Elza Soares compartilha com Página22 suas percepções sobre a vida e o envelhecer, seu humor e alguns de seus planos.
Ao se fazer uma pesquisa sobre Elza Soares no Google, o buscador sugere o nome da cantora associado às palavras “idade” ou “namorado”. O interesse das pessoas está mais associado à vida da artista que à sua obra. Elza garante que é inveja.
E, assim como um gatilho, rápida e aparentemente incerta de consequências, vai respondendo às perguntas de entrevista, interlocutores, fãs e de quem mais se aproximar. Da mesma forma, completa para a repórter de pouca intimidade com tecnologia que buscava “onde mora” o microfone do gravador digital: “Mora num país tropical, meu bem”.
Elza é naturalmente desbocada para a poesia, para a intuição e o prazer. Aparenta mais jovialidade ao vivo e em cores e encara a personagem que for preciso para viver seu lema “My Name Is Now”, que ela adora repetir. Nesta entrevista a Página22, concedida antes de um show em parceria com o grupo Farofa Carioca, no Inverno Cultural de São João del-Rei, Minas Gerais, a cantora compartilha suas percepções sobre a vida e o envelhecer, seu humor e alguns de seus planos.
Tratamos do envelhecimento nesta edição da revista, pois, em sustentabilidade, falamos muito do novo, do jovem, e acabamos esquecendo que todos estamos envelhecendo e que o novo, no mais tardar, será velho. Como você encara o envelhecer? Você recentemente passou por uma cirurgia, ficou afastada do palco. Quais suas reflexões sobre a idade e o tempo?
Eu não paro pra pensar nessa coisa. Se eu parar para pensar, eu envelheço. Se eu ficar parada no tempo pensando como será o amanhã, vou ficar muito ontem. E do ontem não tenho saudade, tenho saudade do amanhã que não conheço. Envelhecer está na cabeça de cada um, você pode ter idade e não envelhecer. A gente sabe que o tempo passa. Feliz daquele que viu o tempo passar, porque tem gente que não vê. Quando você acompanha o tempo, você está aí, não quer saber se está passando. Está vivendo. Quando se tem uma espiritualidade, um espírito jovem, você é eterno jovem e sua matéria também vai permanecer jovem.
Uma coisa a ser desenvolvida no computador natural que nos foi dado – a cabeça – é usar a cabeça. Eu gravo mais de 200 músicas na cabeça. Assim, meu computador não envelhece. Eu vejo envelhecimento na classe mais pobre, mais desprotegida, essa envelhece. Nós, seres humanos, somos egoístas demais e veja o que falta pra essa gente: cultura, educação, saúde, falta tudo. Então, veja de onde eu vim – dessa classe mais pobre – e o que eu busquei. Eu quero o melhor pra mim, viver no bom, vou buscar, vou correr, vou trabalhar para conseguir um envelhecimento – se é que eu vou envelhecer – bem digno. Veja bem: se é que eu vou envelhecer.
Inovação é outra palavra de ordem da sustentabilidade. O consultor Luís Eduardo de Carvalho cunhou o termo “envelhação”, ou seja, coisas que já se faziam há anos, mas que as pessoas dizem ser inovação. Você deve perceber isso no seu trabalho, estou certa?
Tudo. Tudo que eu vejo hoje já vi antes. Não tem novidade pra mim. A única novidade que tem é o computador, essa coisa que saiu aí. Acho que isso já se usava, mas não era tão presente. Tudo eu já vi. O Chacrinha tinha aquela frase: “Nada se cria, tudo se copia”. O que estamos vendo hoje nossos avós e antepassados já viram. A gente chegou e o mundo estava pronto, ninguém criou nada, o mar, a selva, tudo já estava aí, ninguém criou nada.
Para continuar se inspirando e tendo esse vigor, já que não há nada de novo, o que te movimenta, te alimenta?
Eu sempre digo: “My name is now”. Eu sou o agora. O passado já conheço tanto que eu quero ser o agora. E esse agora vai ser passado. Mas vai ter muita gente no “Now”. Então eu sou o agora. Vou cantar, com fé. O corpo mais bonito, mais tratado, mais transado, mais respeitado. É isso que eu quero, felicidade pra todo mundo, paz. Seria tão melhor se, em vez de inventar tanto, querer tanto o novo, por que não querer um mundo de mais paz e prazer? De mais liberdade? Você vê ainda hoje tanta gente que tem preconceitos absurdos, contra gays, negros, ainda existem coisas que vêm de Cleópatra. Olha isso aí, é velho pra cacete (passa na rua um batuque de tambor). Isso é Folia de Reis, já faziam isso, e a vida continua, a história continua.
Você está na estrada da música há tempos e se mantém contemporânea. Alia-se a grupos como o Farofa Carioca, conquista os jovens, faz novas versões de canções consagradas, sem medo. Você procura esse componente do novo/jovem intencionalmente ou é instintivo? Uma vontade de se reinventar sempre? Como se faz essa ponte entre experiência e o que virá?
Você não pode ficar parada no tempo, senão não vê o que está dos seus lados, fica alienada. É preciso ver todas as vertentes, senão você não sabe nada da vida. Eu não penso, não planejo muito, sou uma abençoada, as coisas chegam. Eu sempre tive um público muito variado, juventude, adolescente, crianças. Eu boto uma criança no colo de 2, 3 meses, a criança fica me namorando. Eu consigo hipnotizar uma criança pelo bem. Isso me acontece muito.
Sou casada com um jovem. Um homem mais velho talvez não fosse me aguentar. Sou casada com um homem bem mais jovem que eu, mas talvez mais velho na cabeça, na forma de pensar. Eu vejo que as pessoas que eu tenho ao meu lado são jovens – como o Murilo, meu assistente, que mora comigo e tem 28 anos. Eu vejo a vida como busca. Tem um mês que operei a cervical, estou no palco, mas estou planejando estudar música. Vou fazer um curso, vou me formar música na universidade. Eu sei cantar, mas eu quero me formar.
Também estou fazendo um trabalho com a Letícia Sabatella, duas mulheres, dose dupla, sobre música, conversas, papos interessantes de mulheres, coisas que podemos levar para outras pessoas. Tem gente que não entende que é preciso falar, abrir a boca. Tem gente que fala, mas não abre a boca. A boca precisa ser aberta para que a gente entenda o que está falando. A ideia é falar, mas também contestar um pouco pra poder explicar. Só se explica quando se está contestando. Vai ter música e um texto agradável, aberto, inteligente; vamos falar de sexo, amor, vida, dor, falar de tudo o que é importante, entendeu? Sexo era uma coisa tão escondida até pouco tempo… Seu corpo precisa de arroz e feijão, de outras coisas, de caviar, de sexo. Escargot, angu, feijão, farinha, amor. A vida é isso, precisa disso tudo. Já que precisa, por que não alimentá-la?
Um espetáculo baseado na sua vida, Se Acaso Você Chegasse estreou em agosto na Bahia e o documentário Elza, sobre sua carreira, circulou pelos cinemas brasileiros fazendo bastante sucesso. Duas perguntas: sua vida desperta tanta curiosidade por quê? A outra: viver é interpretar muitos personagens? (quatro atrizes vivem Elza no teatro e suas muitas vidas: menina de favela, mãe e viúva precoce, cantora que cavou à unha seu espaço na MPB)
Eu tenho tanta coisa boa pra dar, talvez assuste. Com essa minha vitalidade, jovialidade que Deus me deu, eu assusto os velhos. Querem roubar isso de mim, mas eu não posso dar, não me peçam. Eu acredito em Deus, sem ele nada faço. Sou espírita praticante.
Eu acho que somos muitos personagens. Há uma curiosidade: meu Deus que mulher é essa? Corpo perfeito, voz perfeita, faz a porra de uma operação e com um mês já está no palco? O que é isso? Isso é dádiva. Cada um de nós vem de um conta-gotas. Dependendo do frasco, sai mais forte, sai uma Elza.
Lógico que penso nos meus papéis ao longo da vida, não sou uma só. Cada uma tem seu papel, sua responsabilidade. Eu vejo que sou capaz de corresponder a tudo isso. E digo uma coisa pras pessoas: não se sufoquem antes de o tempo chegar, mas se prepare que o tempo vai chegar. Olha, eu sou contra bebida, contra o fumo, contra drogas. Agora acabamos de perder Amy Winehouse e outras estão se acabando por aí. Não digo que eu seja santa, você deve saber da existência de tudo, mas nada pode ser mais forte que você. Como você vai ser tão fraco que o vício seja mais forte que você? É impossível você não se amar. Eu amo o presente que é a vida.
Como é seu cotidiano? Como você se cuida, qual sua diversão favorita, o que você gosta de fazer quando não está cantando?
Desculpa a expressão que vou dizer, mas eu me “emputeço”, me aborreço, brigo muito porque não sou nenhuma santinha, senão estaria num altar. Sou pecadora, uma mulher normal, mas que sabe da responsabilidade de um corpo, que sabe o quanto é importante uma só vida que você tem. Temos direito a uma vida. Se não cuidar bem, ela vai embora. Temos que pensar nisso.
Eu moro no Rio de Janeiro, em Copacabana, com meu marido. Eu gosto de ouvir música, ouço música 24 horas, gosto de jazz, sou louca, fanática pelo Chet Baker, ouço muito Nina Simone, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e outras boas cantoras. Eu ouço jazz a ponto de o Bruno (marido) dizer: “Agora chega, vamos ver um bom filme também!”
Gosto de caviar, amo. Champanhe tomo muito pouco, mas gosto. Um bom vinho, um bom champanhe qualquer um gosta, meu bem.
Você se preserva um pouco da vida de celebridade, do universo da fama instantânea. É verdade?
Quando eu recebi o prêmio de Cantora do Milênio pela BBC de Londres – perdão gente, mas eu ganhei –, fiquei muito surpresa, porque não sou muito de televisão, de dar as caras e bocas, me preservo mais, gosto mais desse mundo que vivo. Hoje eu conheço muito boteco, porque o Bruno ama boteco, que é coisa mais de mineiro. Eu não gosto tanto, mas eu vou com ele. Eu não gosto de cerveja, aquele barulhinho da garrafa abrindo, menina, me dá uma agonia, não gosto. Agora, eu faria qualquer propaganda de cerveja se me chamassem. Pagando bem, que mal tem? Até provaria. Seria aquela Devassa, a verdadeira Devassa.
A discussão do erudito e o popular está muito presente na sua carreira. Você canta samba, fala da sua origem popular e expõe isso sem pudor, ao mesmo tempo que faz uma improvisação sofisticada e mistura outros ritmos, fazendo novas versões com o seu timbre bem particular.
Se ficar parada num só lugar, você não cresce. Você tem que ser ousada: pega o samba e mete um jazz, mistura rock, mistura funk e traz um pouco de saudosismo. A música ficará tão enriquecida, com tudo o que já existia e outros elementos, que fica bom de se ouvir.
Quando viajo para o exterior, gosto de levar o samba, que é minha característica. No princípio, as pessoas ficavam horrorizadas: “Olha como ela destrói o samba, o Chico (Buarque) vai lá, constrói, e a Elza destrói”. Pois é minha vida. O Chico constrói e eu destruo tudo o que ele faz. Acho maravilhoso destruir (risos). Desconstruir é uma coisa boa, desconstruir uma coisa do Chico, então, é preciso ter muita coragem, é preciso ter saco, sacão até no pé.
Ele me compreende também, temos diálogo às vezes. Eu o encontro muito na França. Estou atravessando uma rua e encontro com ele. “Oi Chico, por que não no Rio?” E ele diz: “É verdade, olha que surpresa!” Nós nos abraçamos e beijamos e nos despedimos. A gente gravou aquele Let’s Do It, o Façamos, quando fui gravar o Do Cóccix ao Pescoço (disco lançado em 2002). Mandei um recado pra ele: “Você tem uma música para mim?” Ele tinha feito Dura na Queda e mandou pra que eu gravasse. Foi um presente. O Caetano me deu Dor de Cotovelo, aquela música linda, sofrida, derramada.
Eu sou muito ciumenta, mas eu tenho ciúme careta, da sacanagem, não gosto de certas coisas. Eu me preparei para uma vida mais calma, mais digna, mais bonita, pra eu saber degustar. Cada momento eu degusto uma coisa boa, não misturo algumas coisas. Nunca vi feijão misturado com champanhe, então… Feijoada é feijoada, champanhe é champanhe. Não misture para que a cabeça não danifique.
Para fugir das armadilhas da vida, o que vale?
Em qualquer meio, em qualquer lugar, o que vale é a sabedoria. Ontem eu viajei com uma mulher ao meu lado que dizia estar viajando há muito tempo e não sabia do festival de São João del-Rei. Perguntei quanto tempo ela estava fora do Brasil. Ela disse: “Vinte e seis dias”. E eu: “Você viajou 26 dias e já não sabe o que acontece na sua terra?” Então, disse pra ela que eu morei na Itália, na França, em Nova York e nunca me esqueci da minha terra, nunca esqueci que existia um carnaval no Rio de Janeiro.
Então ela me perguntou se eu ia dançar funk no festival. Eu disse que eu até era popozuda, mas que não ia dançar funk. E perguntei: “Você conhece a bandeira do Brasil, sabe as cores ?” Ela disse: “Sei, verde, amarelo, azul e branco”. Eu disse: “Cuidado para você não colocar vermelho. E mais: se você conhece a bandeira do Brasil, como não conhece a Elza Soares, essa cara preta cheia de passado? Eu tô estranhando, como você não me conhece? Até criança me conhece. Eu sou uma senhora independente de Padre Miguel, salve a Mocidade.”
Eu recolhi algumas definições a seu respeito. Paulinho da Viola te compara a Billie Holiday e Dalva de Oliveira. José Miguel Wisnik disse que você é uma roqueira do samba E o violonista João de Aquino disse que, se alguém quiser entendê-la, tem que entender o seu canto. Você se define como? E como define seu canto?
Eu acho que meu canto é indefinível. Quando eu tiver certeza dele, eu não posso cantar mais, deixa para os outros dizerem o que ele é. Eu tive tudo para ser intitulada sambista, pra ter aquele rótulo, mas eu detesto rótulo. Se quiser me rotular me dê uma propaganda com milhões.
Você acompanha política cultural, pirataria, direitos autorais?
São muitas páginas… Se eu for pegar todas as páginas, eu vou deixar de cantar, isso é muito perigoso. Isso me cansa um pouco, eu sou música, prefiro viver do que sei. Meu hobby é a cozinha, e quando estou apaixonada eu cozinho melhor, eu vou pra cozinha e faço uma comida boa, dou uma comida boa, nós temos bocas falantes e comíveis.