O banimento das sacolas plásticas descartáveis dos supermercados paulistas provoca reações divergentes entre os consumidores e escancara a tensão entre a cultura consumista adquirida e as transformações necessárias
POR FÁBIO RODRIGUES
ARTE DORA DIAS
Em 25 de janeiro passado, uma porção de consumidores tomou um susto na hora de passar suas compras pelos caixas dos quase 16 mil supermercados paulistas. As sacolinhas plásticas [1] que – durante décadas – eram distribuídas à vontade tinham desaparecido! Pela primeira vez na vida, um sem-número de pessoas teve de pagar pelas sacolas que usaria ou se virar do jeito que dava. Foi um pandemônio.
[1] Sacolas de polietileno de alta densidade dadas pelos varejistas aos clientes. Embora os fabricantes não gostem de ressaltar esse ponto, elas são fabricadas e distribuídas sob a premissa de serem usadas uma só vez. Mas podem ser reutilizadas e seu aproveitamento para embalar o lixo doméstico tornou-se corriqueiro
O presidente da Associação Paulista de Supermercados (Apas), João Carlos Galassi, conta que a entidade precisou de cinco anos até amadurecer a decisão de lançar a campanha “Vamos Tirar o Planeta do Sufoco” – acordo com governo do estado que quer botar fim na farra das sacolinhas. Segundo ele, reduzir o impacto ambiental tornou-se uma meta estratégica para o segmento. “A questão ambiental é a pauta do século”, pontua em entrevista a Página22. Ele afirma que a sustentabilidade está deixando de ser algo conceitual para entrar no campo das ações práticas. (Leia a entrevista completa)
Muita gente não gostou da novidade. Os consumidores acharam a mudança repentina e se sentiram lesados ao ter de comprar algo que, no fim das contas, nunca foi gratuito de fato. Só que, como cada sacola custa irrisórios 3 centavos, ninguém se importava com essa conta. Como as versões reutilizáveis são bem mais caras, a impressão é de que os supermercados querem ganhar dos dois lados.
Ao escancarar o preço das sacolas para o consumidor, o banimento já tem o mérito de atacar um problema ambiental classico: o das externalidades ocultas. Explicada de forma grosseira, uma externalidade é um custo – ou benefício – que não está incluído no preço dos produtos. No caso das sacolas de plástico convencionais, os críticos dizem que seu custo só é tão baixo porque os fabricantes não precisam arcar com as despesas geradas pelo recolhimento e destinação adequados do produto. Essa parte da conta é silenciosamente transferida para o sistema público de gestão de resíduos sólidos ou, mais claramente, para o contribuinte.
Essa não é a primeira vez que o público reage mal ao ter de sacrificar algo – ainda que mínimo – em benefício do meio ambiente. O ativista e político Fabio Feldmann pagou caro por seu envolvimento com a primeira versão do rodízio de automóveis implantado na região metropolitana de São Paulo em 1995.
Na sua interpretação, a impopularidade da medida pesou nas consecutivas derrotas eleitorais que sofreu desde então. Quase 17 anos depois, ele ainda é cobrado. “Em toda palestra que dou, tem sempre alguém que faz um comentário sobre o rodízio. Geralmente negativo”, diz, resignado.
“AMBIENTALIZAÇÃO DO CONSUMO”
A socióloga e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Fátima Portilho não se surpreende que o consumidor reaja mal ao dar de cara com restrições. “A gente pensa o consumo como um espaço de liberdade. Mudar práticas de consumo muito enraizadas é mais difícil do que as campanhas ambientais imaginam. Essas não são mudanças pequenas”, opina.
Sob esse aspecto, Fátima crê que a restrição às sacolas tem um aspecto simbólico mais importante do que os impactos do banimento em si mesmo. “É como se a gente estivesse construindo uma cultura de restrição para contrabalançar a cultura de consumo. Claro que o consumo sempre teve a restrição econômica – se você não tem dinheiro, não pode consumir. Mas agora também temos uma restrição de ordem ética segundo a qual não é mais legal comprar produtos feitos com mão de obra infantil ou que degradem o meio ambiente”, analisa, definindo esse processo como a “ambientalização do consumo e da vida cotidiana”.
É como pensa a também socióloga e coordenadora-executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Lisa Gunn. Para ela, o banimento é um balão de ensaio muito bom para entender os desafios de uma mudança radical de hábitos de consumo. Ela só lamenta que o processo não tenha sido mais bem trabalhado do ponto de vista da educação ambiental. “Faltou um processo mais efetivo de sensibilização dos consumidores para os problemas do uso perdulário das sacolas”, resume.
Apesar das reclamações, a Apas assegura que a reação foi inesperadamente positiva. Uma pesquisa do Datafolha nos dias seguintes ao banimento indicou que 57% dos paulistanos aprovavam a ação. Mesmo assim, no dia 3 de fevereiro, o Ministério Público de São Paulo e a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) acabaram entrando na jogada e firmaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Apas que obriga os supermercados a darem um passo atrás e garantirem aos compradores uma opção gratuita para carregar suas compras para casa por mais 60 dias. Isso adia o fim das sacolinhas até abril, mas, depois disso, acabou de vez.
Segundo o chefe de gabinete da Fundação Procon de São Paulo, Carlos Coscarelli, o banimento não fere os direitos do consumidor, mas um hábito arraigado não pode ser rompido de forma brusca sem prejuízo. “Em momento algum dissemos que a sacola gratuita é um direito, ela é uma comodidade que foi incorporada à cultura. As questões de usos e costumes precisam ser respeitadas”, comenta.
DEMONIZADAS
Compreensivelmente, os fabricantes de sacolas não ficaram nada satisfeitos de ver seu produto contra as cordas do ringue e partiram para o contra-ataque, com o Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos (Plastivida) e seu presidente, Miguel Bahiense, na linha de frente. Para ele, as sacolas estão sendo demonizadas. “Como é que eles querem me convencer que a melhor forma de salvar o planeta é abolir as sacolas plásticas sem me apresentar um estudo científico?”, questiona.
É um ponto válido. No ano passado, a Agência Ambiental do governo britânico publicou uma Análise de Ciclo de Vida [2] das opções mais populares nos supermercados do Reino Unido no qual a versão convencional de polietileno não teve uma performance ambiental assim tão má. “Na conclusão geral, esse estudo mostra que as sacolas de polietileno convencionais têm impactos mais baixos em 8 de 9 categorias”, diz Bahiense. (mais sobre ACV na reportage “Múltipla escolha”)
[2] A ACV é um método para determinar os impactos ambientais de um produto. Em outras palavras, é um levantamento do consumo de matérias e de energia e dos fluxos de emissões e efluentes gerados na fabricação, uso e descarte com o objetivo de determinar sua performance ambiental
Ocorre que o mesmíssimo estudo também calcula quantos reúsos uma sacola reutilizável precisaria para virar o jogo. As de polietileno de baixa densidade, por exemplo, exigem de 3 a 10 reúsos. Considerando que o propósito de uma sacola reutilizável é – ora bolas – ser reutilizada, não parece assim tão complicado fechar essa conta. (Mais no quadro ao final da página)
VARIÁVEL CIENTÍFICA
Ao ser questionado sobre esse ponto, Bahiense diz que isso exige um grau de disciplina que o consumidor não tem. “Se você usar várias vezes as sacolas reutilizáveis, elas começam a compensar, mas, para igualar-se às convencionais, uma sacola de polipropileno (reutilizável) precisa ser usada 26 vezes. Isso dá 13 meses para um consumidor que vá, em média, duas vezes ao mês ao supermercado, mas, como ele esquece em casa, acaba comprando outras e nunca chega ao número necessário”, opina.
O estudo britânico tem outra particularidade interessante. Nos anexos, os autores responsáveis pela pesquisa fazem um sumário de outros quatro estudos semelhantes. “Em geral, esses estudos de ACV descobriram que sacolas reutilizáveis têm impacto ambiental menor quando comparado ao das sacolas de uso único”, escreveram, em aparente desacordo com suas próprias conclusões.
Isso não significa má-fé ou incompetência dos pesquisadores. A coordenadora do programa Consumo Sustentável do GVces, Luciana Stocco Betiol, ressalta que esse ainda é um campo muito recente. “A metodologia usada nas ACV é complexa e tem limites. Todas as ferramentas usadas hoje foram construídas com um olhar, algumas analisam o consumo de água, outras a emissão de gases de efeito estufa ou o tempo que o produto demora para degradar-se. Ainda não existe uma ferramenta perfeita que consiga medir múltiplos fatores”, explica.
Ainda que não exista uma verdade científica inequívoca, a decisão da Apas não foi tomada no vácuo. Nos últimos tempos as sacolas andam tão malvistas que chegaram a ser proibidas em vários cantos do globo com graus variáveis de sucesso (mais em “Duro de matar“). Ainda não é o caso do Brasil. Mas, em meados de 2009, o Ministério do Meio Ambiente lançou a campanha “Saco é um Saco”, com o objetivo de incentivar a redução no consumo de sacolas. Há quem dê como certo que, cedo ou tarde, a Política Nacional dos Resíduos Sólidos [3] estabelecerá algum tipo de restrição nesse sentido e suspeite que a motivação da Apas esteja temperada com uma boa dose de oportunismo. (mais sobre PNRS na reportagem “Peso Pesado”)
[3] Instituída pela Lei no 12.305, de 2010, estabelece entre seus objetivos: “Não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”
A opinião é de Ana Domingues. Ela é a criadora da Fundação Verde (Funverde), entidade de Maringá que milita para a redução do uso de sacolas plásticas desde 2004. “A lei dos resíduos sólidos transforma o poluidor em poluidor-pagador e estabelece a responsabilidade solidária. Eles sabiam que ia chegar a hora em que teriam que dar um jeito e resolveram antecipar isso para usar como marketing verde. Acho isso ótimo! Não me importo nem um pouco que eles estejam agindo por interesse próprio”, comenta, esbanjando pragmatismo.
MONTANHA DE PLÁSTICO
Sob sua singela banalidade, as sacolas plásticas acabaram virando um monstro. Tudo por causa de seus números. Segundo a Plastivida, no ano passado o Brasil consumiu 12,9 bilhões de sacolas – o que dá 67 para cada brasileiro. Já foi pior. Em 2008, o consumo foi de 17,9 bilhões de unidades. Para dar uma dimensão mais clara do problema, a equipe do Instituto Akatu calculou o que aconteceria se todas essas sacolas fossem colocadas uma sobre as outras: a pilha chegaria a absurdos 750 quilômetros de altura. Tão alto que satélites poderiam literalmente se chocar contra esse pilar – o Hubble, por exemplo, orbita a uma altitude de 590 quilômetros.
É tanta sacola que até quem lucra com elas admite que há exagero no uso. Em 2008, a Plastivida criou o Programa de Qualidade e Consumo Responsável de Sacolas Plásticas, que incentivou a produção de sacolas mais resistentes – para reduzir os casos em que o consumidor coloca uma sacola dentro da outra para carregar itens mais pesados – e treinou multiplicadores nos supermercados para orientar sobre o consumo racional do produto. “Em quatro anos de programa houve uma redução de 5 bilhões de sacolas”, comemora o presidente da entidade, Miguel Bahiense.
Para a Apas isso não é o bastante. Galassi avalia que os resultados dos programas de redução da Plastivida foram tímidos perto dos obtidos em cidades que haviam optado pelo banimento, como Xanxerê (SC) [4]. “Nós tivemos de dizer que esse não era o caminho. Não adianta nada a gente incentivar a cultura do descarte”, afirma. O banimento no estado de São Paulo deve tirar de circulação cerca de 7 bilhões de sacolas por ano.
[4] A cidadezinha de 44 mil habitantes do Oeste catarinense baniu a distribuição de sacolas descartáveis em abril de 2009, tornando-se uma das pioneiras na adoção desse tipo de iniciativa no Brasil. Um ano depois, o consumo caiu de 12 milhões para 80 mil de unidades
LIXO
No fundo, o maior dilema é que fim dar às sacolinhas depois do uso. Não é nada raro vê-las parar onde não devem e causando todo tipo de problema. O chamado Grande Lixão do Pacífico [5] é o exemplo mais proeminente em nível global. Mas existem vários outros. Originalmente, a Funverde, de Ana Domingues, se dedicava à limpeza e recuperação de cursos d’água. Foi de tanto ter de voltar a limpar os mesmos rios que Ana decidiu passar a combater o consumo de sacolas plásticas. “Noventa por cento do lixo que tirávamos dos rios era sacola plástica e garrafa PET, a gente limpava em um dia, aí vinha uma chuva e o lixo voltava todo”, diz.
[5] Acúmulo de detritos sólidos que as correntes do Oceano Pacífico juntaram em uma área próxima à Califórnia e ao Havaí. Estima-se que a mancha tenha o tamanho de Minas Gerais e seja composta de 3,5 milhões de toneladas de lixo. Sua descoberta, em 1997, popularizou a noção de que o consumo de plásticos se tornou excessivo
É uma ideia que não deixa de ir ao encontro do que pensa a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). “Temos um princípio aqui na Abrelpe de que as cidades mais limpas não são as que mais se limpam, mas as que menos se sujam”, explica o diretor-executivo da organização Carlos Silva Filho.
O diretor da Abrelpe ressalta ainda que é bem possível que venhamos a sentir falta das sacolinhas. “Historicamente, as sacolas têm sido utilizadas para acondicionar os resíduos. A partir do momento em que há o banimento, a população fica órfã de uma alternativa”, comenta, acrescentando que algumas das empresas filiadas à associação já vêm encontrando dificuldades. Um estudo encomendado pela Plastivida ao Datafolha aponta que 88% dos brasileiros reúsa as sacolas principalmente para embalar seu lixo doméstico.
“Ainda não tem nenhum estudo que mostre o comportamento do consumidor, mas acho que teremos um uso mais comedido dos sacos de lixo. Quem antes descartava o lixo com ‘dois cotonetes’ dentro agora vai esperar que encha mais antes de se desfazer dele”, diz Luciana Betiol.
Fabio Feldmann vê similaridades entre o momento que estamos passando e o cenário da Tragédia dos Comuns. Descrita pelo ecologista Garrett Hardin num artigo publicado em 1968, a Tragédia dos Comuns explica como um conjunto de indivíduos agindo de forma racional e autointeressada tende a cair em uma armadilha que o leva a esgotar reservas de recursos compartilhados dos quais seu próprio bem-estar depende.
Poucos anos antes, em 1965, no livro A Lógica da Ação Coletiva, o economista e cientista social Mancur Olson escreveu que, “em um grande grupo no qual nenhuma contribuição individual faça uma diferença perceptível para o grupo como um todo, é certo que o benefício coletivo não será provido, a menos que haja coerção ou alguma indução externa que leve os membros do grande grupo a agirem em prol de seus interesses comuns”. Qualquer semelhança com a forma top down do rodízio ou do banimento das sacolinhas não terá sido mera coincidência.
Feldmann acredita que qualquer problema que o banimento possa provocar seria apenas temporário. No fim das contas, a população acaba se adaptando às restrições. Foi o que aconteceu com o rodízio que é, convenhamos, bem mais restritivo. Em 2007, os paulistanos começaram a reclamar do aumento do trânsito quando o rodízio era suspenso no período de férias escolares. “Tem medidas que são antipopulares, mas legitimam-se no processo”, comemora.