um miniempreendimento com pessoas desempregadas e sem teto, que transformaram as camisetas usadas no evento em perucas para vender em partidas de futebol. Você usa o que seria considerado desperdício, pensa em um modelo de negócios, incorpora uma meta social e, então, cria um projeto piloto para ver se consegue ganhar escala.
Como o esporte pode ser um vetor de mudança social? Acho que, para a maioria das pessoas, o esporte é apenas um jogo. Eu levanto do sofá no sábado, jogo futebol com os meus amigos e volto pra casa. Mas o que começamos a ver é que o próprio ato de se reunir em torno do esporte tem um enorme impacto, obviamente em saúde, que é uma grande questão, levando-se em conta as taxas crescentes de obesidade, mas também para o trabalho de equipe que gera habilidades de liderança. Mulheres para quem equidade de gênero é uma questão podem se unir através do esporte, desenvolver autoestima e assertividade.
Nos últimos dez anos, ajudamos a criar um movimento chamado Sport for Social Change, com redes em todo o mundo. A ideia é ensinar ONGs de mainstream a incluir o esporte no que fazem. Trabalhamos também com o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Ser um refugiado é provavelmente a mais profunda condição de exclusão a que se pode chegar. Você fica sem casa, sem pátria, sem direitos e em média será um refugiado por cinco anos ou até o fim da vida. A Acnur tem pouquíssimos recursos para educação e, claro, nada para esportes. Mas a maioria dessas pessoas é jovem. Imagine viver num acampamento não por seis meses, só esperando ir para casa, mas por dez anos, e não há nada para fazer o dia todo. Consegue imaginar o que isso faz?
Eu estive num campo de refugiados na fronteira da Somália, onde nós criamos um time feminino de voleibol. Foi a primeira vez que as mulheres tiveram permissão para jogar, mas precisavam usar burcas. Então enviamos uma equipe de design da Nike para trabalhar com elas no protótipo de uma burca apropriada para o esporte. Elas puderam jogar e aprenderam habilidades novas e algumas delas começaram seu próprio negócio. Nós temos um currículo especificamente voltado para jovens que viveram traumas devido a desastres naturais ou conflitos armados e trabalhamos com psicólogos para ajudá-los a se expressar através do esporte. O poder do esporte é altamente subestimado e, ao mesmo tempo, altamente impactante, e precisa ganhar escala.
A senhora já disse que acredita muito em medidas e que os números é que contam a história. Mas e quanto àqueles benefícios que não podem ser medidos? Há retornos tangíveis, fáceis de medir, e esses são frequentemente os ambientais: menos desperdício, menos substâncias tóxicas, mais eficiência energética.
Do outro lado há os intangíveis, que normalmente são os impactos sociais. São incrivelmente difíceis de medir, porque significa que alguém mudou de vida. Ainda estamos trabalhando nisso e as ONGs também. Há dez anos, no velho mundo da responsabilidade corporativa, focávamos coletivamente mais na história dos intangíveis e no valor moral das coisas. Mas em dado ponto sentimos necessidade de quebrar esse mito de que se tratava de um custo para os negócios. Precisávamos demonstrar que era possível o ganha-ganha, portanto quantificar. Na Homeless World Cup, 77% das pessoas que participaram desse programa saíram das ruas. É crucial que se demonstre isso.
Há outra discussão, sobre como se transforma um modelo de negócios, para que empresas tenham a segurança de que incorporar o pensamento social e ambiental ao coração do negócio é um ativo valioso e será recompensado pelos mercados. Há modos de demonstrar shareholder value. Um é que se pode reduzir a exposição ao risco, e como a British Petroleum lhe dirá, risco é uma operação de alto custo. O segundo é que você pode habilitar eficiência e demonstrar o retorno financeiro. Eu faço um tênis sem desperdício, eu economizo dinheiro. Terceiro é que isso possibilita inovação, o sangue vital da competitividade. Por causa dessas ações você pode desenvolver novos produtos, novos serviços e novos mercados.
Esse trabalho precisa ser feito, porque a velha mitologia, alguns anos trás, era de que tudo se resumia a reputação e filantropia. O que conseguimos fazer na Nike foi evoluir a discussão, e como empresa nós enxergamos claramente que se trata de vantagem competitiva, alimentar a inovação, atender demandas do consumidor e nos preparar para o futuro que nós vislumbramos. A próxima onda de competitividade econômica será a sustentabilidade.
E a onda anterior foi a internet? Exatamente.
A sua aposta então é de que a sustentabilidade se tornará tão essencial para os negócios quanto a internet? Claro, é fácil de entender, eu não estou inventando isso. Os recursos naturais estão diminuindo, população e consumo estão subindo. As coisas são como são. E há ainda os impactos muito próximos da mudança climática, que vão romper estruturas muito rapidamente. Volte dois anos antes da crise financeira e repare o que acontecia quando havia um verão particularmente quente, ou uma safra especialmente ruim em alguns dos países produtores de arroz. O arroz se tornou uma commodity escassa e os preços subiram. Duas coisas aconteceram: trabalhadores entraram em greve, porque sua renda não cobria mais os custos e países fecharam as suas fronteiras e não permitiram que o arroz fosse exportado. É só seguir essas tendências para perceber que precisamos nos mover rapidamente.
Como a senhora, que já foi ativista, avalia os movimentos socioambientais e sua relação com o mundo corporativo? Eu nunca pensei que iria trabalhar numa empresa. Ninguém na minha família havia trabalhado numa empresa antes. Eu venho de um background em que a sociedade civil organizada é muito importante para fortalecer comunidades, equidade etc. E ainda é. Mas acho que o jogo está mudando. Acho que a sociedade civil está evoluindo e precisa evoluir. A polarização entre o que as empresas fazem e o que as ONG fazem está sendo quebrada. E isso é bom, porque estamos aprendendo um com o outro. Eu vejo a sociedade civil como fonte de inovação, de grande aprendizado e de grandes insights. Em troca, espero que nós possamos trazer para a mesa inovação em termos de modelos de negócios e soluções de negócios.
Estamos vivendo um tempo em que, para consertar qualquer coisa no mundo, é preciso passar pelas corporações? Acho que são necessários quatro sujeitos para esse tango. Precisamos do governo na mesa. Porque, se o governo desempenha um papel-chave com políticas inovadoras, pode remover algumas das barreiras que impedem que as boas forças de mercado apareçam. Acho que a comunidade de negócios tem imensa importância, como fonte de empregos, de inovação e como motor das economias. Depois, penso que a sociedade civil tem um papel muito importante, como uma voz independente que vai lembrar a todos do que está ocorrendo e que dará insights que nós não necessariamente estamos ouvindo. E, finalmente, o consumidor, que é um cidadão, precisa fazer parte.
Que papel as empresas podem desempenhar na discussão sobre consumo sustentável? Há pelo menos dois caminhos para pensar sobre esse assunto. Um é a abordagem mais tradicional: temos de consumir menos. Eu acho essa uma ótima abordagem, mas não tenho certeza se é realista. Pegue o exemplo dos EUA, em que 70% da economia depende do consumo. Quando a crise estourou e houve queda do consumo, veja o que aconteceu. Isso é certo? Isso é bom? Pode-se fazer toda sorte de juízos de valor sobre isso, mas eu não estou julgando, sou pragmática. Acredito que vamos chegar aonde precisamos reduzindo o consumo e dizendo para as classes emergentes no Brasil, na Índia e na China que elas não podem ter o que nós tivemos? Não. Acho que podemos chegar a algum lugar, mas não longe o bastante.
A minha rota de preferência é criar produtos que não dependem de recursos naturais escassos. Acredito que podemos fazer isso com inovação e é isso que vai definir essa próxima onda de competitividade econômica. A ideia de closed loop, sejam produtos, sejam modelos de negócios, é muito interessante. E ninguém sabe ainda como vai ser. Será que vamos transformar um short num par de tênis? Não sei. Será que a reciclagem vai se tornar parte 100% da vida de todos? Não sei. Mas sei que vamos precisar de inovação.
Qual é o seu “Everest” em termos de sustentabilidade? Em 2050, nós teremos reduzido a nossa pegada de carbono em 80%. Usaremos 100% energia renovável, teremos zero impacto de água – ou seja, água limpa entra e água limpa sai – e zero desperdício. Toda a nossa cadeia de suprimentos será Lean, verde e equitativa e cada jovem do mundo terá acesso ao esporte. Esse é o meu Everest.
Suponho que vocês ainda não sabem como chegar lá. Não exatamente. É por isso que estou no Brasil. Acho que a inovação está em países como o Brasil.
Por quê? Eu sinto o cheiro. Acredito que o Brasil tem a oportunidade de vencer nessa próxima onda de competitividade econômica. O sul global guarda a chave para algumas das mais importantes inovações que vamos conhecer nas próximas décadas. E eu gostaria de fazer parte disso. O Brasil é imensamente importante para a Nike e não apenas por causa dos negócios, somos parceiros do Brasil há muito tempo. E eu vejo a reflexão que está ocorrendo aqui e a aspiração dos brasileiros de liderar e acho que uma parte disso deve emergir na forma dessa nova onda de sustentabilidade e inovação.[:en]Quando historiadores do futuro se debruçarem sobre a origem da noção de responsabilidade social, provavelmente vão se deparar com o nome “Nike” e a última década do século XX.
Da campanha global de boicote à marca, após denúncias de trabalho infantil em fábricas da Indonésia, nasceram as primeiras respostas corporativas às demandas por justiça social e ambiental. E à empresa do batismo de fogo também foi dada a oportunidade de reinventar-se e liderar o caminho.
Foi nessa época que a ex-ativista pela causa da Aids, a britânica Hannah Jones, migrou para o mundo empresarial e acompanhou de perto o desafio de garantir trabalho digno nas mais de mil fábricas em 52 países. Da batuta de Hannah, atual vice-presidente de Negócios Sustentáveis e Inovação da Nike Inc., podem-se esperar respostas para as grandes ambições do futuro, tais como eliminar completamente o desperdício ou o impacto sobre o uso da água, metas internas para 2050. Mas o tempo de agir isoladamente ficou para trás.
Fundada em inovação, a Nike abriu mais de 400 patentes ligadas à sustentabilidade e criou a plataforma GreenXchange, espécie de brainstorm global sobre ecoeficiência. Para Hannah, a próxima onda de competitividade global se dará em torno das soluções socioambientais, que só podem ser alcançadas com o livre trânsito de ideias entre os mais diferentes atores. Competição e colaboração fundidas em uma só estratégia: é o novo nome do jogo.
A Nike até hoje é lembrada pelo episódio de trabalho degradante na Indonésia que culminou com a primeira campanha global de boicote. Foi o momento da virada? Foi um grande ponto de virada para nós. Eu diria que foi uma experiência formadora. É preciso olhar para trás e lembrar quem éramos naqueles dias. Uma companhia muito jovem, quase adolescente, que cresceu muito rapidamente, mas o mundo havia mudado ainda mais rapidamente. Se há uma coisa verdadeira hoje é que o arco da mudança opera mais rápido que nunca. E nós estávamos fora de sintonia com o que precisávamos ser.
Acredito que a forma como fomos atacados nos anos 90 foi a melhor coisa que já nos aconteceu. Porque nos fez acordar, antes de outras companhias, para o que significava responsabilidade e pensar em questões como as condições de trabalho e o meio ambiente de maneira central para o nosso negócio.
Começamos a ser atacados em 1992. Era algo muito novo. O termo responsabilidade corporativa não existia. Fomos uma das primeiras empresas a montar uma equipe de responsabilidade social. Para mim, no fim das contas, foi como um rito de passagem que nos ensinou muito sobre quem somos, com o que nos importamos e quais são as nossas aspirações. E nos ajudou a incorporar, talvez mais cedo que outras empresas, uma nova abordagem para os negócios.
A senhora acha que isso teve um impacto no mundo corporativo como um todo? Uma das coisas que esse episódio ensinou a todos foi o poder da sociedade civil em colar uma questão a uma marca, de modo a mobilizar a mídia. Foi uma lição interessante. Acho que foi o chamado de alerta, para quem estava atento, de que havia um movimento acontecendo. Além desse aprendizado da Nike, houve ainda outras experiências naqueles anos que propiciaram, na verdade, o nascimento da responsabilidade corporativa. E essa é uma das melhores coisas que aconteceram ao mundo dos negócios.
Como a empresa conseguiu resolver seus problemas com a cadeia de custódia? Lidamos com imensa complexidade. A Nike não possui nenhuma fábrica e muitas vezes corresponde a um pequeno percentual da produção das fábricas que contrata. São mais de mil delas, em 52 países, que empregam 1 milhão de trabalhadores. Essa é uma escala significativa, especialmente se considerarmos as múltiplas legislações nacionais, as diferentes normas culturais, as diferentes formas segundo as quais empresas operam e leis são aplicadas.
A tarefa de olhar para essa cadeia de suprimentos e declarar “vamos desempenhar um papel catalítico para melhorar as condições de trabalho” era algo que ninguém havia feito antes. Integramos um verdadeiro movimento de aprendizagem industrial. A primeira fase foi quando todos passaram a formular políticas de conduta e a dizer: “Estas são as regras às quais esperamos que as pessoas obedeçam”. Só isso já foi um enorme processo de negociação, entre a sociedade civil, governos e indústria.
Mas pouco depois começamos a perceber que, apesar de importante, era só um pedaço de papel. Na maioria dos países, a letra da lei não é adequadamente cumprida e a empresa precisou estabelecer o monitoramento como uma competência interna. Foi aí que teve início o que eu chamo de “a era do monitoramento”, em que todo mundo estava centrado em como se superar nesse ponto. É claro que isso também se tornou complicado e, de novo, muito político, do tipo “o meu monitoramento é melhor que o seu”, ou “quem vai certificar o certificador?”, “e quem monitora o certificador do certificador?” Estou sendo caricata, mas foi realmente um desafio importante desse processo.
Em 2006, a Nike deu uma guinada nessa conversa. Começamos a dizer que o monitoramento identifica os problemas e é importante. Mas, sozinho, não garante que os problemas serão resolvidos. Foi então que iniciamos a nossa jornada, rio acima, e perguntamos: o que realmente muda comportamentos?
Percebemos que a nossa indústria é relativamente pouco sofisticada. O que significa que as fábricas não costumam ter departamentos fortes de recursos humanos ou de TI adequados, coisas assim. Tínhamos que ajudar a construir, nas fábricas, a capacidade de gerenciar pessoas. Enquanto os ajudávamos a se mover na direção do Lean Manufacturing (modelo inaugurado pela Toyota, que elimina estoques e promove mais eficiência), começamos a capacitação em recursos humanos. Fizemos um protótipo de índex, que significa que todos os nossos parceiros são ranqueados com um mix de qualidade, desempenho, preço e sustentabilidade, que inclui direitos do trabalhador. Oferecemos incentivos com base nos resultados.
Eu costumo dizer: siga os incentivos. Se você conseguir unir o desenvolvimento de capacidades aos incentivos, a etapa final são os padrões. Nós precisamos que o governo eleve os padrões e garanta enforcement, de forma que haja condições iguais para todos. Porque, se a Nike chega numa fábrica e declara “eu quero que você obedeça às minhas regras”, algumas delas já me responderam assim: “Aquele produtor do outro lado da rua não me pede isso. E você vai me custar dinheiro inicialmente para melhorar. Então não vou trabalhar com você, vou com aquele cara que não está sendo julgado pelos mesmos padrões”. Eu digo isso no contexto do Brasil, como de qualquer país. É muito importante estabelecer as regras de base, porque essa vai se tornar uma questão de competitividade.
Toda essa experiência pode ser aplicada ao desafio atual de eliminar o couro proveniente do desmatamento da Amazônia? Sim. Estamos mantendo a mesma conversa com o Greenpeace (no relatório A Farra do Boi, a ONG demonstrou que a Nike e outras companhias estavam comprando couro de gado ilegal). Como você rastreia os materiais até a fazenda? É uma tarefa muito difícil, ninguém sabe ainda como fazer adequadamente. E como vamos dar escala a esse sistema? Essa é a inovação. Em segundo lugar: incentivos. Como vamos embutir isso na maneira como os negócios funcionam. Há algumas semanas, enviamos a nossa equipe de negócios para a Amazônia juntamente com o Greenpeace para entender o que acontece por lá. Em terceiro lugar: padrões. O que as marcas nacionais estão fazendo? Elas estão jogando com as mesmas regras? Enquanto nós, como indústria, continuarmos enviando sinais inconsistentes e enquanto não tivermos as políticas públicas corretas, não veremos as mudanças.
A Nike e outras empresas recentemente conclamaram as mil maiores companhias americanas a iniciarem seus processos de sustentabilidade. Por que envolver toda a comunidade de negócios? Nós fazemos muito trabalho nesse sentido. Não se passa um mês sem que tenhamos pelo menos uma grande empresa de outro mercado nos visitando para descobrir o que fazemos e pedir a nossa ajuda. A Nike não pode resolver tudo sozinha. Nós podemos inovar, liderar esse processo e estamos comprometidos com isso. Mas, se queremos mudança sistêmica, não apenas precisamos trabalhar com a nossa indústria, mas com múltiplas indústrias. Para ter novos materiais descolados do consumo de recursos naturais escassos, precisamos dos melhores cientistas, das maiores empresas químicas, dos fazendeiros. É possível que tenhamos que trabalhar com um tipo de indústria inteiramente novo. Para atingir o closed loop e ter produtos sempre reciclados, o que precisamos é que todas as grandes empresas de logística comecem a trabalhar em como adquirir escala em logística reversa.
Depois de abrir patentes, a Nike criou o programa GreenXchange para compartilhar suas inovações e conquistar novos parceiros. O conceito de competitividade está sendo redefinido? Sim. Uma das coisas que eu faço muito e minha equipe também é olhar para a história, em particular, como a Google veio à vida. E como a revolução digital aconteceu. Em parte, isso só foi possível porque eles redefiniram o que significava competir. Toda essa noção de inovação aberta nasceu do poder de compartilhar informações. Acho que viemos de uma era em que o conhecimento, ou ter as respostas, era a sua vantagem competitiva. Agora estamos mudando para uma era em que fazer as perguntas certas poderá ser a sua vantagem competitiva. Como me aproximo da sabedoria das massas? Há um imenso valor em não ver algo como propriedade, mas entender que, se posso compartilhar a minha inovação, e receber inovação de outros, isso ajuda a que todos nos movamos mais rapidamente.
Como é a relação com stakeholders atualmente? Há um trabalho preventivo, de antecipar demandas? Sim, temos um relacionamento muito bom, colaborativo. Ninguém passa pelo que nós passamos sem perceber como a sociedade civil é crucial para nos tornar aptos a encontrar as soluções certas. De certa forma, esse foi o pré-requisito para adotarmos essa política de inovação aberta. Começamos a notar que compartilhamos a mesma visão de sucesso com muitos dos nossos stakeholders e frequentemente eles apresentam soluções que nós nunca havíamos imaginado, simplesmente porque eles têm uma perspectiva completamente diferente.
As empresas vêm se deparando com o imperativo da transparência, mas muitas tendem a comemorar e tornar públicos os acertos e, no entanto, omitir os erros. A senhora acredita que chegará um tempo em que transparência significará dividir com o público os erros, as dúvidas, os dilemas? Com toda certeza. Se você verificar os nossos três últimos relatórios de sustentabilidade, verá que nós mesmos reportamos as nossas dificuldades e os nossos desafios. Eu prefiro dizer a você onde eu tenho um problema, do que esperar que você venha me dizer qual é o meu problema. Eu prefiro lhe dizer quais são os meus desafios, porque você pode ter a resposta. Se eu não definir o problema, como posso obter a solução?
Aqueles de nós que entenderam que transparência é uma ferramenta poderosa para inovação estão agarrando essa oportunidade. Aqueles que não entenderam ainda serão forçados. Estamos vendo o surgimento de padrões globais de reporting, um número crescente de países e investidores demandando isso. Eu prefiro seguir nessa direção e liderar o caminho que ser forçada a fazer alguma coisa.
Qual é a abordagem da Nike sobre o fracasso? A nossa companhia é fundada em inovação. É um componente essencial de como pensamos sobre nós mesmos e como operamos. Se você vai habilitar alguém a ser criativo, não pode haver medo. Medo e criatividade não andam juntos. Inovação significa ampliar fronteiras e encontrar novas ideias de ruptura. Algumas delas serão loucas. E isso deve ser aceito. Se não permitirmos essa amplitude de fronteiras e então recompensá-la, em lugar de sancionar, vamos trancar a inovação. É um processo contínuo. Cada um dos nossos tênis aprendeu com o anterior. Em uma geração de tênis eu aprendi que poderia reduzir desperdício. Na geração seguinte eu descobri uma nova tecnologia capaz de retirar completamente o desperdício da equação. A chave é reiterar a inovação.
Como foi introduzir o paradigma da sustentabilidade em todos os departamentos? Precisaram demitir pessoas, ou contratar aquelas com determinadas habilidades e conhecimento? Colocar uma nova agenda na mesa, numa empresa ou em qualquer lugar, é uma jornada longa. É preciso liderança. E nós temos muita sorte de ter um líder, Mark Parker, nosso CEO, que entende muito claramente essa visão e sua importância. Isso tem um efeito cascata sobre a organização. O segundo ponto é que nós trabalhamos muito com educação dos funcionários. Eu tenho uma equipe de 140 pessoas, mas o meu objetivo é que todos os 33 mil funcionários considerem que estão trabalhando para SB & I (negócios sustentáveis e inovação, na sigla em inglês).
Se você pensar no modelo de negócios como um mosaico, em que cada pessoa está fazendo o seu pedaço de trabalho na sua especialidade, não há ninguém na Nike Inc. que não possa contribuir com pelo menos uma coisa. Se você trabalha no varejo, como pode repensar a embalagem ou a decoração da loja? Se você trabalha no marketing, como pode usar o poder da nossa marca, e nossa habilidade de contar histórias, para incentivar mudança social? A chave para mim é não ter todo mundo correndo para ser mais verde. Em lugar disso, é preciso ter foco: faça apenas uma coisa e use a sua expertise. Isso é desafio de inovação organizacional.
Como uma empresa pode se envolver com ações sociais e ao mesmo tempo se diferenciar da filantropia? Em primeiro lugar, eu não desconsideraria por completo a filantropia. Acho que o importante é considerar um portfólio de abordagens, algumas delas mais praticadas e conhecidas e outras mais no terreno da inovação. Se você olhar para o poder da Clinton Global Initiative, pode perceber que há espaço para filantropia. Mas cada vez mais percebemos que há ferramentas interessantes baseadas em modelos de negócios que podem ser aplicados a soluções sociais. Por exemplo, investir em empreendedorismo local. Acabamos de voltar do Rio, onde patrocinamos a Homeless World Cup. Nesse contexto, ajudamos uma organização a criar um miniempreendimento com pessoas desempregadas e sem teto, que transformaram as camisetas usadas no evento em perucas para vender em partidas de futebol. Você usa o que seria considerado desperdício, pensa em um modelo de negócios, incorpora uma meta social e, então, cria um projeto piloto para ver se consegue ganhar escala.
Como o esporte pode ser um vetor de mudança social? Acho que, para a maioria das pessoas, o esporte é apenas um jogo. Eu levanto do sofá no sábado, jogo futebol com os meus amigos e volto pra casa. Mas o que começamos a ver é que o próprio ato de se reunir em torno do esporte tem um enorme impacto, obviamente em saúde, que é uma grande questão, levando-se em conta as taxas crescentes de obesidade, mas também para o trabalho de equipe que gera habilidades de liderança. Mulheres para quem equidade de gênero é uma questão podem se unir através do esporte, desenvolver autoestima e assertividade.
Nos últimos dez anos, ajudamos a criar um movimento chamado Sport for Social Change, com redes em todo o mundo. A ideia é ensinar ONGs de mainstream a incluir o esporte no que fazem. Trabalhamos também com o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Ser um refugiado é provavelmente a mais profunda condição de exclusão a que se pode chegar. Você fica sem casa, sem pátria, sem direitos e em média será um refugiado por cinco anos ou até o fim da vida. A Acnur tem pouquíssimos recursos para educação e, claro, nada para esportes. Mas a maioria dessas pessoas é jovem. Imagine viver num acampamento não por seis meses, só esperando ir para casa, mas por dez anos, e não há nada para fazer o dia todo. Consegue imaginar o que isso faz?
Eu estive num campo de refugiados na fronteira da Somália, onde nós criamos um time feminino de voleibol. Foi a primeira vez que as mulheres tiveram permissão para jogar, mas precisavam usar burcas. Então enviamos uma equipe de design da Nike para trabalhar com elas no protótipo de uma burca apropriada para o esporte. Elas puderam jogar e aprenderam habilidades novas e algumas delas começaram seu próprio negócio. Nós temos um currículo especificamente voltado para jovens que viveram traumas devido a desastres naturais ou conflitos armados e trabalhamos com psicólogos para ajudá-los a se expressar através do esporte. O poder do esporte é altamente subestimado e, ao mesmo tempo, altamente impactante, e precisa ganhar escala.
A senhora já disse que acredita muito em medidas e que os números é que contam a história. Mas e quanto àqueles benefícios que não podem ser medidos? Há retornos tangíveis, fáceis de medir, e esses são frequentemente os ambientais: menos desperdício, menos substâncias tóxicas, mais eficiência energética.
Do outro lado há os intangíveis, que normalmente são os impactos sociais. São incrivelmente difíceis de medir, porque significa que alguém mudou de vida. Ainda estamos trabalhando nisso e as ONGs também. Há dez anos, no velho mundo da responsabilidade corporativa, focávamos coletivamente mais na história dos intangíveis e no valor moral das coisas. Mas em dado ponto sentimos necessidade de quebrar esse mito de que se tratava de um custo para os negócios. Precisávamos demonstrar que era possível o ganha-ganha, portanto quantificar. Na Homeless World Cup, 77% das pessoas que participaram desse programa saíram das ruas. É crucial que se demonstre isso.
Há outra discussão, sobre como se transforma um modelo de negócios, para que empresas tenham a segurança de que incorporar o pensamento social e ambiental ao coração do negócio é um ativo valioso e será recompensado pelos mercados. Há modos de demonstrar shareholder value. Um é que se pode reduzir a exposição ao risco, e como a British Petroleum lhe dirá, risco é uma operação de alto custo. O segundo é que você pode habilitar eficiência e demonstrar o retorno financeiro. Eu faço um tênis sem desperdício, eu economizo dinheiro. Terceiro é que isso possibilita inovação, o sangue vital da competitividade. Por causa dessas ações você pode desenvolver novos produtos, novos serviços e novos mercados.
Esse trabalho precisa ser feito, porque a velha mitologia, alguns anos trás, era de que tudo se resumia a reputação e filantropia. O que conseguimos fazer na Nike foi evoluir a discussão, e como empresa nós enxergamos claramente que se trata de vantagem competitiva, alimentar a inovação, atender demandas do consumidor e nos preparar para o futuro que nós vislumbramos. A próxima onda de competitividade econômica será a sustentabilidade.
E a onda anterior foi a internet? Exatamente.
A sua aposta então é de que a sustentabilidade se tornará tão essencial para os negócios quanto a internet? Claro, é fácil de entender, eu não estou inventando isso. Os recursos naturais estão diminuindo, população e consumo estão subindo. As coisas são como são. E há ainda os impactos muito próximos da mudança climática, que vão romper estruturas muito rapidamente. Volte dois anos antes da crise financeira e repare o que acontecia quando havia um verão particularmente quente, ou uma safra especialmente ruim em alguns dos países produtores de arroz. O arroz se tornou uma commodity escassa e os preços subiram. Duas coisas aconteceram: trabalhadores entraram em greve, porque sua renda não cobria mais os custos e países fecharam as suas fronteiras e não permitiram que o arroz fosse exportado. É só seguir essas tendências para perceber que precisamos nos mover rapidamente.
Como a senhora, que já foi ativista, avalia os movimentos socioambientais e sua relação com o mundo corporativo? Eu nunca pensei que iria trabalhar numa empresa. Ninguém na minha família havia trabalhado numa empresa antes. Eu venho de um background em que a sociedade civil organizada é muito importante para fortalecer comunidades, equidade etc. E ainda é. Mas acho que o jogo está mudando. Acho que a sociedade civil está evoluindo e precisa evoluir. A polarização entre o que as empresas fazem e o que as ONG fazem está sendo quebrada. E isso é bom, porque estamos aprendendo um com o outro. Eu vejo a sociedade civil como fonte de inovação, de grande aprendizado e de grandes insights. Em troca, espero que nós possamos trazer para a mesa inovação em termos de modelos de negócios e soluções de negócios.
Estamos vivendo um tempo em que, para consertar qualquer coisa no mundo, é preciso passar pelas corporações? Acho que são necessários quatro sujeitos para esse tango. Precisamos do governo na mesa. Porque, se o governo desempenha um papel-chave com políticas inovadoras, pode remover algumas das barreiras que impedem que as boas forças de mercado apareçam. Acho que a comunidade de negócios tem imensa importância, como fonte de empregos, de inovação e como motor das economias. Depois, penso que a sociedade civil tem um papel muito importante, como uma voz independente que vai lembrar a todos do que está ocorrendo e que dará insights que nós não necessariamente estamos ouvindo. E, finalmente, o consumidor, que é um cidadão, precisa fazer parte.
Que papel as empresas podem desempenhar na discussão sobre consumo sustentável? Há pelo menos dois caminhos para pensar sobre esse assunto. Um é a abordagem mais tradicional: temos de consumir menos. Eu acho essa uma ótima abordagem, mas não tenho certeza se é realista. Pegue o exemplo dos EUA, em que 70% da economia depende do consumo. Quando a crise estourou e houve queda do consumo, veja o que aconteceu. Isso é certo? Isso é bom? Pode-se fazer toda sorte de juízos de valor sobre isso, mas eu não estou julgando, sou pragmática. Acredito que vamos chegar aonde precisamos reduzindo o consumo e dizendo para as classes emergentes no Brasil, na Índia e na China que elas não podem ter o que nós tivemos? Não. Acho que podemos chegar a algum lugar, mas não longe o bastante.
A minha rota de preferência é criar produtos que não dependem de recursos naturais escassos. Acredito que podemos fazer isso com inovação e é isso que vai definir essa próxima onda de competitividade econômica. A ideia de closed loop, sejam produtos, sejam modelos de negócios, é muito interessante. E ninguém sabe ainda como vai ser. Será que vamos transformar um short num par de tênis? Não sei. Será que a reciclagem vai se tornar parte 100% da vida de todos? Não sei. Mas sei que vamos precisar de inovação.
Qual é o seu “Everest” em termos de sustentabilidade? Em 2050, nós teremos reduzido a nossa pegada de carbono em 80%. Usaremos 100% energia renovável, teremos zero impacto de água – ou seja, água limpa entra e água limpa sai – e zero desperdício. Toda a nossa cadeia de suprimentos será Lean, verde e equitativa e cada jovem do mundo terá acesso ao esporte. Esse é o meu Everest.
Suponho que vocês ainda não sabem como chegar lá. Não exatamente. É por isso que estou no Brasil. Acho que a inovação está em países como o Brasil.
Por quê? Eu sinto o cheiro. Acredito que o Brasil tem a oportunidade de vencer nessa próxima onda de competitividade econômica. O sul global guarda a chave para algumas das mais importantes inovações que vamos conhecer nas próximas décadas. E eu gostaria de fazer parte disso. O Brasil é imensamente importante para a Nike e não apenas por causa dos negócios, somos parceiros do Brasil há muito tempo. E eu vejo a reflexão que está ocorrendo aqui e a aspiração dos brasileiros de liderar e acho que uma parte disso deve emergir na forma dessa nova onda de sustentabilidade e inovação.