O momento de revés para algumas das principais causas do socioambientalismo brasileiro, como Código Florestal e Belo Monte, pede a somatória de novos aliados e a articulação de um movimento, acima de tudo, político
A noite já se anunciava, mas a reunião que começara cedo em um dos muitos centros criativos da Vila Madalena, em São Paulo, não dava sinais de terminar. Cercados de cartolinas, palavras-chave, desenhos e setas em um mural, um grupo de jovens esboçava o conteúdo programático do que pode vir a ser a primeira escola de ativismo para a sustentabilidade. “Nós percebemos que muitas ações não dão certo por inadequação dos métodos, seu abuso ou sua ausência”, diz um dos integrantes, Marcel Taminato.
O grupo de seis pessoas não está inteiramente na casa dos 20 anos. Alguns deles já chegaram aos 40. Mas o hábito de denominá-los jovens, sem distinção, deve-se à marca da atuação em rede, digital e horizontalizada, típica da geração Facebook. Nesse caso, falamos de uma turma que se conheceu no Movimento Marina Silva, mobilização em torno da candidatura da ex-senadora à Presidência da República que chegou a reunir, na plataforma on-line, mais de 45 mil pessoas de todo o Brasil.
Ninguém sabe dizer ao certo quem formulou ideias tão inovadoras quanto o slogan “seja + 1” ou as Casas de Marina, em que a residência de militantes se transformava em polos de discussão e difusão, seja de novas ações, seja de material de campanha.
As ideias, dizem os participantes com naturalidade, são fruto da rede e da disposição em compartilhar. Nessa lógica, mesmo o sentido da liderança ganha um novo significado: “A Marina não era líder do nosso movimento, ela era uma ideia”, diz Cassio Martinho, que também é acadêmico e autor do livro Redes – Uma Introdução às Dinâmicas da Conectividade e da Auto-organização, publicado pelo WWF. “Ninguém mandava em ninguém, não tinha coordenador. Mas isso não significa que não tivéssemos coordenação.”
Trata-se de um modelo novo, sem vinculação institucional, nem partidária, nem de ONGs. E essa turma tem propostas. Fala-se em criar a Rede + 1, em perpetuar a articulação política em torno da sustentabilidade tomando como base a casa das pessoas, em mobilizar milhares de novos atores para a conferência Rio+20, programada para o ano que vem, entre outras ambições.
O fato de que o movimento busca continuidade, ainda que embrionária, é significativo no cenário recente de pesadas derrotas sofridas no front ambientalista brasileiro, como a licença concedida à Usina de Belo Monte e a aprovação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados. (saiba mais no quadro Ressaca Florestal) Isso porque, se há alguma coisa clara no balanço dos últimos acontecimentos, é que a bandeira verde precisa de reforços. Pelo menos é esse um dos poucos consensos entre ativistas e analistas ouvidos por esta reportagem, Provocados pela ingrata pergunta: “Como vamos sair dessa enrascada?”
Mesmo o diagnóstico do momento atual não é preciso. Enquanto o ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente João Paulo Capobianco fala em “crise de institucionalidade ambiental”, fruto de uma reação conservadora aos avanços verificados no País até 2009, o cientista político Sergio Abranches diz que tudo não passa de confirmação de um caminho anunciado pelo governo brasileiro desde sempre: agenda climática numa redoma isolada da política nacional e preferência por uma economia comoditizada de exportação, em detrimento de setores mais importantes para o futuro, associados à inovação e ao baixo impacto ambiental.
“A comunidade ambientalista mostrou-se muito pequena para lidar com o balanço de poder que estava se construindo”, avalia Marcelo Furtado, diretor-executivo do Greenpeace no Brasil, em referência ao amplo apoio que o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) conseguiu conquistar no Congresso, com aval ou omissão do setor produtivo. Para Adriana Ramos, secretária-executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA), as manifestações de rua realizadas simultaneamente na Avenida Paulista, em São Paulo (cujas imagens complementam esta reportagem), e na Praia de Copacabana, no Rio, representam “um refresco” importante, já que não foram orquestradas pelas ONGs. “No Brasil, eu pago uma contribuição ao Greenpeace ou ao WWF e penso que não preciso mais fazer nada. O ativismo ficou muito centrado nas ONGs. O importante é que as pessoas percebam que mesmo os movimentos sociais organizados não podem representá-las nessa indignação.”
Pode parecer esquisito exaltar a mobilização, mesmo que ainda não tenha produzido o resultado desejável. Mas, segundo Marijane Lisboa, professora de sociologia da PUC-SP e uma das fundadoras do Greenpeace no Brasil, as novas articulações que se revelam no pano de fundo das derrotas podem significar uma tendência importante para o futuro.
Conforme a briga vai ficando feia, apresenta-se a cavalaria. Ela cita o envolvimento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no debate público sobre o Código Florestal, além da manifestação inédita dos ex-ministros do Meio Ambiente e do relatório de recomendações produzido em conjunto entre a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC).
No caso de Belo Monte, Marijane avalia que a “ponta de lança” não são as grandes ONGs, mas o movimento local Xingu Vivo, que tem conseguido promover uma repercussão internacional [1] retumbante nos ouvidos de OEA, Anistia Internacional e, mais recentemente, da ONU. “São novos atores que estão surgindo, e com eles começa a se compreender um aspecto fundamental, que é o da justiça ambiental, o respeito às populações locais e indígenas. Há poucos anos, não se discutiam hidrelétricas dessa forma. Com o (complexo hidrelétrico do rio) Madeira não foi assim”.
[1] ONG internacional Conectas apresentou críticas aos impactos socioambientais da usina durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Anistia Internacional e OEA já haviam recomendado a suspensão das obras ao governo brasileiro
A professora reconhece que a massa crítica urbana em torno dessas questões, por enquanto, ainda é tímida, mas avalia que se trata de um avanço real. “Isso implica rediscutir o modelo de desenvolvimento e mesmo discutir o que é desenvolvimento. Pela primeira vez, esse debate está colocado num círculo maior.”
Combater política com política
Teria sido possível conduzir a negociação sobre o Código Florestal de outra maneira que não a polarizada disputa entre ambientalistas e ruralistas? Outra forma que não o ganha-perde? Das lideranças verdes, ouvimos que eles tentaram, exaustivamente, nos bastidores, chegar a uma conciliação. Mas foi no debate público que o movimento em prol das florestas se mostrou mais vulnerável.
Na avaliação de Capobianco, Aldo Rebelo conseguiu simplificar um tema técnico para o público, da maneira que lhe convinha. A favor de seu relatório estariam os que desejam desenvolvimento com justiça social. Do lado contrário, os conspiradores vendidos ao capital internacional. Ao colocar o outro lado na defensiva, o deputado teria conseguido ditar os termos do debate. “Eu sou brasileiro, pô. Tenho que mostrar o meu RG? Como você faz pra sair dessa?”, diz o ambientalista.
Sergio Abranches responde: “Se eu fosse militante, teria buscado dividir os ruralistas. Tentaria persuadir o agricultor moderno, os exportadores e os bons produtores a não se deixarem representar pelos maus. O ambientalismo tem que buscar se comunicar melhor e fazer uma política mais efetiva. Uma estratégia de coalizão, com aliados, é fundamental”.
De fato, o chamado setor progressista do agronegócio passou em brancas nuvens durante todo o período. Entidades como a Associação Brasileira de Agribusiness (Abag) e Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) ficaram em cima do muro. O presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar, Marcos Jank, posicionou-se favorável à votação do relatório. E a única voz destoante que veio do campo foi a do senador Blairo Maggi, ironicamente, o ex-governador-da-motosserra.
Cabe lembrar o impacto causado, em 2009, pela manifestação das 22 maiores empresas nacionais e entidades privadas em favor da agenda climática, em carta aberta endereçada ao governo brasileiro. Não são poucas as análises que atribuem a esse gesto um peso decisivo na disposição do País em assumir metas quantificáveis de redução das emissões de carbono, apresentadas no final daquele ano.
Furtado e Capobianco enxergam um vácuo de liderança, tanto no setor empresarial quanto no universo político. Com a contenda do Código Florestal transposta para o Senado, as atenções estão voltadas para pelos menos duas lideranças possíveis: Jorge Viana (PT-AC), relator do mérito do projeto, e Eduardo Braga (PMDB- AM), ambos ex-governadores de estados amazônicos e identificados com a bandeira da sustentabilidade. Os ambientalistas, no entanto, não sabem ao certo o que esperar.
A noção de que a causa ambiental precisa de outros interlocutores além de seus militantes de raiz não é nova. Coincidentemente, Página22 publicou uma reportagem parecida com esta em 2008 (“A bandeira de origem”, edição 23) em que propunha uma espécie de autoavaliação do socioambientalismo. “Não podemos mais ser um grupo, temos de lutar para ser um todo”, dizia Marina Silva. Desta vez, tanto a ex-ministra quanto Guilherme Leal, candidato a vice na chapa do PV, não atenderam o nosso pedido de entrevista.
A candidatura do PV à Presidência em 2010 representou uma espécie de desaguadouro para uma percepção que já rondava o debate sobre desenvolvimento sustentável, tempos atrás. A de que era preciso intervir ou pelo menos influenciar a esfera política formal.
A articulação de jovens não institucionalizados que evoluiu para o Movimento Marina Silva aclamava a candidatura antes mesmo de a então senadora deixar o PT. Ao mesmo tempo, um grupo de ambientalistas históricos em conjunto com intelectuais e empresários esboçava um movimento chamado “Brasil com S”, que concentrou esforços na criação da plataforma do PV e mais tarde se consolidaria no Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), ONG fundada por Marina.
De certa forma, o dilema político se reapresenta agora. Ainda que a maioria da população brasileira se oponha à anistia no campo e a novos desmatamentos, como parece demonstrar a recente pesquisa Datafolha [2], o resultado no Congresso segue outra direção. Mesmo com toda a mobilização e holofotes voltados para Belo Monte, o governo e o Ibama seguem o seu roteiro.
[2] Mais de 80% dos entrevistados preferem priorizar a proteção de florestas e rios, ainda que isso penalize a agricultura. A maioria (77%) também é contra a isenção de multas e da obrigação de repor florestas desmatadas ilegalmente.
“Se o voto no Brasil é cada vez mais urbano, e quanto mais urbano mais simpático à nossa causa, como se explica essa derrota?”, questiona Fabio Feldmann. Primeiro parlamentar a ser eleito com uma agenda inteiramente ambiental, à época da Constituinte, Feldmann diz que seria impossível repetir o mesmo fenômeno hoje. “Acabou candidato de opinião no Brasil. As campanhas custam 5 milhões, 6 milhões (de reais) para deputado federal. Quem não tem aliança com algum setor empresarial ou com agentes político tradicionais dificilmente se elege.” O ambientalista ainda avalia que a costumeira neutralidade das entidades do Terceiro Setor quando chega a época de pleito também contribui para que a agenda ambiental gere menos dividendos eleitorais.
Esta reportagem ouviu uma longa fieira de ansiedades desse tipo. Marijane e Capobianco demonstram grande preocupação com o Ministério do Meio Ambiente, que teria um perfil baixo, técnico e não político, portanto incapaz de fazer frente a outras forças no interior do governo. A professora ressalta que a atual configuração de alianças do Planalto, num contexto de oposição enfraquecida, faz com que a permissividade ambiental prevaleça com mais facilidade. E tudo leva Adriana Ramos a dizer que a reforma política deveria ganhar “prioridade absoluta” na agenda da sociedade civil, ambientalistas incluídos.
Como o movimento pela sustentabilidade vai reagir a esse cenário de inquietações políticas ainda não está claro. O impasse sobre a democratização das estruturas do PV [3] certamente é um complicador, mas o desafio que se impõe extrapola os limites da política tradicional. É o que defende Maria Alice Setubal, atual presidente do IDS: “O modelo segundo o qual os partidos governam é do século XIX. Essa estrutura obviamente não está dando conta de representar essa multitude, em que o jovem e a diversidade são a cara deste novo século”.
[3] Refere-se ao embate entre o grupo de Marina Silva, que queria eleições internas, e o grupo do atual presidente do partido, José Luiz Penna, que recusou a proposta. Uma semana após o fechamento dessa edição, Marina Silva anunciou sua saída do PV juntamente com Ricardo Young, João Paulo Capobianco, Alfredo Sirkis, entre outros.
que recusou a proposta
A entidade ainda não deu seus primeiros passos concretos, mas aponta para ocupar um espaço novo no contexto das organizações sociais. Quer aglutinar ideias sobre política e sustentabilidade de um modo com o qual as barreiras que dividem a atuação em temas – meio ambiente, educação, saúde etc. – sejam Rompidas. “A sustentabilidade é isso. É ‘inter ONGs’, ‘inter pessoas’, ‘inter assuntos’. E como sociedade civil ainda estamos buscando esse passo”, diz Maria Alice, ela mesma uma recém-chegada ao debate ambiental, após anos de militância pela educação básica.
Para a juventude que se articulou em 2010, a combinação de antigas e novas formas de atuação passa longe da estranheza. Há demanda, por exemplo, pelo bom e velho trabalho de base, segundo Cassio Martinho, o especialista em redes: “O PT até hoje é um partido que tem âncora na sociedade porque organizou bases. Talvez hoje não funcione mais o modelo cooptado pelo sistema parlamentar, mas isso foi feito no passado e nós não fazemos. A palavra que me vem à cabeça é organização, mas não aquela de cúpula, com apenas gente da classe média alta bem informada”.
Talvez o alcance das novas tecnologias, que potencializam essa organização espontânea dentro e fora das redes sociais, possa oferecer os mecanismos modernos do trabalho de base, da disseminação de causas. Rangel Arthur Mohedano, um dos integrantes do movimento, lembra que, se toda a mobilização que eles fizeram tivesse sido fruto de trabalho contratado, teria custado uma pequena fortuna. A geração cujos valores se expressam em colaboração e compartilhamento também faz emergir o valor do capital social. “Por que estamos perdendo todas? Porque as ferramentas políticas estão do outro lado: o dinheiro, o lobby… Mas nós temos outras ferramentas, que eles não têm. Nesse sentido, acho que a História está do nosso lado.”
No entanto, Eduardo Rombauer, um dos principais articuladores do Movimento Marina Silva, está preocupado com o que considera uma dispersão das energias que se combinaram em 2010, oriundas das ONGs, do PV, e de centenas de indivíduos dentro e fora do círculo ambientalista. Diz que o balanço da experiência ainda não foi realizado e que os novas iniciativas enfrentam dificuldades para avançar, à espera de uma articulação mais ampla. O movimento até poderia decolar isoladamente, mas não é isso que eles desejam. “Pessoalmente, eu não tenho mais energia para ações fragmentadas. Criamos uma força política nova e precisamos dar continuidade a esse legado juntos.”
O suspense que paira sobre “a nova forma de fazer política” é o mesmo que revela lacunas na produção de conhecimento. Segundo Fabio Feldmann, as propostas da sustentabilidade ainda carecem de mais tangibilidade, aquela dos cálculos, dos argumentos concretos, das soluções maduras e plenamente aplicáveis. Para ele, a derrota na votação do Código Florestal na Câmara dos Deputados demonstrou a força de um desfecho conhecido – a flexibilização e a anistia – versus o ineditismo do que poderia ser uma agropecuária sustentável.
Se há tudo por fazer, diz Abranches, isso também é indicativo de que estamos vivendo um período de transição. Ainda bem, já que transitar é o contrário da estagnação. Talvez o diagnóstico possa ser traduzido no famoso paradoxo de Gramsci [4]: uma velha ordem agoniza enquanto uma nova ordem ainda não foi capaz de nascer. Ainda.
[4] Antonio Gramsci (1891-1937), cientista político italiano e comunista, observou que o começo do século XX anunciava a fragilidade do sistema capitalista, mas que a manutenção das mentalidades, sobretudo nas escolas, impedia o surgimento de uma nova ordem
Ressaca florestal
O dia 25 de maio começou com a notícia da morte do líder extrativista José Claudio Ribeiro e de sua esposa, Maria do Espírito Santo, o primeiro de uma série de assassinatos no Pará, e terminou com a aprovação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados sob o resultado avassalador de 410 votos contra 63.
No mesmo 1º de junho em que o Ibama concedeu a licença de instalação para a Usina de Belo Monte, perdoando o descumprimento ou o cumprimento parcial de exigências estabelecidas na etapa anterior, o Congresso aprovou medida provisória que oferece estímulos fiscais a novas usinas nucleares. E talvez a cereja do bolo tenha sido a notícia de que o Governo Federal deve reduzir sete unidades de conservação na Amazônia para dar espaço a seis novas hidrelétricas no Rio Tapajós.
Sobrou para a Semana do Meio Ambiente, momento em que tradicionalmente se faz um balanço sobre o caminhar desta agenda, um perplexo reconhecimento das pancadas.