Barcelona está escrevendo mais um capítulo da sua notável trajetória urbanística, voltado para a criatividade e a competitividade global. Os deslizes do percurso demonstram que nem todos os ativos dessa nova economia podem ser fruto de engenharia
Na esquina entre as ruas Pere IV e Roc Boronat, no bairro de Poblenou, há uma sequência de situações arquitetônicas que podem deixar o turista coçando a cabeça. O edifício espelhado e modernoso da empresa Gaes, que desenvolve tecnologia para deficientes auditivos, está geminado a um pequeno prédio residencial centenário. Seguem mais dois predinhos antigos. Depois, tem um casarão invadido por franceses que, segundo se diz pela rua, passam o dia todo bêbados. Fecha a série mais um edifício contemporâneo, da empresa Alstom, fabricante de turbinas eólicas. E tudo isso em frente ao escritório da Citroën.
Essa improvável combinação sintetiza o processo de transformação e ressurgimento que atravessa o antigo epicentro industrial da Espanha. Na ‘Manchester Catalã’, que com suas fábricas esfumaçadas liderou a economia durante o século XIX e por boa parte do século XX, está em andamento o mais ambicioso projeto de revitalização urbana do mundo.
Não se trata apenas de tamanho, embora os 200 hectares do projeto – cerca de 25 quarteirões – sejam respeitáveis, mas da materialização de uma ideia que muitos outros lugares do mundo já perseguiram com grande dificuldade: colocar o urbanismo a serviço da economia do conhecimento.
Na virada do século, o número 22 que identifica administrativamente o distrito fabril de Poblenou ganhou o anel da arroba, para substituir a indústria de ponta do século XIX, já esquecida, pelo seu correspondente no século XXI. O 22@Barcelona, típico exemplo da união de forças entre poder público, iniciativa privada e academia, é um cluster criativo que se propõe a concentrar a nata de empresas e profissionais ligados ao design, à tecnologia da informação e da comunicação, às ciências médicas e às novas fontes de energia.
Dez anos depois, os resultados se expressam em 1 milhão de metros quadrados reconstruídos ou revitalizados – que correspondem a 25% do plano original –, 114 elementos de arquitetura industrial preservados, 47 mil novos postos de trabalho, mobilizados por 3.500 empresas que se instalaram nesta zona, das quais 1.500 são de atividades estritamente de conhecimento. A maioria são pequenos start-ups, com até 10 funcionários.
O que nos interessa na empreitada é que, diferentemente de qualquer outro capítulo econômico da História, esse tempo em que a inovação se transformou numa espécie de El Dorado pode também ser um ímã para práticas de sustentabilidade. Na mesma época em que o 22@ se colocava em marcha, o papa da economia criativa, Richard Florida, preconizava que os profissionais qualificados do futuro escolheriam onde morar, amparados pela tecnologia da informação.
Para atrair esse tipo especial de capital humano, era necessário garantir a tal qualidade de vida. Neste balaio encontra-se quase tudo que interessa: um padrão ambiental impecável traduzido num espaço público cidadão, saudável e limpo, esteticamente aprazível, socialmente diverso, culturalmente estimulante, cuja única forma de realização é aquela em que a vida coletiva se sobrepõe aos interesses privados.
“Há três grandes circunstâncias importantes para que a inovação aconteça”, explica Jordi Pardo, que foi coautor do plano estratégico de mídia para o 22@ e agora comanda a fundação Barcelona Media, com mais de 100 colaboradores de 23 países. “A primeira é um cenário socialmente complexo, lugar onde há gente diversa com ideias diferentes. Outra é o exercício da liberdade, o que nos diferencia, sobretudo, da China. O terceiro elemento são territórios culturalmente ativos, onde acontecem muitas coisas, de cultura formal e informal.”
Estes são também os elementos de um caminho que Barcelona já vem trilhando há mais de 30 anos. O 22@ é a mais nova fronteira de uma trajetória singular de renovação constante que ficou conhecida no mundo inteiro como o Modelo Barcelona. “Não é o Vale do Silício, esse é o modelo velho. É situar os espaços de inovação onde vivem as pessoas. Onde há vida real”, diz Pardo.
Como forma de dar sequência à edição anterior, inteiramente dedicada às cidades inteligentes, Página22 viajou para conhecer in loco esse gigante balão de ensaio que coincidentemente compartilha o nosso número. Encontrou uma capacidade de realização invejável, alguns sérios tropeços e uma grande pergunta: se a cidade é como o hardware que roda o software da criatividade, nas palavras de Charles Landry [1], será mesmo que a alma urbana pode ser programada, tal qual um computador?
[1] Autor do livro The Art of City Making.
A cidade é a rua
Não fosse a invasão da arquitetura contemporânea, o Poblenou de hoje seria muito similar às outras partes da cidade. Por onde quer que se caminhe, em qualquer dia e hora, há sempre uma diversidade de cenas lúdicas se passando na rua. Crianças jogam bola, adolescentes andam de skate, idosos passeiam em grupos, cadeirantes circulam sem precisar do amparo de ninguém. O cuidado com a beleza lembra requintes femininos. Nem o trilho do Tram, espécie de metrô elétrico de superfície, escapou da atenção aos detalhes e foi totalmente recoberto por grama verdinha bem aparada.
“Em Barcelona, a cidade é a rua”, resume o eminente geógrafo Jordi Borja no artigo Barcelona y su urbanismo – Éxitos pasados, desafíos presentes, oportunidades futuras. Seria um erro equiparar a qualidade do espaço barcelonês à regra geral europeia. Primeira cidade do continente a adotar o planejamento estratégico como instrumento de trabalho, o que a capital da Catalunha conseguiu realizar não tem paralelo.
Isso é resultado de uma combinação de circunstâncias interessantes. Seja porque na época da ditadura de Franco toda a atuação política proibida se refugiou nas associações de bairro, seja porque a negação às vias rápidas para automóveis se transformou também numa afirmação antifranquista após a redemocratização, “formou- se uma cultura de participação cidadã muito ligada ao urbanismo”, diz Enric Pol, professor de psicologia social da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).
Trata-se, como explica Borja, de uma estratégia social antes de tudo, voltada para a reativação econômica de todas as regiões, apoiada na multifuncionalidade dos espaços e na qualidade do desenho, cujos monumentos geram atributos culturais e simbólicos. Fecha a equação o marketing urbano, que fez desta a sexta cidade mais conhecida do mundo. Foi tornando a cidade amigável para seus próprios habitantes que Barcelona conseguiu atrair mais turistas que o Brasil inteiro por ano.
É irônico que os especialistas consultados pela reportagem atribuam a característica de cidade compacta a uma fatalidade geográfica. Barcelona está cercada de colinas e limitada pelo mar. Não pude deixar de imaginar que, se fosse no Brasil, as pessoas dariam um jeito de ocupar as colinas e além.
Portas fechadas
O 22@, porém, apresenta uma importante ruptura com as melhores práticas de outrora. O Poblenou foi, até o final dos anos 80, um bairro periférico, desconectado da cidade, que por essa razão constituiu uma forte identidade social, diz Pol. Trata-se de uma região operária, influenciada pelo comunismo e o anarquismo, que mais tarde foi ocupada por artistas libertários atraídos pelas construções industriais abandonadas. Dá para imaginar o choque de culturas quando essas pessoas viram seus vizinhos sendo removidos para dar lugar a multinacionais.
Miguel Lopes Muñoz, dono de um bar fundado em 1886, é uma dessas pessoas. Ele guarda com todo cuidado, envolta em embalagem plástica, uma série de fascículos vendidos em banca sobre a história do Poblenou que forma um catatau de páginas que mal cabe na mão. “Quando eu era criança, meu pai me mandava para a praia comprar peixe. Hoje não existem mais os pescadores. Esse lugar se transformou num bairro de pijos (metidos)”, lamenta. Já seu amigo Ricardo Paulo, um português boa-pinta dono de uma loja de produtos lusitanos, acha que a nostalgia é injustificada: “O bairro está melhor, tem gente jovem, energia nova. Anos atrás dava medo andar por essa rambla [2]”.
[2] Espécie de passeio público presente em todos os bairros, uma das marcas da cidade.
Mas não se trata apenas de nostalgia. O que todas as pessoas ouvidas pela reportagem reconhecem, inclusive Pardo, da fundação Barcelona Media, é que o projeto fechou as portas para a participação tão logo os planos foram aprovados pela prefeitura. É de estranhar, especialmente porque o êxito do Modelo Barcelona se deve, em larga medida, ao amplo consenso criado durante décadas de debate, facilitado pela descentralização dos projetos e pela participação cidadã. Em se tratando de um empreendimento criativo, que pressupõe inteligência coletiva, por que a população original não foi convidada a participar dessa visão?
Para Maria Rosa Bonet, subdiretora do Departamento de Psicologia Social da UAB, Barcelona foi vítima do seu próprio sucesso. Com o tempo, as lideranças pensantes das associações de vizinhos foram incorporadas ao poder público e passaram a se comportar como “déspotas esclarecidos”. Além disso, o boom de espaços públicos qualificados foi tamanho que atingiu um ponto de saturação e essas organizações perderam as causas que lhes conferiam poder.
Já o professor de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Carlos Leite, especialista em cidades criativas que visita Barcelona desde 1997 quase que anualmente, acredita que o 22@ representa uma mudança de paradigma, do espírito republicano para o espírito globalizado: “É quase como sair de um filme europeu para entrar em Hollywood. A fala é ‘queremos a IBM aqui, queremos o Steve Jobs aqui’. Embora o projeto tenha muitos elementos do urbanismo cidadão, o sintoma é o pragmatismo, em que a consulta e a participação perdem prioridade”.
Lluis Checa, o poeta visual que vem fotografando as transformações do bairro e assina as imagens desta reportagem, é um dos artistas de raiz do Poblenou. Seu coletivo, La Fundició, permanece ocupando um antigo galpão industrial cedido pelo avô de um dos integrantes. “Viva a crise!”, diz ele quando adentramos o espaço, “se não fosse por ela, não estaríamos aqui”. Checa reconhece que a renovação tem aspectos positivos. “Há 20 anos, o único espaço verde que tinha aqui era o cemitério. Mas quando o vejo o símbolo 22@ me dá raiva, pela arrogância que tiveram em passar por cima das pessoas.”
Ele se refere à agência 22@, órgão gestor formado por representantes do poder público, do setor privado e das universidades, que para Leite é a grande sacada, porque permite a continuidade blindada de oscilações políticas. O professor, no entanto, alerta que a valorização imobiliária exponencial pode fazer da gentrificação [3] o calcanhar de aquiles do projeto.
[3] Expulsão de moradores. Como medida de mitigação, a prefeitura ofereceu 1.500 moradias de proteção oficial, em que pessoas de baixa renda pagam pelo direito de habitar durante 75 anos, transferível a seus descendentes.
A palavra especulação aparece até hoje nos protestos de moradores, expostos em faixas penduradas nas janelas. É um mal-entendido, próprio de uma comunicação deficitária, já que a condição sine qua non para viabilidade do 22@ é que todos os espaços tenham destinação, pública ou privada.
Tábula rasa
Do centro cultural Niu Spai Artistic, o produtor Sergi Navarro consegue enumerar uma série de novos pólos criativos num raio de poucas quadras. São galerias de arte, companhias de dança, um laboratório de tecnologia musical, um campus de comunicação. “Estão ocorrendo outras conexões artísticas, muito ligadas às novas tecnologias”. Mas, quando pergunto do que ele mais sente falta, Navarro tem dificuldade de explicar: “Acho que é de espaços onde se esconder. Não se pode mais fazer nada um pouco transgressor, não se pode fazer grafite. Sinto falta da liberdade, das festas nas fábricas, de menos controle”.
Sua fala combina com a interpretação de Carlos Leite, para quem o Poblenou de hoje “é muito organizado, porém asséptico”. E também com o entendimento de Ramon Ribera-Fumaz, pesquisador em sociedade do conhecimento e transformações urbanas da Universidade Aberta da Catalunha: “A zona 22@ ainda é muito das ‘nove às cinco’. A maioria das pessoas vem, trabalha e vai embora”.
A conclusão fatal é que não se pode controlar tudo, diz Ribera-Fumaz, a exemplo da crise econômica que provocou altos níveis de desemprego [4] e forçou a migração de contingentes jovens, justamente a população que o 22@ deseja atrair. “Podemos basear a nossa estratégia numa única direção? Não deveríamos estar discutindo alternativas, como cooperativas ou o Terceiro Setor? Para mim, uma estratégia econômica precisa apontar para muitos alvos diferentes.”
[4] Mais de 20% da população ativa em toda a Espanha. Para as pessoas com até 30 anos, essa marca chega a obscenos 45%.
Leite explica que todas as tentativas anteriores de clusters planejados, na França, no Japão e na China, falharam. Há limites para a engenharia da criatividade. Boa parte disso depende de um buzz autêntico, que se forma com o tempo e com espontaneidade. De nada valeria toda a fibra ótica do mundo para criar um polo criativo no deserto, pois as classes criativas vão aonde estiver a vivacidade urbana genuína. Barcelona está no meio do caminho. De fato, inventou e planejou uma nova identidade para um bairro que tinha outra trajetória, mas, ao mesmo tempo, tem seu projeto conectado à trama de uma das cidades mais fascinantes do mundo.
“Esse tempo, essa história, chegarão também para o Poblenou. E, daqui a 20 anos, Barcelona será uma cidade ainda melhor”, aposta o professor. Enquanto os ventos da nova economia continuarem a soprar a necessidade de ter gente caminhando nas ruas, há esperança.[:en]Barcelona está escrevendo mais um capítulo da sua notável trajetória urbanística, voltado para a criatividade e a competitividade global. Os deslizes do percurso demonstram que nem todos os ativos dessa nova economia podem ser fruto de engenharia
Na esquina entre as ruas Pere IV e Roc Boronat, no bairro de Poblenou, há uma sequência de situações arquitetônicas que podem deixar o turista coçando a cabeça. O edifício espelhado e modernoso da empresa Gaes, que desenvolve tecnologia para deficientes auditivos, está geminado a um pequeno prédio residencial centenário. Seguem mais dois predinhos antigos. Depois, tem um casarão invadido por franceses que, segundo se diz pela rua, passam o dia todo bêbados. Fecha a série mais um edifício contemporâneo, da empresa Alstom, fabricante de turbinas eólicas. E tudo isso em frente ao escritório da Citroën.
Essa improvável combinação sintetiza o processo de transformação e ressurgimento que atravessa o antigo epicentro industrial da Espanha. Na ‘Manchester Catalã’, que com suas fábricas esfumaçadas liderou a economia durante o século XIX e por boa parte do século XX, está em andamento o mais ambicioso projeto de revitalização urbana do mundo.
Não se trata apenas de tamanho, embora os 200 hectares do projeto – cerca de 25 quarteirões – sejam respeitáveis, mas da materialização de uma ideia que muitos outros lugares do mundo já perseguiram com grande dificuldade: colocar o urbanismo a serviço da economia do conhecimento.
Na virada do século, o número 22 que identifica administrativamente o distrito fabril de Poblenou ganhou o anel da arroba, para substituir a indústria de ponta do século XIX, já esquecida, pelo seu correspondente no século XXI. O 22@Barcelona, típico exemplo da união de forças entre poder público, iniciativa privada e academia, é um cluster criativo que se propõe a concentrar a nata de empresas e profissionais ligados ao design, à tecnologia da informação e da comunicação, às ciências médicas e às novas fontes de energia.
Dez anos depois, os resultados se expressam em 1 milhão de metros quadrados reconstruídos ou revitalizados – que correspondem a 25% do plano original –, 114 elementos de arquitetura industrial preservados, 47 mil novos postos de trabalho, mobilizados por 3.500 empresas que se instalaram nesta zona, das quais 1.500 são de atividades estritamente de conhecimento. A maioria são pequenos start-ups, com até 10 funcionários.
O que nos interessa na empreitada é que, diferentemente de qualquer outro capítulo econômico da História, esse tempo em que a inovação se transformou numa espécie de El Dorado pode também ser um ímã para práticas de sustentabilidade. Na mesma época em que o 22@ se colocava em marcha, o papa da economia criativa, Richard Florida, preconizava que os profissionais qualificados do futuro escolheriam onde morar, amparados pela tecnologia da informação.
Para atrair esse tipo especial de capital humano, era necessário garantir a tal qualidade de vida. Neste balaio encontra-se quase tudo que interessa: um padrão ambiental impecável traduzido num espaço público cidadão, saudável e limpo, esteticamente aprazível, socialmente diverso, culturalmente estimulante, cuja única forma de realização é aquela em que a vida coletiva se sobrepõe aos interesses privados.
“Há três grandes circunstâncias importantes para que a inovação aconteça”, explica Jordi Pardo, que foi coautor do plano estratégico de mídia para o 22@ e agora comanda a fundação Barcelona Media, com mais de 100 colaboradores de 23 países. “A primeira é um cenário socialmente complexo, lugar onde há gente diversa com ideias diferentes. Outra é o exercício da liberdade, o que nos diferencia, sobretudo, da China. O terceiro elemento são territórios culturalmente ativos, onde acontecem muitas coisas, de cultura formal e informal.”
Estes são também os elementos de um caminho que Barcelona já vem trilhando há mais de 30 anos. O 22@ é a mais nova fronteira de uma trajetória singular de renovação constante que ficou conhecida no mundo inteiro como o Modelo Barcelona. “Não é o Vale do Silício, esse é o modelo velho. É situar os espaços de inovação onde vivem as pessoas. Onde há vida real”, diz Pardo.
Como forma de dar sequência à edição anterior, inteiramente dedicada às cidades inteligentes, Página22 viajou para conhecer in loco esse gigante balão de ensaio que coincidentemente compartilha o nosso número. Encontrou uma capacidade de realização invejável, alguns sérios tropeços e uma grande pergunta: se a cidade é como o hardware que roda o software da criatividade, nas palavras de Charles Landry [1], será mesmo que a alma urbana pode ser programada, tal qual um computador?
[1] Autor do livro The Art of City Making.
A cidade é a rua
Não fosse a invasão da arquitetura contemporânea, o Poblenou de hoje seria muito similar às outras partes da cidade. Por onde quer que se caminhe, em qualquer dia e hora, há sempre uma diversidade de cenas lúdicas se passando na rua. Crianças jogam bola, adolescentes andam de skate, idosos passeiam em grupos, cadeirantes circulam sem precisar do amparo de ninguém. O cuidado com a beleza lembra requintes femininos. Nem o trilho do Tram, espécie de metrô elétrico de superfície, escapou da atenção aos detalhes e foi totalmente recoberto por grama verdinha bem aparada.
“Em Barcelona, a cidade é a rua”, resume o eminente geógrafo Jordi Borja no artigo Barcelona y su urbanismo – Éxitos pasados, desafíos presentes, oportunidades futuras. Seria um erro equiparar a qualidade do espaço barcelonês à regra geral europeia. Primeira cidade do continente a adotar o planejamento estratégico como instrumento de trabalho, o que a capital da Catalunha conseguiu realizar não tem paralelo.
Isso é resultado de uma combinação de circunstâncias interessantes. Seja porque na época da ditadura de Franco toda a atuação política proibida se refugiou nas associações de bairro, seja porque a negação às vias rápidas para automóveis se transformou também numa afirmação antifranquista após a redemocratização, “formou- se uma cultura de participação cidadã muito ligada ao urbanismo”, diz Enric Pol, professor de psicologia social da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).
Trata-se, como explica Borja, de uma estratégia social antes de tudo, voltada para a reativação econômica de todas as regiões, apoiada na multifuncionalidade dos espaços e na qualidade do desenho, cujos monumentos geram atributos culturais e simbólicos. Fecha a equação o marketing urbano, que fez desta a sexta cidade mais conhecida do mundo. Foi tornando a cidade amigável para seus próprios habitantes que Barcelona conseguiu atrair mais turistas que o Brasil inteiro por ano.
É irônico que os especialistas consultados pela reportagem atribuam a característica de cidade compacta a uma fatalidade geográfica. Barcelona está cercada de colinas e limitada pelo mar. Não pude deixar de imaginar que, se fosse no Brasil, as pessoas dariam um jeito de ocupar as colinas e além.
Portas fechadas
O 22@, porém, apresenta uma importante ruptura com as melhores práticas de outrora. O Poblenou foi, até o final dos anos 80, um bairro periférico, desconectado da cidade, que por essa razão constituiu uma forte identidade social, diz Pol. Trata-se de uma região operária, influenciada pelo comunismo e o anarquismo, que mais tarde foi ocupada por artistas libertários atraídos pelas construções industriais abandonadas. Dá para imaginar o choque de culturas quando essas pessoas viram seus vizinhos sendo removidos para dar lugar a multinacionais.
Miguel Lopes Muñoz, dono de um bar fundado em 1886, é uma dessas pessoas. Ele guarda com todo cuidado, envolta em embalagem plástica, uma série de fascículos vendidos em banca sobre a história do Poblenou que forma um catatau de páginas que mal cabe na mão. “Quando eu era criança, meu pai me mandava para a praia comprar peixe. Hoje não existem mais os pescadores. Esse lugar se transformou num bairro de pijos (metidos)”, lamenta. Já seu amigo Ricardo Paulo, um português boa-pinta dono de uma loja de produtos lusitanos, acha que a nostalgia é injustificada: “O bairro está melhor, tem gente jovem, energia nova. Anos atrás dava medo andar por essa rambla [2]”.
[2] Espécie de passeio público presente em todos os bairros, uma das marcas da cidade.
Mas não se trata apenas de nostalgia. O que todas as pessoas ouvidas pela reportagem reconhecem, inclusive Pardo, da fundação Barcelona Media, é que o projeto fechou as portas para a participação tão logo os planos foram aprovados pela prefeitura. É de estranhar, especialmente porque o êxito do Modelo Barcelona se deve, em larga medida, ao amplo consenso criado durante décadas de debate, facilitado pela descentralização dos projetos e pela participação cidadã. Em se tratando de um empreendimento criativo, que pressupõe inteligência coletiva, por que a população original não foi convidada a participar dessa visão?
Para Maria Rosa Bonet, subdiretora do Departamento de Psicologia Social da UAB, Barcelona foi vítima do seu próprio sucesso. Com o tempo, as lideranças pensantes das associações de vizinhos foram incorporadas ao poder público e passaram a se comportar como “déspotas esclarecidos”. Além disso, o boom de espaços públicos qualificados foi tamanho que atingiu um ponto de saturação e essas organizações perderam as causas que lhes conferiam poder.
Já o professor de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Carlos Leite, especialista em cidades criativas que visita Barcelona desde 1997 quase que anualmente, acredita que o 22@ representa uma mudança de paradigma, do espírito republicano para o espírito globalizado: “É quase como sair de um filme europeu para entrar em Hollywood. A fala é ‘queremos a IBM aqui, queremos o Steve Jobs aqui’. Embora o projeto tenha muitos elementos do urbanismo cidadão, o sintoma é o pragmatismo, em que a consulta e a participação perdem prioridade”.
Lluis Checa, o poeta visual que vem fotografando as transformações do bairro e assina as imagens desta reportagem, é um dos artistas de raiz do Poblenou. Seu coletivo, La Fundició, permanece ocupando um antigo galpão industrial cedido pelo avô de um dos integrantes. “Viva a crise!”, diz ele quando adentramos o espaço, “se não fosse por ela, não estaríamos aqui”. Checa reconhece que a renovação tem aspectos positivos. “Há 20 anos, o único espaço verde que tinha aqui era o cemitério. Mas quando o vejo o símbolo 22@ me dá raiva, pela arrogância que tiveram em passar por cima das pessoas.”
Ele se refere à agência 22@, órgão gestor formado por representantes do poder público, do setor privado e das universidades, que para Leite é a grande sacada, porque permite a continuidade blindada de oscilações políticas. O professor, no entanto, alerta que a valorização imobiliária exponencial pode fazer da gentrificação [3] o calcanhar de aquiles do projeto.
[3] Expulsão de moradores. Como medida de mitigação, a prefeitura ofereceu 1.500 moradias de proteção oficial, em que pessoas de baixa renda pagam pelo direito de habitar durante 75 anos, transferível a seus descendentes.
A palavra especulação aparece até hoje nos protestos de moradores, expostos em faixas penduradas nas janelas. É um mal-entendido, próprio de uma comunicação deficitária, já que a condição sine qua non para viabilidade do 22@ é que todos os espaços tenham destinação, pública ou privada.
Tábula rasa
Do centro cultural Niu Spai Artistic, o produtor Sergi Navarro consegue enumerar uma série de novos pólos criativos num raio de poucas quadras. São galerias de arte, companhias de dança, um laboratório de tecnologia musical, um campus de comunicação. “Estão ocorrendo outras conexões artísticas, muito ligadas às novas tecnologias”. Mas, quando pergunto do que ele mais sente falta, Navarro tem dificuldade de explicar: “Acho que é de espaços onde se esconder. Não se pode mais fazer nada um pouco transgressor, não se pode fazer grafite. Sinto falta da liberdade, das festas nas fábricas, de menos controle”.
Sua fala combina com a interpretação de Carlos Leite, para quem o Poblenou de hoje “é muito organizado, porém asséptico”. E também com o entendimento de Ramon Ribera-Fumaz, pesquisador em sociedade do conhecimento e transformações urbanas da Universidade Aberta da Catalunha: “A zona 22@ ainda é muito das ‘nove às cinco’. A maioria das pessoas vem, trabalha e vai embora”.
A conclusão fatal é que não se pode controlar tudo, diz Ribera-Fumaz, a exemplo da crise econômica que provocou altos níveis de desemprego [4] e forçou a migração de contingentes jovens, justamente a população que o 22@ deseja atrair. “Podemos basear a nossa estratégia numa única direção? Não deveríamos estar discutindo alternativas, como cooperativas ou o Terceiro Setor? Para mim, uma estratégia econômica precisa apontar para muitos alvos diferentes.”
[4] Mais de 20% da população ativa em toda a Espanha. Para as pessoas com até 30 anos, essa marca chega a obscenos 45%.
Leite explica que todas as tentativas anteriores de clusters planejados, na França, no Japão e na China, falharam. Há limites para a engenharia da criatividade. Boa parte disso depende de um buzz autêntico, que se forma com o tempo e com espontaneidade. De nada valeria toda a fibra ótica do mundo para criar um polo criativo no deserto, pois as classes criativas vão aonde estiver a vivacidade urbana genuína. Barcelona está no meio do caminho. De fato, inventou e planejou uma nova identidade para um bairro que tinha outra trajetória, mas, ao mesmo tempo, tem seu projeto conectado à trama de uma das cidades mais fascinantes do mundo.
“Esse tempo, essa história, chegarão também para o Poblenou. E, daqui a 20 anos, Barcelona será uma cidade ainda melhor”, aposta o professor. Enquanto os ventos da nova economia continuarem a soprar a necessidade de ter gente caminhando nas ruas, há esperança.