Exemplos colhidos na megalópole mostram um movimento, ainda que pulverizado, de resistência à lógica de dominação privada do espaço público
A quem pertence a cidade? Em um lugar que continuamente devota suas ruas ao transporte individual e à especulação imobiliária, alguns grupos mostram que a cidade pode ser reapropriada e ressignificada.
Esta reportagem colheu na maior metrópole brasileira exemplos de resistência que vão desde a ocupação de espaços públicos até a promoção de alterações em projetos de operações urbanas na cidade, ao tombamento de terrenos e à criação de agências de fomento à cultura local. São iniciativas que trazem em si o poder de transformar realidades locais – mas ainda esbarram em questões sobre como gerar recursos para a gestão e se transformar em modelos replicáveis.
Muitas delas usam financiamento coletivo por meio de sites de crowdfunding, ou mesmo editais públicos para viabilizar as atividades, e já trabalham com multiplicadores e redes para que os processos tenham continuidade e ganhem maior escala. (leia mais sobre crowdfunding na reportagem “A produção do desencanto”)
Primeiro de julho, Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão. A estrutura que corta o Centro de São Paulo, desde sempre nas discussões sobre urbanismo e ameaçada pela possibilidade de demolição, amanhece coalhada de bandeirinhas. A Festa Junina do Minhocão transformou o que seria mais um pacato domingo no elevado: milhares de pessoas participaram de brincadeiras típicas do meio-dia às 9 da noite. A festa é um dos eventos do Movimento BaixoCentro [1] , que tem como lema “As ruas são pra dançar” e busca incentivar a ocupação do espaço público.
[1] As atividades do Movimento BaixoCentro são registradas por meio de uma cobertura colaborativa, com vídeos, fotos e textos.
A arquiteta Grasi Drumond, uma das organizadoras da festa, mora a duas quadras do Minhocão, e diz que uma das preocupações era a de que o evento mobilizasse pessoas do lugar.
“Desde o começo fomos de porta em porta, falamos com moradores e síndicos. Teve gente que nos cedeu ponto de luz. Penduraram bandeirinhas nas varandas dos prédios. Um senhor colocou uma faixa na janela do seu apartamento que dizia ‘Voltem sempre’.” Uma página do Catarse, site de crowdfunding, conseguiu levantar R$ 9.540, doados por 270 apoiadores. A mobilização para organizar a festa se deu no Facebook e em uma rede de e-mails, de forma horizontal e participativa.
O Elevado já tinha abrigado piqueniques no Festival Baixo Centro. Lucas Pretti, da Casa de Cultura Digital, rememora como surgiu o movimento: de um trabalho que a Casa estava fazendo sobre produção cultural no País; da vontade de recuperar o Teatro Paiol e de mapear a produção cultural no BaixoCentro. Da leitura sobre a trajetória do grupo Provo, movimento holandês contra-cultural da década de 1960, veio a forma de ocupação. “Estamos na verdade falando do direito à cidade”, define.
“CUIDADORIA”
“A gente criou uma chamada pública pra quem quisesse trazer atividade que pudesse ser feita na rua. Em vez de trabalhar com o conceito de curadoria, a gente trabalha com o de “cuidadoria”. O artista também precisava ajudar na produção. A gente pensa a participação mais como uma mobilização civil”, diz Malu Andrade, da organização do festival.
O festival conseguiu se viabilizar utilizando o Catarse e um leilão de arte. Mas o movimento se mostra refratário a financiamento do poder público ou de empresas que possam colocar limitantes à sua atuação no território, e estuda novas formas de obter recursos para dar continuidade às ações.
Na Zona Oeste da cidade, outro movimento de ocupação se consolida, o Boa Praça. Atuando nas praças Amadeu Decome, François Belanger e Paulo Schiesari, é uma iniciativa de moradores dos bairros Alto de Pinheiros, Lapa, Vila Romana e Vila Anglo para revitalizar praças por meio da ocupação. Desde 2009 organizam-se atividades e piqueniques comunitários no último domingo de cada mês. As pessoas levam comida e bebida para a mesa comunitária e os eventos são abertos ao público.
“Praça é um espaço que precisa de ocupação, senão fica degradado, acaba gerando um círculo vicioso prejudicial que trabalha pelo não uso”, diz Dionizio Bueno, educador e um dos articuladores do Boa Praça.
O movimento entende o espaço como de responsabilidade do poder público, mas assume sua cidadania incentivando a ocupação e o uso. “A gente tem que pensar muito bem no sistema de adoção de praças [por organizações privadas]. Isso provoca na comunidade a sensação de que já existe alguém cuidando daquele espaço, então não é preciso se preocupar. Vai no caminho contrário do que a gente prega, que é o cuidado compartilhado,” define.
A Praça Paulo Schiesari, na Vila Anglo-Brasileira, bairro nobre da região oeste paulistana, passou por uma reforma realizada pela prefeitura e orientada pelos moradores do entorno. Em conformidade com a leitura do livro Projeto da Praça – Convívio e exclusão no espaço público, do arquiteto Sun Alex, que pressupõe que “o convívio social no espaço público está intimamente relacionado às oportunidades de acesso e uso”, os integrantes do movimento perceberam que algumas características arquitetônicas da praça dificultavam a sua utilização.
Os moradores, então, conseguiram articular uma emenda de um vereador para viabilizar a reforma e envolveram a comunidade no redesenho da praça. O projeto básico do que se queria foi encaminhado para a prefeitura, que executou a obra, incluindo novos acessos e conexões no entorno.
O movimento não possui constituição formal e é composto por cerca de dez pessoas, que organizam as atividades e não têm planos de expansão para outras praças. Mas está aberto a levar a experiência a outros grupos. O Boa Praça teve ainda um projeto de formação de agentes socioambientais locais financiado pelo Fundo Especial de Meio Ambiente (Fema), da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Foram certificados 37 agentes, que estão aptos a multiplicar o modelo.
À MARGEM
Indo para o Sul da cidade, outra iniciativa – o Imargem – toma praça no Grajaú, o mais populoso dos 96 distritos da cidade de São Paulo, e dono das menores taxas de desenvolvimento. O projeto é uma intervenção multidisciplinar que pretende enfrentar o isolamento das comunidades que vivem às margens da represa.
Imargem, como eles mesmos definem, é um conceito que une arte e território e teve início às margens da Represa Billings, com um grupo convidado pelo artista Mauro Sérgio Neri da Silva para articular intervenções estéticas – murais, esculturas, desenhos e palavras de ordem que convocam a “ver a cidade”. O movimento, que já teve apoio de vários editais públicos, é baseado em três eixos: arte, meio ambiente e convivência. A linguagem é o grafite, a arte urbana, mas trata-se de discutir o direito à cidade.
O processo acontece por meio dos chamados Agentes Marginais, que se articulam no território “das margens”. São artistas que vivem nos bairros do entorno da Represa Billings, nas bordas da Zona Sul, nas margens e à margem da cidade. Mauro e o irmão, Wellington Neri da Silva, o Tim, estruturaram o movimento e se empenham na formação de novos agentes.
“Queremos um movimento político e artístico, que parta das bordas, do lugar de onde a gente está, e garanta que esse trabalho continue”, diz Mauro.
O projeto de formação dos Agentes Marginais também teve apoio do Fema. O Imargem se desenvolve no território da Área de Proteção Ambiental Bororé- Colônia, no extremo sul de São Paulo – que abriga mananciais e remanescentes de Mata Atlântica, e ao mesmo tempo é a região da cidade mais pressionada pelo crescimento populacional.
“Falamos muito da terra, do lugar, das desapropriações que acontecem ali perto da represa, enfim, de toda essa história. Temos que resgatar a memória. A gente vem registrando a história e acho que ela vai ser contada de uma forma diferente daqui pra frente, por esses jovens que estão com a gente”, avalia Tim.
ECONOMIA COM ARTE
Também na Zona Sul da cidade, uma história é muito bem contada pelos atores da mudança: a constituição do movimento de mobilização do Jardim Maria Sampaio, em Campo Limpo, que vem desde a década de 1960 e começou com um grupo de mulheres. Um bairro composto de pessoas vindas do Norte e do Nordeste que se instalaram em esquema provisório, sempre com a ideia do retorno à terra natal, e esse provisório levou às lutas populares.
As novas gerações que se integraram à União Popular de Mulheres trouxeram outros olhares: “O movimento da economia solidária estava em um momento viciado, de ter sempre senhoras, costureiras, produtores de sabão, aquela coisa da miséria de alguma forma, e a gente entendia que era importante fomentar outros ciclos, como o ciclo da cultura”, diz Rafael Mesquita, há oito anos na União Popular de Mulheres. Inicialmente foi montada uma linha de crédito exclusiva, mas logo eles viram necessidade de entender as deficiências da produção artística local e montar um negócio que suprisse isso.
Surgiu então a Agência Popular Solano Trindade [2], calcada neste tripé: fomento a empreendimentos e ações culturais (fundo popular de cultura e linha de crédito); acesso aos meios de produção (criação de uma moeda “cultural”, o Solano); e comercialização (novos espaços comerciais, com a criação de uma loja [3] para reunir as mercadorias – livros, livretos de cordel, roupas, artesanato, acessórios, CDs de música de grupos locais e arte urbana). Para se associar à agência, grupos ou indivíduos se cadastram no blog e participam da rede de trocas. Informam o que oferecem e os serviços que precisam consumir e recebem 300 solanos para dar início ao processo na rede. Hoje já são mais de 200 agentes de cultura integrados e cerca de 8 mil solanos injetados. (mais sobre moedas comunitárias em “A solução está aqui”)
[2] A agência hoje é um grande ponto de conexão e reunião entre as diversas manifestações culturais locais. A comunidade no Facebook conta com quase 2 mil seguidores
[3] A loja, voltada para a comercialização de produtos, chamada De Marca, situa-se na sede da União Popular de Mulheres, mas acompanha os eventos na região e aceita as três moedas que circulam na comunidade – Real, Sampaio e Solano
Também dentro da comunidade funciona há três anos o Banco Comunitário União Sampaio, que possui uma carteira de crédito de R$ 18 mil. Seus administradores tentam ampliar esse número – entraram com projeto no Catarse pedindo R$ 20 mil. O limite do crédito vai até R$ 1 mil e a maior parte dos empréstimos ainda é para fins de consumo. A moeda própria do banco, o Sampaio, lastreada no Real, insere-se timidamente na comunidade, aceita apenas em alguns estabelecimentos.
BOI NA LINHA
A cultura é também o motor da mudança no Butantã, onde a Associação Cultural do Morro do Querosene conseguiu barrar a construção de um shopping em uma chácara que abriga uma fonte do século XVIII. O terreno, de 35 mil metros quadrados, foi declarado de utilidade pública pela prefeitura graças à mobilização popular.
Conhecida por promover manifestações como bumba meu boi, capoeira, mamulengos, samba de roda, maracatu e grafite, a comunidade do Morro do Querosene conecta-se pelos laços culturais. A reivindicação dos moradores é que a chamada Chácara do Peabiru, ou Chácara da Fonte, seja transformada em um parque e haja espaço para um centro cultural que possa reunir essas manifestações.
A fonte que dá nome ao lugar, Peabiru, foi parada obrigatória de tropeiros e bandeirantes que iam de Itu para Santos e a cidade de São Paulo. Em março, a área foi tombada pelo Conpresp, órgão de patrimônio da prefeitura. A associação obteve também recursos do Fema para o desenvolvimento de um projeto de resgate da história do Peabiru.
Maria Cecilia Pellegrini Góes, uma das diretoras da Associação Cultural do Morro do Querosene, afirma que o Butantã inteiro tem essa cultura de mobilização, não só o Morro do Querosene. “Em outros lugares também, na Água Podre, na Previdência, todos são mobilizados. Talvez por ter sido zona rural até 1930, as pessoas se conhecem. Ouso achar que também é o encontro dos vários caminhos, e que o Peabiru tem a ver com isso. Aqui tudo acontece na rua, nas festas”, diz ela, que integra o Conselho Regional de Meio Ambiente do Butantã e o Conselho do Fema. A mobilização cultural que une os moradores é também responsável por arrecadar fundos e assinaturas para abaixo-assinados.
Em maio deste ano, a comunidade do Butantã conseguiu mudar o traçado de um túnel previsto na Operação Urbana Vila Sônia, ligando as avenidas Corifeu de Azevedo Marques, Eliseu de Almeida e Jorge João Saad. Os moradores eram contrários a um túnel que passaria embaixo do Parque Previdência e terminaria na Praça Elis Regina. A prefeitura alterou o projeto.
Todos esses movimentos são unidos por uma premissa – a reapropriação do território como motor da mudança. A mobilização se faz com a atuação em redes, físicas e virtuais. Os resultados ecoam pela cidade, demonstrando que é possível vivê-la de outras formas, que ultrapassam a cultura da individualidade e da especulação imobiliária.