O turista tem muito a aprender para conviver de forma harmoniosa com a natureza. Mas não vamos exagerar. Ou vamos?
Teste: você está em uma trilha no meio do mato e o caminho à sua frente está lamacento e nada convidativo. O que você faz? Desvia do barro para não sujar os pés e pisa naquele matinho limpo e seco ali do lado? Já era. Você caiu na desgraça como turista sustentável. Porque um verdadeiro iluminado do triple bottom line [1] não titubeia. Respira fundo e segue certeiro em direção à lama. É essa uma das regras básicas do programa Leave No Trace – algo como “Não Deixe Marcas”. A ideia surgiu nos anos 80 entre montanhistas e ganhou fôlego. Hoje a marca é uma organização não governamental com milhares de adeptos, sede nos EUA e programas na Austrália e no Canadá.
[1] Resultado que une o tripé da sustentabilidade: o aspecto social, o econômico e o ambiental.
O princípio é simples – se você vai visitar a natureza, não deixe rastros. Não estamos falando aqui de latinhas de cerveja ou saquinhos de fandangos, por favor. Falamos daquela casca de mexerica que você joga com gosto atrás do arbusto se sentindo o próprio adubador da natureza. No Leave No Trace, aquela casca não pertence ao ambiente. E, se não pertence ao ambiente, cabe a você levá-la de volta.
Minha experiência com essa abordagem pra lá de radical foi, como dizer, pra lá de radical. Sob efeito de algum transe, excesso de yakult ou pura juventude, há alguns anos, em vez de ir para um resort no Caribe, resolvi passar os 30 dias das minhas preciosas férias nas Montanhas Rochosas, nos EUA, fazendo caminhadas e aplicando a técnica.
Éramos 12 pessoas, mas só andávamos em grupos de três, para não criar tanto impacto nas caminhadas. Lavávamos nossas panelas com areia e pedregulhos, e longe dos rios, para não contaminar o ambiente. Dormíamos apenas com sacos de dormir sob uma tenda a nos proteger da chuva, e no dia seguinte era preciso retornar ao lugar os galhos e raízes afastados na noite anterior. Carregávamos todo o nosso lixo, biodegradável ou não. Nada, absolutamente nada podia afetar o ambiente ou ser deixado para trás – e, se você acabou de pensar naquilo que não poderia ser carregado, pasme: eu não tive essa honra, mas, em determinados locais com geografia complicada, há gente que carrega, sim, suas fezes de volta.
Se não atingimos o ápice da escatologia no nosso grupo, chegamos perto. O curso “recomendava fortemente” que não se usasse papel higiênico ao longo da viagem – e, a partir daqui, se você for uma pessoa sensível ao tema, melhor parar de ler. Nos primeiros dias no mato, os instrutores rebolavam para ensinar a alunos visivelmente constrangidos às diferentes formas de resolver a “questão”. Um confessava sua predileção por um tipo de folha da região, sedosa ao toque. O outro mostrava uma pinha macia que cumpria – literalmente – o seu papel. Mas o clímax foi quando o mais divertido dos instrutores recomendou bolas de neve. E ele não estava brincando.
Para além da anedota, a abordagem do Leave No Trace me parece nobre. Talvez haja excessos, mas eles chamam atenção para coisas fundamentais que todos deveríamos praticar como turistas: respeitar o lugar em que estamos, não interferir demais, falar de menos. Evitar deixar marcas que não pertencem ao ambiente local – seja uma casca de fruta, seja um comportamento.
Mas no outro extremo está a horda de turistas desembarcando em uma praia deserta no Sul do Bahia, ao som alto de axé, e depois formando filas – na praia! – para voltar à charmosa embarcação com cara de balsa de carga e duvidoso apelido de “chalana”. Também está no outro extremo aquela moça siliconada que, não se aguentando de emoção ao ver recifes de coral sob um barquinho no litoral nordestino, começa a gritar no meio de um silêncio retumbante: “Obrigaduuuuu! Deuuuuuusss!”
E o que dizer dos sofisticados turistas que chegam sorrateiramente em seus iates e transatlânticos na paradisíaca Fernando de Noronha, como me conta uma amiga. Aquela gente tão “diferenciada” invade a praia sem constrangimentos, onde o controle dos turistas é supostamente feito a dedo.
De um lado, tem gente carregando o “incarregável”. Do outro, estão aqueles que deixam para trás não só a casca, mas a mexerica inteira, mais a latinha de cerveja, o saquinho de fandangos, os fandangos e, obviamente, as fezes, no mar, na areia, no mato. O que esses dois extremos nos dizem?
Bem, você não precisa flutuar sobre a trilha para não impactar a paisagem, mas também não há necessidade de marcar sua presença a ferrete. Não sei como ensinar o turista a buscar esse equilíbrio. Mas, quando baixa o mau humor, me dá vontade de recorrer ao radicalismo do Leave No Trace. Talvez uma bola de neve gelando nossa bunda faça milagres.
*Pesquisadora do Gvces e mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela London School of Economics and Political Science.[:en]O turista tem muito a aprender para conviver de forma harmoniosa com a natureza. Mas não vamos exagerar. Ou vamos?
Teste: você está em uma trilha no meio do mato e o caminho à sua frente está lamacento e nada convidativo. O que você faz? Desvia do barro para não sujar os pés e pisa naquele matinho limpo e seco ali do lado? Já era. Você caiu na desgraça como turista sustentável. Porque um verdadeiro iluminado do triple bottom line [1] não titubeia. Respira fundo e segue certeiro em direção à lama. É essa uma das regras básicas do programa Leave No Trace – algo como “Não Deixe Marcas”. A ideia surgiu nos anos 80 entre montanhistas e ganhou fôlego. Hoje a marca é uma organização não governamental com milhares de adeptos, sede nos EUA e programas na Austrália e no Canadá.
[1] Resultado que une o tripé da sustentabilidade: o aspecto social, o econômico e o ambiental.
O princípio é simples – se você vai visitar a natureza, não deixe rastros. Não estamos falando aqui de latinhas de cerveja ou saquinhos de fandangos, por favor. Falamos daquela casca de mexerica que você joga com gosto atrás do arbusto se sentindo o próprio adubador da natureza. No Leave No Trace, aquela casca não pertence ao ambiente. E, se não pertence ao ambiente, cabe a você levá-la de volta.
Minha experiência com essa abordagem pra lá de radical foi, como dizer, pra lá de radical. Sob efeito de algum transe, excesso de yakult ou pura juventude, há alguns anos, em vez de ir para um resort no Caribe, resolvi passar os 30 dias das minhas preciosas férias nas Montanhas Rochosas, nos EUA, fazendo caminhadas e aplicando a técnica.
Éramos 12 pessoas, mas só andávamos em grupos de três, para não criar tanto impacto nas caminhadas. Lavávamos nossas panelas com areia e pedregulhos, e longe dos rios, para não contaminar o ambiente. Dormíamos apenas com sacos de dormir sob uma tenda a nos proteger da chuva, e no dia seguinte era preciso retornar ao lugar os galhos e raízes afastados na noite anterior. Carregávamos todo o nosso lixo, biodegradável ou não. Nada, absolutamente nada podia afetar o ambiente ou ser deixado para trás – e, se você acabou de pensar naquilo que não poderia ser carregado, pasme: eu não tive essa honra, mas, em determinados locais com geografia complicada, há gente que carrega, sim, suas fezes de volta.
Se não atingimos o ápice da escatologia no nosso grupo, chegamos perto. O curso “recomendava fortemente” que não se usasse papel higiênico ao longo da viagem – e, a partir daqui, se você for uma pessoa sensível ao tema, melhor parar de ler. Nos primeiros dias no mato, os instrutores rebolavam para ensinar a alunos visivelmente constrangidos às diferentes formas de resolver a “questão”. Um confessava sua predileção por um tipo de folha da região, sedosa ao toque. O outro mostrava uma pinha macia que cumpria – literalmente – o seu papel. Mas o clímax foi quando o mais divertido dos instrutores recomendou bolas de neve. E ele não estava brincando.
Para além da anedota, a abordagem do Leave No Trace me parece nobre. Talvez haja excessos, mas eles chamam atenção para coisas fundamentais que todos deveríamos praticar como turistas: respeitar o lugar em que estamos, não interferir demais, falar de menos. Evitar deixar marcas que não pertencem ao ambiente local – seja uma casca de fruta, seja um comportamento.
Mas no outro extremo está a horda de turistas desembarcando em uma praia deserta no Sul do Bahia, ao som alto de axé, e depois formando filas – na praia! – para voltar à charmosa embarcação com cara de balsa de carga e duvidoso apelido de “chalana”. Também está no outro extremo aquela moça siliconada que, não se aguentando de emoção ao ver recifes de coral sob um barquinho no litoral nordestino, começa a gritar no meio de um silêncio retumbante: “Obrigaduuuuu! Deuuuuuusss!”
E o que dizer dos sofisticados turistas que chegam sorrateiramente em seus iates e transatlânticos na paradisíaca Fernando de Noronha, como me conta uma amiga. Aquela gente tão “diferenciada” invade a praia sem constrangimentos, onde o controle dos turistas é supostamente feito a dedo.
De um lado, tem gente carregando o “incarregável”. Do outro, estão aqueles que deixam para trás não só a casca, mas a mexerica inteira, mais a latinha de cerveja, o saquinho de fandangos, os fandangos e, obviamente, as fezes, no mar, na areia, no mato. O que esses dois extremos nos dizem?
Bem, você não precisa flutuar sobre a trilha para não impactar a paisagem, mas também não há necessidade de marcar sua presença a ferrete. Não sei como ensinar o turista a buscar esse equilíbrio. Mas, quando baixa o mau humor, me dá vontade de recorrer ao radicalismo do Leave No Trace. Talvez uma bola de neve gelando nossa bunda faça milagres.
*Pesquisadora do Gvces e mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela London School of Economics and Political Science.