Enquanto outras maneiras de fazer política ganham corpo, o velho edifício em que o sistema tradicional opera exige reformas urgentes. No entanto, Congresso Nacional e movimentos sociais divergem sobre o que isso significa na prática
Desde a redemocratização, em 1985, os brasileiros foram às urnas 15 vezes para escolher seus representantes em eleições livres e diretas. Nessas três décadas, já aconteceu de tudo com seus escolhidos: anulação de eleições, cassação de mandatos, “mensalões”, cuecas recheadas de dinheiro do contribuinte, impeachment de presidente. Nascida sob o desejo de fortalecimento da democracia e da liberdade de pensamento, a Nova República veio com um sistema político recheado de distorções.
Parte delas é resquício da própria ditadura, ou mais precisamente do desejo de limpar o País de tudo o que foi feito durante os anos de chumbo. A liberdade de organização partidária, por exemplo, resultou na multiplicação de legendas de aluguel. Atualmente há 30 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), três deles criados nos últimos doze meses. O vaivém de filiados entre essas 30 legendas aponta para a quase ausência de diferenças entre os programas políticos de muitos deles e deixa o eleitor, no mínimo, confuso.
O enrosco no sistema político-eleitoral, proporcional ao número de legendas, expõe cada vez mais as fragilidades dessa imensa casa chamada genericamente de política, sempre a demandar reparos. A necessidade de uma reforma política parece ser consenso, mas Congresso Nacional e movimentos sociais têm opiniões diferentes sobre o que essa expressão significa na prática. No Congresso, a discussão se concentra em reformas nas legislações eleitoral e partidária, abrangendo aspectos como eleições proporcionais, financiamento público de campanha, fidelidade partidária e cláusula de barreira. Para os movimentos sociais, a reforma extrapola a democracia representativa e alcança até o Poder Judiciário.
Nenhum destes temas é novo. Em 2003, já circulavam pela Câmara dos Deputados projetos de lei para cada um deles. No ano passado, Câmara e Senado criaram comissões para discutir os mesmos temas, cada uma no seu quadrado. O trabalho dobrado não deu em nada. “Deveria ter sido uma comissão mista, mas Sarney correu na frente e montou uma comissão de notáveis sem respaldo das bancadas”, aponta o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília.
Essa comissão tomou decisões arrojadas, como o fim da reeleição e o voto em lista fechada (leia mais em “Obras necessárias”), mas ambas foram rejeitadas pela Comissão de Constituição e Justiça da mesma casa. Pedro Taques (PDT/MT), um dos senadores da comissão, reconhece o desperdício de energia. “Estamos reinventando a roda, o ideal seria temas isso é da natureza do nosso bicameralismo, Câmara e Senado têm muitas equivalências entre si.”
JOGO DE EMPURRA
No vácuo deixado pelo Poder Legislativo, o Judiciário tem assumido a tarefa de regular o jogo político-partidário. No final de 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou a cláusula de barreira . O dispositivo limitava o funcionamento parlamentar dos partidos que não atingissem 5% dos votos totais para deputados federal. Eles repartiriam entre si 1% do Fundo Partidário e não poderiam ter líderes de bancada nem participação em comissões. Nada menos que 22 partidos seriam barrados, nem todos legendas de aluguel – alguns com longa história, como o PCB, fundado em 1922. O STF entendeu que a cláusula era inconstitucional, submetendo os partidos a tratamento desigual.
Em 2007, foi a vez de o TSE decidir que as vagas na Câmara dos Deputados, Câmaras Municipais e Assembleias Estaduais pertencem aos partidos, uma vez que são definidas proporcionalmente à votação recebida por eles e suas coligações. A decisão provocou alvoroço, mas foi confirmada pelo STF. Por essas e várias outras, muitos partidos reclamaram que o Judiciário está usurpando a competência do Legislativo. Mas, para David Fleischer, a choradeira é sem propósito. “Se temos um Legislativo que não quer se impor e precisa-se de uma norma, o Judiciário pode impor. Se o Legislativo não gostar, que reaja.”
Na opinião do estudioso, o sistema eleitoral e partidário precisa de ajustes que a princípio parecem simples, mas esbarram na cultura política personalista. O voto em lista fechada para deputados e vereadores, uma das demandas dos movimentos sociais, é um exemplo. Mesmo defendido por partidos grandes como o PT, o projeto não consegue aprovação. Igrejas convencem seus fiéis a votarem no pastor, sindicatos e grupos sociais votam em nomes que representem suas causas, policiais e militares tendem a votar em seus pares, o interior do País está cheio de redutos eleitorais de famílias tradicionais. Em nenhum desses casos vota-se no programa partidário. Esses deputados têm interesse em manter o voto nominal, diz Fleischer. Por isso a discussão não avança.
Já Humberto Dantas, também cientista político e professor no Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo (Insper), não acredita que o personalismo seja o vilão. “A alma do sistema proporcional brasileiro é muito razoável.
É interessante poder votar em um candidato que represente um tema, uma causa”, reflete. Para ele, a distorção está nas coligações, que muitas vezes se desfazem no dia seguinte à eleição. “Não há nada errado em votar no tiririca e ajudar a eleger o Valdemar Costa Neto. Em termos de grupo, ambos são do mesmo partido (PR/SP). O eleitor que se cuide e comece a perceber quem está dentro da legenda. A aberração é votar no Tiririca e levar junto o Protógenes Queiroz (PCdoB/SP).”
O fim das coligações nas eleições proporcionais é, por sinal, um dos poucos pontos em que deputados e senadores parecem concordar. É, também, uma das de- mandas dos movimentos sociais e ambas as comissões – da Câmara e do Senado – propuseram seu fim. A medida reverberaria na quantidade de legendas existentes, já que partidos nanicos seriam forçados a se fundir com outros maiores para ter mais que alguns segundos de propaganda eleitoral gratuita.
REFORMAR O QUÊ?
Que a casa precisa de reparos e modernizações, todos concordam. Mas a extensão dessa reforma é outra conversa. Para as organizações reunidas na Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, as mudanças não podem deixar de fora nem mesmo o Judiciário – e uma de suas demandas é que os juízes do TSE não sejam os mesmos de instâncias superiores, evitando que recursos contra suas decisões voltem a cair nas próprias mãos.
As propostas encaminhadas ao Congresso vão bem além dos pontos discutidos nas duas comissões do Congresso Nacional. Abrangem questões ainda mais delicadas para os partidos, como fim da imunidade par- lamentar e do voto secreto no Legislativo, proibição de disputar novas eleições sem terminar os mandatos para o qual foram eleitos, impossibilidade de parlamentares assumirem cargos no Executivo no período do seu mandato, entre muitas outras.
O deputado Henrique Fontana (PT/RS), relator da comissão da reforma na Câmara, diz que as sugestões dos movimentos são relevantes, mas não há como discuti-las em bloco. “A necessidade de compor uma maioria que permita avançar em relação ao sistema atual faz com que sejamos mais econômicos na quantidade de mudanças que queremos fazer. Se quisermos reformar todo o sistema de uma só vez, a tendência é que o somatório das resistências impeça a votação da reforma.”
Se é fácil explicar por que a dita reforma não sai, talvez seja hora de fazer outra pergunta: adianta sair? “A lei pode ser mudada pelo homem, mas não vai mudar o caráter do homem”, reflete o senador Pedro Taques. Para ele, aprovar o financiamento público exclusivo é importante, mas por si só não evitaria o caixa 2, por exemplo. Humberto Dantas vai na mesma linha. “A motivação da reforma é arrefecer o sentimento de que a política está associada à corrupção, como se a corrupção estivesse associada ao sistema. Se o Judiciário punisse com rigor os casos associados à corrupção, não precisaria de reforma”, diz o cientista político.
Leia mais: Todo poder emana do povo: Formas diretas e participativas de democracia têm sido responsáveis por grandes avanços, mas também precisam de aprimoramento[:en]Enquanto outras maneiras de fazer política ganham corpo, o velho edifício em que o sistema tradicional opera exige reformas urgentes. No entanto, Congresso Nacional e movimentos sociais divergem sobre o que isso significa na prática
Desde a redemocratização, em 1985, os brasileiros foram às urnas 15 vezes para escolher seus representantes em eleições livres e diretas. Nessas três décadas, já aconteceu de tudo com seus escolhidos: anulação de eleições, cassação de mandatos, “mensalões”, cuecas recheadas de dinheiro do contribuinte, impeachment de presidente. Nascida sob o desejo de fortalecimento da democracia e da liberdade de pensamento, a Nova República veio com um sistema político recheado de distorções.
Parte delas é resquício da própria ditadura, ou mais precisamente do desejo de limpar o País de tudo o que foi feito durante os anos de chumbo. A liberdade de organização partidária, por exemplo, resultou na multiplicação de legendas de aluguel. Atualmente há 30 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), três deles criados nos últimos doze meses. O vaivém de filiados entre essas 30 legendas aponta para a quase ausência de diferenças entre os programas políticos de muitos deles e deixa o eleitor, no mínimo, confuso.
O enrosco no sistema político-eleitoral, proporcional ao número de legendas, expõe cada vez mais as fragilidades dessa imensa casa chamada genericamente de política, sempre a demandar reparos. A necessidade de uma reforma política parece ser consenso, mas Congresso Nacional e movimentos sociais têm opiniões diferentes sobre o que essa expressão significa na prática. No Congresso, a discussão se concentra em reformas nas legislações eleitoral e partidária, abrangendo aspectos como eleições proporcionais, financiamento público de campanha, fidelidade partidária e cláusula de barreira. Para os movimentos sociais, a reforma extrapola a democracia representativa e alcança até o Poder Judiciário.
Nenhum destes temas é novo. Em 2003, já circulavam pela Câmara dos Deputados projetos de lei para cada um deles. No ano passado, Câmara e Senado criaram comissões para discutir os mesmos temas, cada uma no seu quadrado. O trabalho dobrado não deu em nada. “Deveria ter sido uma comissão mista, mas Sarney correu na frente e montou uma comissão de notáveis sem respaldo das bancadas”, aponta o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília.
Essa comissão tomou decisões arrojadas, como o fim da reeleição e o voto em lista fechada (leia mais em “Obras necessárias”), mas ambas foram rejeitadas pela Comissão de Constituição e Justiça da mesma casa. Pedro Taques (PDT/MT), um dos senadores da comissão, reconhece o desperdício de energia. “Estamos reinventando a roda, o ideal seria temas isso é da natureza do nosso bicameralismo, Câmara e Senado têm muitas equivalências entre si.”
JOGO DE EMPURRA
No vácuo deixado pelo Poder Legislativo, o Judiciário tem assumido a tarefa de regular o jogo político-partidário. No final de 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou a cláusula de barreira . O dispositivo limitava o funcionamento parlamentar dos partidos que não atingissem 5% dos votos totais para deputados federal. Eles repartiriam entre si 1% do Fundo Partidário e não poderiam ter líderes de bancada nem participação em comissões. Nada menos que 22 partidos seriam barrados, nem todos legendas de aluguel – alguns com longa história, como o PCB, fundado em 1922. O STF entendeu que a cláusula era inconstitucional, submetendo os partidos a tratamento desigual.
Em 2007, foi a vez de o TSE decidir que as vagas na Câmara dos Deputados, Câmaras Municipais e Assembleias Estaduais pertencem aos partidos, uma vez que são definidas proporcionalmente à votação recebida por eles e suas coligações. A decisão provocou alvoroço, mas foi confirmada pelo STF. Por essas e várias outras, muitos partidos reclamaram que o Judiciário está usurpando a competência do Legislativo. Mas, para David Fleischer, a choradeira é sem propósito. “Se temos um Legislativo que não quer se impor e precisa-se de uma norma, o Judiciário pode impor. Se o Legislativo não gostar, que reaja.”
Na opinião do estudioso, o sistema eleitoral e partidário precisa de ajustes que a princípio parecem simples, mas esbarram na cultura política personalista. O voto em lista fechada para deputados e vereadores, uma das demandas dos movimentos sociais, é um exemplo. Mesmo defendido por partidos grandes como o PT, o projeto não consegue aprovação. Igrejas convencem seus fiéis a votarem no pastor, sindicatos e grupos sociais votam em nomes que representem suas causas, policiais e militares tendem a votar em seus pares, o interior do País está cheio de redutos eleitorais de famílias tradicionais. Em nenhum desses casos vota-se no programa partidário. Esses deputados têm interesse em manter o voto nominal, diz Fleischer. Por isso a discussão não avança.
Já Humberto Dantas, também cientista político e professor no Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo (Insper), não acredita que o personalismo seja o vilão. “A alma do sistema proporcional brasileiro é muito razoável.
É interessante poder votar em um candidato que represente um tema, uma causa”, reflete. Para ele, a distorção está nas coligações, que muitas vezes se desfazem no dia seguinte à eleição. “Não há nada errado em votar no tiririca e ajudar a eleger o Valdemar Costa Neto. Em termos de grupo, ambos são do mesmo partido (PR/SP). O eleitor que se cuide e comece a perceber quem está dentro da legenda. A aberração é votar no Tiririca e levar junto o Protógenes Queiroz (PCdoB/SP).”
O fim das coligações nas eleições proporcionais é, por sinal, um dos poucos pontos em que deputados e senadores parecem concordar. É, também, uma das de- mandas dos movimentos sociais e ambas as comissões – da Câmara e do Senado – propuseram seu fim. A medida reverberaria na quantidade de legendas existentes, já que partidos nanicos seriam forçados a se fundir com outros maiores para ter mais que alguns segundos de propaganda eleitoral gratuita.
REFORMAR O QUÊ?
Que a casa precisa de reparos e modernizações, todos concordam. Mas a extensão dessa reforma é outra conversa. Para as organizações reunidas na Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, as mudanças não podem deixar de fora nem mesmo o Judiciário – e uma de suas demandas é que os juízes do TSE não sejam os mesmos de instâncias superiores, evitando que recursos contra suas decisões voltem a cair nas próprias mãos.
As propostas encaminhadas ao Congresso vão bem além dos pontos discutidos nas duas comissões do Congresso Nacional. Abrangem questões ainda mais delicadas para os partidos, como fim da imunidade par- lamentar e do voto secreto no Legislativo, proibição de disputar novas eleições sem terminar os mandatos para o qual foram eleitos, impossibilidade de parlamentares assumirem cargos no Executivo no período do seu mandato, entre muitas outras.
O deputado Henrique Fontana (PT/RS), relator da comissão da reforma na Câmara, diz que as sugestões dos movimentos são relevantes, mas não há como discuti-las em bloco. “A necessidade de compor uma maioria que permita avançar em relação ao sistema atual faz com que sejamos mais econômicos na quantidade de mudanças que queremos fazer. Se quisermos reformar todo o sistema de uma só vez, a tendência é que o somatório das resistências impeça a votação da reforma.”
Se é fácil explicar por que a dita reforma não sai, talvez seja hora de fazer outra pergunta: adianta sair? “A lei pode ser mudada pelo homem, mas não vai mudar o caráter do homem”, reflete o senador Pedro Taques. Para ele, aprovar o financiamento público exclusivo é importante, mas por si só não evitaria o caixa 2, por exemplo. Humberto Dantas vai na mesma linha. “A motivação da reforma é arrefecer o sentimento de que a política está associada à corrupção, como se a corrupção estivesse associada ao sistema. Se o Judiciário punisse com rigor os casos associados à corrupção, não precisaria de reforma”, diz o cientista político.
Leia mais: Todo poder emana do povo: Formas diretas e participativas de democracia têm sido responsáveis por grandes avanços, mas também precisam de aprimoramento