Pelas pessoas e para as pessoas: essa é a inteligência que a vida urbana pede no século XXI. Nos movimentos espontâneos, característicos da sociedade em rede, cresce a certeza de que ninguém conseguirá fazer nada sozinho
“Ninguém acredita nos meus projetos.” A frase ouvida na mesa ao lado chamou a atenção de Jair Roberto Cassiani, secretário da Ciência e Tecnologia de Pedreira (SP), que almoçava com o prefeito da cidade, Hamilton Bernardes Junior, em um restaurante de Campinas. Leonardo de Souza Mendes, professor coordenador do Laboratório de Redes de Comunicação da Unicamp, o autor do desabafo, lamentava não ter encontrado ainda alguma prefeitura que apoiasse sua ideia de implantar uma rede de dados livre para toda uma cidade.
Interessados no assunto, o secretário e o prefeito iniciaram uma conversa e, desse encontro, nasceu a Infovia de Pedreira, a primeira rede comunitária brasileira que permite o acesso aberto da população à internet e a outros serviços. Um projeto que, hoje, conecta 5 mil das 13 mil residências da cidade de 41 mil habitantes e possibilitou a criação do projeto Conexão Saber, uma rede por meio da qual estudantes e professores das diversas escolas do município trocam informações (mais aqui).
Essa singela história é exemplo de um grande movimento de conexão e troca de informações que está em curso no Brasil e no mundo e, aos poucos, muda a maneira como a vida das cidades se organiza e desenvolve.
A ideia de uma rede pública de dados surgiu em 2001 em Morungaba (SP), pelas mãos do jornalista José Aparecido Miguel, mas morreu por falta de vontade política e interesse da população, para ressurgir como grande solução na vizinha Pedreira – classificada no ranking do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação como primeira entre as 19 cidades da Região Metropolitana de Campinas, embora seja apenas a 16ª em arrecadação.
O encontro entre o secretário Cassiani, o prefeito Bernardes e o professor Mendes pode ser encarado como mero acaso, mas talvez seja melhor usar a compreensão do psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, para quem acasos não existem. O que ocorre são sincronicidades – quando algo acontece é porque tem mesmo de acontecer. Afinal, qual a razão para o projeto não seguir adiante em Morungaba e florescer em Pedreira em consequência de uma informal conversa de restaurante?
Porque a comunidade precisa se apropriar da ideia para que ela funcione, responde a economista e administradora Ana Carla Fonseca Reis, autora de diversos livros, entre eles Cidades Criativas – Perspectivas. Ao implantar sua Infovia, Pedreira não só se apropriou da ideia como conseguiu fazer a conexão entre o local e o global, uma das condições apontadas por Ana Carla para que uma cidade seja capaz de gerar criatividade e se reinventar.
Há vários termos que buscam explicar esse processo de renascimento urbano: cidades inteligentes, cidades criativas, cidades inovadoras, cidades sustentáveis, entre outros. O arquiteto Pedro Rivera, do Studio-X, uma rede global de pesquisa que explora o futuro das cidades, prefere uma definição mais simples e direta: cidades que funcionam. Capazes de proporcionar qualidade de vida para quem mora nelas. “O que faz uma cidade inteligente são pessoas inteligentes”, resume.
Mas não é só isso: é necessário também articulação, a ação conjugada do poder público com a iniciativa privada e a sociedade, juntos na busca de soluções. Está claro, acredita Ana Carla Fonseca, que nenhum dos atores é capaz de promover a mudança sozinho.
A chave é trabalhar em rede, como afirma Augusto de Franco, criador da Escola de Redes e um dos organizadores da Conferência Internacional de Cidades Inovadoras – que terá sua segunda edição de 17 a 20 de maio, em Curitiba. Para ele, as cidades precisam ser conectadas, ágeis e com sistemas locais de governança.
A praça de Atenas
O mundo vive, na realidade, uma mudança de era, e não apenas uma era de mudanças, observa Franco, citando a frase cunhada por Eamonn Kelly, sócio da consultoria Monitor Group, em sua obra Powerful Times: Rising to the challenge of our uncertain world. E não é fácil perceber quando se está em meio a essa mudança. O fato é que a humanidade se deu conta, na prática, de que 193 estados-nações não são suficientes para atender às necessidades de quase 7 bilhões de pessoas, 50% das quais vivendo em cidades. São governos centralizados demais para perceber as particularidades de quem, por exemplo, pega ônibus todos os dias.
Como resultado, nas últimas décadas as mudanças sociais estão criando condições favoráveis à autonomia das cidades, do ponto de vista de seu desenvolvimento. Um tendência que remonta à Atenas de 509 a 322 a.C., onde pela primeira vez a cidade deixou de ser o Estado para tornar-se comunidade. Em Atenas, as decisões eram tomadas democraticamente em praça pública, fazendo com que as soluções surgissem das pessoas para as pessoas. Pensar a cidade do século XXI, na visão de Franco, é retonar à essa raiz ateniense.
A diferença para os dias de hoje é que comunidades conectadas via internet trocam informações em tempo real, o que permite a disseminação de ideias e soluções mundo afora. A praça de Atenas seria hoje uma rede global de conversas em praças interconectadas. “E a maneira como você se conecta a outras pessoas é o que determina o comportamento coletivo”, explica Franco.
Imitação
Essa conversa global permite a reprodução de um típico padrão da natureza, a imitação, ensina Franco: “Tudo que é vivo se desenvolve por imitação (cloning)”. E, assim, soluções encontradas em determinada parte do planeta são recriadas com sucesso a milhares de quilômetros de distância. Foi dessa maneira que o arquiteto Jaime Lerner, quando prefeito de Curitiba na década de 70, criou um sistema de transporte rápido por ônibus em corredores exclusivos, o BRT, sigla para Bus Rapid Transport, e esse modelo foi reproduzido com sucesso em mais de 80 países.
Este ano, a versão chinesa do BRT ganhou o prêmio de Transporte Sustentável (2011 Sustainable Transport Award). Implantado em Guangzhou, o projeto original foi aperfeiçoado, incorporando-se outra ideia global: bicicletas de aluguel nos terminais de ônibus, a exemplo do que já fizeram Paris e Londres, para citar apenas duas cidades.
Replicar boas ideias pode ser o caminho mais rápido para que, em 40 anos, o mundo encontre um jeito de acomodar 70% de sua população em cidades, como estimam os dados da Organização das Nações Unidas. Aquilo que é projeção para o mundo no Brasil já é realidade. O Censo de 2010 mostrou que 84% da população brasileira vive em cidades. Para o arquiteto Rivera, o País já tem uma dimensão clara do que será o desafio planetário pós-2050. “Nós já sabemos o tamanho do problema.”
Carioca, Rivera está profundamente envolvido no repensar da cidade do Rio de Janeiro, como um dos criadores do Distrito Cultural da Lapa, dos Centros Integrados de Cultura e diversos projetos habitacionais no centro do Rio. Ele concorda com a opinião de Augusto de Franco e dá exemplos de como a imitação pode ser utilizada para a melhoria da vida nas cidades.
“O teleférico é uma tecnologia conhecida há muitos anos e foi redescoberto como alternativa de transporte em áreas de difícil acesso. Medellín e Bogotá, na Colômbia, implantaram seus sistemas recentemente e, este ano, será a vez de o Rio de Janeiro, onde o bondinho do Pão de Açúcar funciona desde 1912, inaugurar o Teleférico do Alemão – um conjunto de 152 cabines com capacidade para 10 passageiros cada uma, interligando as diversas favelas da região do Morro do Alemão.
“Essa é uma das formas de pensar o transporte público de maneira não convencional e dar um novo uso criativo a uma tecnologia já existente” diz Rivera. Algumas das estações ganharam painéis coloridos que retratam a vida da comunidade, um deles criado pelo artista plástico pernambucano Romero Britto, reconhecido por suas obras com cores fortes e humor.
Na Colômbia, as intervenções se deram de forma ainda mais radical, com a construção de obras públicas de alto valor social e arquitetônico nos locais de mais baixo IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano, transformando completamente o olhar da cidade para aquelas áreas, ao valorizar locais antes desprezados pela comunidade. “Isso cria um espaço de potência capaz de alterar as relações entre as pessoas e a cidade”, acredita Rivera.
Segundo ele, o mesmo vem acontecendo no Rio com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que aos poucos reconquistam espaços antes esquecidos pelo poder público. “O espaço público é o espaço da diversidade. Integrar e entender as potências da informalidade é perceber a inteligência da cidade”, diz.
As ações na Colômbia e no Rio não são muito diferentes das colocadas em prática em São Paulo, durante o governo Marta Suplicy, com a construção dos Centro Educacionais Unificados (CEUs), ou do projeto de revitalização da região central de Santos, o que Jaime Lerner chama de acupuntura urbana, ou seja, uma ação pontual capaz de trazer novo fluxo de energia para determinada região. Ações que tanto podem partir do poder público como de grupos organizados – ou não – da sociedade.
Faça-você-mesmo
A característica desse movimento é que muita gente já atua de forma independente e não espera mais por autorizações ou pela iniciativa de governos para colocar em prática as transformações de que a cidade precisa. Há um renascimento do faça-você-mesmo com pessoas promovendo intervenções na paisagem urbana, algo que vem sendo chamado por alguns de wikiurbanismo.
Em Guadalajara, no México, por exemplo, um grupo de ciclistas decidiu fazer uma ciclovia por conta própria. Cansados de esperar pelo poder público, criaram equipamentos, placas de sinalização e foram à luta. A iniciativa foi documentada por um vídeo que está no YouTube.
Nem sempre essas intervenções podem ser chamadas de inteligentes ou consideradas de bom gosto por todos, como afirma o sociólogo Gordon Douglas, da Universidade de Chicago, mas demonstram um interesse pela retomada dos espaços públicos por parte das pessoas. Nos Estados Unidos, muita gente está instalando mobiliário público, como bancos em pontos de ônibus, vasos de plantas e dando novos usos a velhas cabines telefônicas. [1]
[1] Em seu blog, Gordon Douglas documenta diversas dessas iniciativas. Acesse aqui.
Outras pessoas, além de não esperar por iniciativas de governo, decidem transformar em lei sua própria visão do mundo. É o caso da economista Ana Domingues, criadora da ONG Fundação Ecoverde, de Maringá, Paraná. Indignada com a enorme quantidade de sacolas plásticas usadas em supermercados, Ana criou um projeto de lei para proibir seu uso e o disponibilizou via internet.
A ideia se disseminou e foi parar em Jundiaí (SP), onde um acordo entre a Prefeitura e comércio, com amplo apoio da população, aboliu o uso de sacolas plásticas em supermercados. A iniciativa, agora, pode ser adotada pelo governo do Estado de São Paulo. Mas nem tudo é perfeito. Ana critica o fato de Jundiaí e outras cidades que adotaram a medida permitirem o uso de um tipo de sacola biodegradável feita de amido. “Amido é comida. Estamos usando comida para fazer sacolas, quando a ideia é usar sacolas retornáveis”, lamenta.
Na mesma linha faça-você-mesmo, Marci McGuire conseguiu que 10 mil trabalhadores deixassem seus carros em casa diariamente e seguissem de ônibus para um parque de escritórios em San Ramón, a 68 quilômetros de San Francisco, na Califórnia. Marci, que é a gerente de transportes do parque, centrou sua ação não apenas no aspecto ambiental, mas na mudança de cultura. “Passou a ser legal ter um passe de ônibus”, conta ela.
Mais ágil que a burocracia
O que faz o programa funcionar, explica a jornalista Lisa Margonelli, especialista em transportes, é a ação da própria Marci, que, diariamente, percorre com sua equipe o local buscando trazer mais adeptos ao sistema. Uma das inovações dos ônibus que servem ao parque é um rack para bicicletas.
A ação de Marci McGuire é o fato catalisador, que explica o sucesso, diz Ana Carla, a autora de Cidades Criativas. É a cola que une as iniciativas privada, pública e a sociedade civil em um projeto transformador. Foi assim também que Bagé, no Rio Grande do Sul, ganhou ônibus com racks para bicicletas.
O gerente da empresa StadtBus, Maiquel Frandoloso, trouxe a ideia de uma viagem à Europa e, de volta ao Brasil, rapidamente colocou o serviço em operação. “Gostamos de inovações”, explica. A mesma empresa tem internet e TV em seus ônibus. Frandoloso usou uma das chaves para a transformação das cidades, como observa Jaime Lerner: colocar em prática rapidamente as boas ideias para que elas não se percam na burocracia do Estado. Em Curitiba, a Ópera de Arame, uma sala de espetáculos projetada pelo arquiteto brasileiro Domingos Bongestabs, foi construída em apenas 75 dias.
Boas ideias trafegam na velocidade das redes sociais, reproduzindo o modelo boca a boca das pequenas vilas. Um sem-número de redes privadas, governamentais e não governamentais, são dedicadas à discussão de boas práticas para o novo mundo das cidades. A Rede Global de Cidades Inovadoras é uma delas. Sua proposta é agregar cidadãos que sejam inovadores. “Se a cidade reflete as características de seus habitantes, não há cidade inovadora sem cidadãos inovadores.”
Já o Observatório das Metrópoles é um grupo que reúne 200 pesquisadores de 51 instituições dos campos universitário, governamental e não governamental, que produz e dissemina conhecimento (mais aqui). E no Ministério das Cidades existe o Conselho das Cidades, criado com o objetivo de ser uma verdadeira instância de negociação entre o governo e a sociedade nas áreas habitação, saneamento, mobilidade e planejamento urbano (cidades.gov.br/ conselho-das-cidades). Também com o propósito de agregar iniciativas, há a UN-Habitat, o programa das Nações Unidas para assentamentos humanos.
Essas são algumas das ferramentas que a sociedade dispõe hoje para enfrentar o desafio de um mundo que se organiza cada vez mais em rede. Uma rede global de cidades interconectadas, como enfatiza Augusto de Franco. “Não existe uma solução global. Todas as soluções são glo-cais.”
Um desafio, especialmente, para governos ainda organizados de forma hierárquica, como mostra a Rede Nossa São Paulo, um organismo com cada vez mais representação política capaz de impor a obrigatoriedade de um Plano de Metas para a cidade de São Paulo e que agora trabalha pela aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), levando o mesmo plano para todas as instâncias do governo brasileiro.
Geografia mental
A cidade como espaço público é a representação da diversidade. Nele estão presentes todos os atores da transformação e revalorização das comunidades, cada qual com o mapa mental e emocional de seu território. Quanto mais ampliarmos nossos mapas emocionais, mais estaremos integrando nossas cidades, acredita Pedro Rivera.
A São Paulo do arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, por exemplo, começa em Campinas e vai até Santos, e de Sorocaba a São José dos Campos, uma vasta área onde diariamente 1 milhão de pessoas troca de município para morar, trabalhar e estudar. Um megapolo de megaproblemas mas também de megassoluções. “São Paulo tem uma tensão. Mas isso não é de todo ruim. É uma tensão criada pelas pessoas, pela criatividade”, diz.
Jorge Wilheim, ex-secretário de Planejamento de São Paulo, autor de diversos livros, entre eles São Paulo, uma Interpretação, tem uma visão otimista do futuro das cidades, até mesmo da complicada e congestionada São Paulo. “Todos nós sabemos qual é a solução, o que precisamos é de vontade política para colocar em prática”. E colocar em prática significa governo e sociedade trabalhando juntos.
Foi isso que fizeram o secretário Cassiani e o prefeito Bernardes em Pedreira. Aproveitaram a ideia do jornalista Miguel desenvolvida pelo professor Mendes e a colocaram em prática. Hoje, a iniciativa serve de inspiração para outras cidades brasileiras e, assim, a roda gira. “Já recebemos a visita de mais de 100 cidades que querem conhecer mais o nosso projeto”, conta, satisfeito, Cassiani.