Viajar é um passatempo divertido, mas também pode ser uma maneira esplêndida de experimentar outras realidades, com consequências profundas sobre o viajante
No poético Diários de Motocicleta, Walter Salles nos coloca na garupa de La Poderosa, a motocicleta que, enquanto pôde (a moto pifou no Chile), carregou Ernesto Guevara e seu amigo Alberto Granado na viagem que a dupla fez pela América do Sul, em 1952. O testemunho de primeira mão das condições lamentáveis do continente foi um dos pivôs para que o pacato estudante de Medicina acabasse se transformando no mítico guerrilheiro “Che”. Dá para ver que, ao permitir experimentar realidades diferentes, o turismo tem o poder de virar a vida das pessoas do avesso.
A bem da verdade, a noção de experiência anda tão valorizada que algumas empresas até acharam um jeito de vendê-las. Trocando em miúdos, elas vendem cupons que dão direto a viver situações inusitadas – de diárias em pousadinhas paradisíacas a voltinhas numa legítima Ferrari. A Vida é Bela é uma das companhias que disputam uma fatia nesse novo mercado. Segundo a diretora-geral da empresa, Cristina Reis, no momento em que o consumo de objetos ficou mais fácil, o foco passou para os componentes emocionais. “As experiências ficam para sempre na memória”, avalia. Esse é um poder que muita gente do setor de ecoturismo quer acessar.
É o caso de Edgar Werblowsky, fundador da Freeway. Criada em 1983 para organizar caminhadas na Serra do Mar, a empresa é uma das pioneiras do segmento ecoturismo no Brasil. “Quando comecei, eu nem entendia que estava fazendo turismo, na minha cabeça eu só organizava caminhadas na natureza”, relembra, contando que logo reparou o quanto a experiência tocava emocionalmente os clientes. “Percebi que, ao chegarem ao Poço das Moças [1], as pessoas tinham outro olhar e ficavam muito contentes”, lembra.
[1] Atração popular entre os turistas que visitam o município de Paranapiacaba (SP) para percorrer as trilhas da Serra do Mar que ligam o Planalto à Baixada Santista.
Na opinião do empresário, o contato com a natureza desfaz os danos causados por anos de tensão acumulada. “Na natureza, as pessoas têm a experiência do contato com o belo e se desligam da cultura de ansiedade. Elas se despem das couraças que usam na vida cotidiana”, diz, acrescentando que isso permite a elas se reconectar consigo mesmas e com os outros. “Percebi que a natureza era o melhor palco para a redescoberta pessoal, pois está totalmente descarregada dessa energia construída pelo homem. Ela é uma energia pura através da qual temos a oportunidade de nos reconectar com valores perdidos desde a Revolução Industrial”, filosofa Edgar.
Silvio Martins tem uma visão parecida. Ele fundou a Climb, em 1985, para transformar em profissão sua experiência como alpinista. “Sempre quis que quem fosse fazer uma trilha comigo pudesse deixar as frescuras de lado e ter uma experiência que melhorasse a própria vida de alguma forma”, diz. “Essas pessoas andavam o dia inteiro, atravessavam rios e exploravam cavernas. No fim do dia, estavam com tanta fome que nem ligavam se a comida estava fria ou sem sal. Elas não apenas comiam como ainda ficavam de olho na do vizinho”, brinca. Pode até soar um pouco ingênuo, mas Silvio garante que colocar as pessoas nessas situações de desconforto controlado pode alterar a vida delas para valer.
A experiência de fricção com a natureza ajuda as pessoas a readquirirem a perspectiva da própria rusticidade, o que as liberta de uma porção de angústias civilizadas artificiais. O resultado, segundo o fundador da Climb, conta com indisfarçável satisfação, é que “muita gente nos escreve para falar do quanto a experiência que tiveram conosco marcou a vida delas”.
Estudos do meio
Embora tenha convergido para um mesmo ponto, a professora Nicia Wendel de Magalhães chegou ao ecoturismo por um caminho diverso. Professora secundarista por opção e vocação, Nicia sentia que precisava tirar os alunos da sala de aula para ensinar melhor. Em suas próprias palavras, “Biologia pode ser a pior matéria quando o professor só ensina fórmulas, mas também pode ser a melhor se você der aos alunos a chance de ver as coisas ao vivo”.
Foi por isso que, em 1982, ela se juntou a outros professores para fundar a Eco Associação e levar grupos de estudantes para conhecer os ecossistemas do Lagamar [2]. Fazia algo parecido com o que as escolas hoje chamam de “estudos do meio”.
[2] Trecho de Mata Atlântica bem preservado que abrange os municípios de Iguape e Cananeia, no Litoral Sul do estado de São Paulo.
Vendo a empolgação dos alunos durante as viagens, a Eco Associação acabou descobrindo que o turismo poderia ser uma ferramenta de educação ambiental. “Não tenha dúvidas de que muita gente saiu cutucada de ver o Pantanal”, garante.
O melhor testemunho de que o mundo de muita gente saiu mexido é a vontade que grande parte de ex-alunos demonstrou de reviver a experiência. “Há uns sete anos um grupo que tinha ido comigo para o Pantanal em 1982 me procurou e pediu que eu organizasse uma nova viagem para eles levarem seus filhos. E isso não aconteceu uma vez só”, conta, orgulhosa do seu trabalho.
A Eco Associação acertou na mosca. Em março do ano passado, a Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura (Abeta) publicou um Perfil do Turista de Aventura e do Ecoturista no Brasil [3], cuja descoberta mais importante foi, de acordo com a consultora da Abeta, Lucila Egydio, a de que o turista que compra pacotes de ecoturismo está, quase sempre, querendo resgatar experiências da infância.
[3] O estudo está disponível na íntegra aqui.
Por isso, é fundamental estimular as pessoas a visitarem áreas naturais desde pequenas. “No caso do ecoturismo, é verdade aquele ditado ‘é de menino que se torce o pepino’. E é claro que, tendo contato com a natureza, as pessoas vão passar a valorizar mais a preservação”, avalia Lucila.
A professora de Turismo da PUC-SP Maria José Giaretta comenta que combinar a experiência direta com educação ambiental chega a ser um dever do ecoturismo. “O turismo mexe com os nossos sentidos. O turista recebe uma carga de informação que permite repensar seu comportamento e o faz valorizar coisas que não valorizava antes”, pontua.
Essa dimensão, digamos assim, emocional do turismo vem sendo explorada pela Cooperativa de Ecoturismo de Guaraqueçaba – uma iniciativa esboçada pela Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) para aumentar a renda das comunidades da Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba.
A coordenadora de educação ambiental da SPVS, Liz Buck Silva, diz que tudo foi feito para que os visitantes tivessem uma experiência profunda. “Fazemos avaliações e percebemos que as pessoas saem muito emocionadas. Elas começam a fazer paralelos entre a vida que levam e a vida dos moradores daqui, e isso cria uma reflexão muito importante”, comenta.
Recentemente, a SPVS começou a amarrar uma parceria com o Centro de Estudos em Sustentabilidade, da FGV-Eaesp (GVces). Liz explica que as conversas ainda estão no início, mas que uma das ideias é montar um centro de capacitação na região de Guaraqueçaba para receber equipes de empresas com a finalidade de passar por vivências. Seria mais uma forma de gerar receita no local, ao mesmo tempo em que se proporciona ao visitante experiências transformadoras que vão fortalecer o engajamento do setor privado em causas socioambientais.
No fundo, aumentar o engajamento da população em geral na conservação é uma das ambições não oficiais de todos os que se esforçam para que o contato entre turistas e a natureza seja uma experiência inesquecível. “Eu quero gerar uma massa de pessoas conscientes. A meu ver esse é o propósito do ecoturismo”, conclui Edgar, da Freeway.