Como explicar a violência policial nas manifestações pelo Brasil? Pode ter entrado em ação a “banalidade do mal”, ideia de que o mal também é exercido por pessoas comuns acatando ordens superiores
Durante o mês de junho, manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público ocorreram em várias cidades do País. Em São Paulo, a reação da polícia aos manifestantes pareceu particularmente desproporcional, vitimando também jornalistas e pessoas que nem sequer participavam do ato. Como explicar aquela violência cometida pelos policiais?
Além das explicações clássicas (despreparo, cultura militar etc.), embora verdadeiras, pode ter entrado em ação o que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”: a ideia de que o mal não é exercido apenas por fanáticos ou sociopatas, mas também por pessoas comuns que, acatando ordens superiores, cometem atos abjetos que, em dado contexto, consideraram “normais”.
Em 1961, três meses depois do início do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann em Israel (onde Hannah estava como correspondente de uma revista americana), Stanley Milgram, professor de psicologia da Universidade Yale, ficou incomodado com uma pergunta: “Poderia o holocausto ter acontecido aqui?” Com o pretexto de conduzir um experimento para aumentar a capacidade de memória das pessoas, Milgram de fato media a disposição de participantes em obedecer a uma figura de autoridade.
Mais de mil voluntários, de variado perfil etário e socioeconômico, receberam a instrução de aplicar um leve choque de 15 volts em desconhecidos (atores) caso errassem um problema. A intensidade do choque ia aumentando, assim como o grito de sofrimento dos atores, pelos quais o “cientista” da sala, de jaleco, assumia diante dos voluntários a responsabilidade por qualquer consequência. Milgram replicou o experimento sob várias condições e, em uma delas, 90% dos voluntários aceitaram aplicar a carga máxima (fictícia) de 450 volts no agonizante ator.
Em 1967, em uma escola de Palo Alto, Califórnia, um professor de História Contemporânea tentava explicar a seus alunos como a população alemã teria aceito a ascensão do nazismo e as atrocidades cometidas por ele. Para isso, criou um movimento chamado “A terceira onda”, cuja simbologia lembrava o próprio nazismo, que em pouco tempo saiu de seu controle e ganhou vida própria. A experiência foi dramatizada pelo filme alemão A Onda (2008).
Quatro anos mais tarde, na mesma Palo Alto, agora na Universidade de Stanford, o professor de psicologia Philip Zimbardo conduziu o que ficou conhecido como o “experimento da prisão de Stanford”, no qual dividiu voluntários (alunos de Stanford com perfil de boa conduta) entre prisioneiros e guardas de uma prisão fictícia. O que era para ser um experimento de duas semanas precisou ser cancelado no sexto dia, após inúmeros abusos cometidos por aqueles no papel de guarda (ver seu TEDtalk aqui).
Mais de três décadas depois, soldados americanos cometiam inúmeros atos de tortura em uma prisão iraquiana, Abu Ghraib. O Pentágono classificara aqueles soldados como “maçãs ruins numa cesta de boas maçãs”. Zimbardo, convocado como testemunha especialista, resumiu o cenário de maneira inversa: “Não se pode ser um pepino doce em um barril de vinagre”.
Mais do que componentes situacionais, entretanto, Zimbardo enfatiza a importância de componentes sistêmicos, que incluem a cultura e os padrões de conduta socialmente esperados. Para evitarmos os grandes atos de maldade, ele defende que mudemos nosso foco para o heroísmo cotidiano, promovendo uma “banalidade do bem”.
*FABIO F. STORINO É DOUTOR EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E GOVERNO[:en]Como explicar a violência policial nas manifestações pelo Brasil? Pode ter entrado em ação a “banalidade do mal”, ideia de que o mal também é exercido por pessoas comuns acatando ordens superiores
Durante o mês de junho, manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público ocorreram em várias cidades do País. Em São Paulo, a reação da polícia aos manifestantes pareceu particularmente desproporcional, vitimando também jornalistas e pessoas que nem sequer participavam do ato. Como explicar aquela violência cometida pelos policiais?
Além das explicações clássicas (despreparo, cultura militar etc.), embora verdadeiras, pode ter entrado em ação o que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”: a ideia de que o mal não é exercido apenas por fanáticos ou sociopatas, mas também por pessoas comuns que, acatando ordens superiores, cometem atos abjetos que, em dado contexto, consideraram “normais”.
Em 1961, três meses depois do início do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann em Israel (onde Hannah estava como correspondente de uma revista americana), Stanley Milgram, professor de psicologia da Universidade Yale, ficou incomodado com uma pergunta: “Poderia o holocausto ter acontecido aqui?” Com o pretexto de conduzir um experimento para aumentar a capacidade de memória das pessoas, Milgram de fato media a disposição de participantes em obedecer a uma figura de autoridade.
Mais de mil voluntários, de variado perfil etário e socioeconômico, receberam a instrução de aplicar um leve choque de 15 volts em desconhecidos (atores) caso errassem um problema. A intensidade do choque ia aumentando, assim como o grito de sofrimento dos atores, pelos quais o “cientista” da sala, de jaleco, assumia diante dos voluntários a responsabilidade por qualquer consequência. Milgram replicou o experimento sob várias condições e, em uma delas, 90% dos voluntários aceitaram aplicar a carga máxima (fictícia) de 450 volts no agonizante ator.
Em 1967, em uma escola de Palo Alto, Califórnia, um professor de História Contemporânea tentava explicar a seus alunos como a população alemã teria aceito a ascensão do nazismo e as atrocidades cometidas por ele. Para isso, criou um movimento chamado “A terceira onda”, cuja simbologia lembrava o próprio nazismo, que em pouco tempo saiu de seu controle e ganhou vida própria. A experiência foi dramatizada pelo filme alemão A Onda (2008).
Quatro anos mais tarde, na mesma Palo Alto, agora na Universidade de Stanford, o professor de psicologia Philip Zimbardo conduziu o que ficou conhecido como o “experimento da prisão de Stanford”, no qual dividiu voluntários (alunos de Stanford com perfil de boa conduta) entre prisioneiros e guardas de uma prisão fictícia. O que era para ser um experimento de duas semanas precisou ser cancelado no sexto dia, após inúmeros abusos cometidos por aqueles no papel de guarda (ver seu TEDtalk aqui).
Mais de três décadas depois, soldados americanos cometiam inúmeros atos de tortura em uma prisão iraquiana, Abu Ghraib. O Pentágono classificara aqueles soldados como “maçãs ruins numa cesta de boas maçãs”. Zimbardo, convocado como testemunha especialista, resumiu o cenário de maneira inversa: “Não se pode ser um pepino doce em um barril de vinagre”.
Mais do que componentes situacionais, entretanto, Zimbardo enfatiza a importância de componentes sistêmicos, que incluem a cultura e os padrões de conduta socialmente esperados. Para evitarmos os grandes atos de maldade, ele defende que mudemos nosso foco para o heroísmo cotidiano, promovendo uma “banalidade do bem”.
*FABIO F. STORINO É DOUTOR EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E GOVERNO