Da mesma forma que a indústria do tabaco por muito tempo usou as incertezas científicas para negar que o hábito de fumar tem graves consequências à saúde, um pequeno grupo de cientistas espalhou dúvidas sobre o consenso científico em torno do aquecimento global com o objetivo de evitar a ação para mitigá-lo.
É a tese defendida pelos historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway no livro Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming (Bloomsberry Press, 2010).
No caso do tabaco, disse Naomi Oreskes dias atrás em palestra na Universidade de Western Australia, o debate público mudou de rumo devido a três fatores. Um deles foi a admissão pelo Surgeon General – o porta-voz do governo federal americano para assuntos de saúde pública –, da relação entre o tabaco e o câncer de pulmão.
O segundo foi o fato de que a maioria dos cientistas não se mostrava reticente em dizer que as políticas públicas deveriam prevenir que as pessoas fumassem. E, por fim, uma longa história de litígio em que documentos mostrando os efeitos do tabaco vieram a público.
No caso das mudanças climáticas, manifestações públicas sobre a necessidade de agir feitas por políticos como Barack Obama ou Arnold Schwarzenegger não têm sido suficientes para detonar ação. Para complicar, a grande maioria dos cientistas, apesar do consenso sobre o assunto, é mais do que reticente em dizer que as políticas públicas devem ser orientadas para mitigar as mudanças do clima. P
or fim, destacou Naomi, a mídia americana tem prestado um “enorme desserviço” ao reportar sobre o assunto como se houvesse dois lados na comunidade científica, um que aceita o consenso sobre as mudanças climáticas e um que o rejeita. “Talvez seja preciso haver litígio para mudar o debate público sobre as mudanças climáticas”, opinou.
Em artigo publicado na revista Science, em 2004, Oreskes procurou identificar quantos artigos científicos no passado recente discordavam do consenso sobre as mudanças climáticas. A resposta: nenhum. Questionada sobre o resultado do estudo se replicado hoje com a mesma metodologia, ela admitiu que provavelmente detectaria uma “voz cética”. Ainda assim, previu, de 97 a 99% dos cientistas concordam que o aquecimento global está em curso.
A historiadora lembrou que o efeito estufa foi provado pela primeira vez em 1859 pelo físico John Tyndall e ao longo das décadas seguintes vários cientistas ajudaram a construir o conhecimento sobre o fenômeno, entre eles o sueco Svante Arrhenius, o britânico Guy Callendar, o austríaco Hans Suess, os americanos Roger Revelle e Charles Keeling. Estes últimos previram o aquecimento global antes que qualquer modelo computadorizado tivesse sido inventado para tal. Tanto que, em 1965, o presidente americano Lyndon Johnson alertou sobre o aumento da concentração de CO2 em mensagem ao Congresso. Nas décadas de 60 e 70, com o advento da modelagem climática, emergiu o consenso de que cedo ou tarde o mundo experimentaria o aquecimento global. A questão era quando.
Em depoimento ao Congresso americano em 1988, o físico James Hansen, da Nasa, disse que o sinal das mudanças climáticas era detectável e o aquecimento global seria evidente dentro de poucas décadas. No mesmo ano foi criado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC. Simultaneamente, segundo Naomi Oreskes, uma campanha com motivações políticas e o objetivo de lançar dúvida sobre o consenso – ao apontar as incertezas científicas sobre o assunto – tomava forma. Sua origem, de acordo com a historiadora, são os cientistas por trás do George C. Marshall Institute, um think tank sediado em Wahington DC.
O instituto foi criado em 1984 por três cientistas com o intuito de influir no debate sobre assuntos de defesa. Um de seus mentores, entretanto, era também consultor da indústria de tabaco. Com o fim da Guerra Fria em 1989, o instituto encontrou um novo inimigo, segundo Naomi Oreskes: os ambientalistas. Apelidados de melancias – verdes por fora, vermelhos por dentro – os ambientalistas eram vistos como extremistas com uma agenda de esquerda. Sempre defendendo mais regulamentação pelo governo para proteger o meio ambiente, iam contra o fundamentalismo do mercado livre defendido pelo instituto.
Para combater a ameaça ambientalista, o George C. Marshall Institute decidiu aplicar a estratégia da indústria do tabaco. “A dúvida é nosso produto”, diz um memorando da indústria datado de 1969, citado por Oreskes. Isso porque, disse ela, a dúvida é a melhor maneira de competir com o “corpo de evidências” que existe na mente do público.
E como o público confia na ciência mais do que em qualquer outra instituição, a indústria do tabaco arregimentou cientistas dispostos a reforçar as incertezas da ciência. Além disso, pressionou jornalistas a escreverem reportagens dando igual peso a cientistas e à indústria.
Segundo Oreskes, ao contrário do que diziam os mentores do George C. Marshal Institute, as origens do ambientalismo americano estão no republicanismo progressivo e não no socialismo. A Agência de Proteção Ambiental e uma série de leis de proteção ao meio ambiente foram criadas sob presidentes republicanos. “Alguns cientistas são socialistas, mas isso não significa que a ciência que produzem está errada”, afirmou.
Ao mesmo tempo em que graves problemas ambientais como a chuva ácida, o buraco na camada de ozônio e o aquecimento global emergiam nos anos 80, a ideologia do neoliberalismo fortalecia-se. Se hoje o George C. Marshall Institute e outros “céticos” não negam mais a existência do aquecimento global, argumentam que as incertezas da ciência são tão grandes que não merecem ação.
“Os modelos são incertos, mas toda ciência é incerta, e a incerteza é parte da vida”, rebateu Oreskes. Segundo ela, a ironia é que os céticos foram tão bem sucedidos em impedir a ação para mitigar as mudanças climáticas que hoje o problema é pior. “Talvez estejamos alcançando tipping points que acabarão por levar à regulamentação drástica com limitação de liberdades”, disse.