David Graeber, antropólogo e mentor do Occupy Wall Street, diz que não é preciso formar partidos, mas questionar a legitimidade do sistema como um todo: é tarefa dos políticos provar que são relevantes
Baixa qualidade dos serviços públicos, corrupção e má gestão pública alimentaram os protestos no Brasil em junho. Muitos questionam se precisamos de políticos agora que estamos conectados diretamente.
Não é que o governo gerencia mal as coisas. Ele administra mal para a população em geral porque ela não é mais a sua principal base. O governo administra as coisas muito bem para os 1%. O Brasil ilustra bem isso. Em suas origens, o partido atualmente no poder parecia fazer tudo certo: incorporar elementos de democracia direta, manter relações estreitas com os movimentos sociais. Quando ganharam o governo, passaram a gerir as instituições básicas do poder da mesma maneira que todos os outros. Por esse aspecto, provam o seu ponto correto. Não interessa em quem você vota. O aparelho está montado para operar de acordo com interesses de uma elite nacional e global, e vai continuar a fazê-lo independente de quem esteja no poder. Se a massa da população quer que algo mude, vai ter que fazer a mudança por si só.
É possível imaginar democracia sem partidos? Que modelo de representação política alternativo poderia funcionar na prática?
Originalmente a palavra “democracia” significava assembleias populares, as pessoas governando a si mesmas coletivamente sem representantes, ou com alguns representantes passíveis de ser destituídos, e que eram monitorados de perto para garantir que agissem sempre de acordo com a vontade popular. Frequentemente tais representantes não eram eleitos, mas escolhidos em sorteio. Os fundadores da Constituição americana rejeitaram esse modelo – disseram explicitamente que se opunham à “democracia” – e preferiram ver o que chamaram de uma “aristocracia natural” de advogados instruídos no poder, com o “povo” avaliando sua performance de vez em quando, mas sem a última palavra sobre as políticas. Mas mesmo os fundadores da Constituição americana se opunham aos partidos políticos! Há vários exemplos históricos de sistemas democráticos que não se baseiam em partidos ou representantes eleitos. Podemos discutir como os detalhes funcionariam em grande escala, mas não há razão para acreditar que não pode funcionar.
Quais os objetivos do Occupy em termos de representação política?
Rejeitamos a noção de representação política – claro que isso tem a ver com o contexto específico americano. Os EUA são quase inimaginavelmente corruptos. O suborno foi efetivamente legalizado. Sentimos que criar uma crise de legitimidade para o sistema como um todo era a única opção viável.
O Occupy saiu do radar mainstream. O que anda fazendo, qual seu principal objetivo?
Depende de para quem você pergunta. Gosto de pensar que estamos todos na mesma estrada em direção a um mundo mais livre, baseado em instituições de democracia direta e relações econômicas democráticas. Mas não havia qualquer consenso sobre quão longe poderíamos ir. Os anarquistas achavam que podíamos ir até o fim, atingir uma sociedade sem estados ou capitalismo. Outros sentiam que poderíamos percorrer uma boa distância, mas não tanto assim. A crise real veio com a repressão policial extrema e sistemática – a maioria de nossos aliados liberais nos abandonaram imediatamente ou tacitamente defenderam a violência policial ao dizer que não éramos suficientemente não-violentos como Gandhi. Temos trabalhado muito. Em Nova York, o Occupy Sandy envolveu pelo menos 40 mil pessoas em seu auge, a campanha Strike Debt organiza pessoas em default, o Occupy Farms tenta criar novos sistemas agrícolas, equipes de defesa doméstica atuam contra despejos… Mas principalmente tentamos criar uma cultura sólida de ação direta e democracia direta, formando um grupo central em cada cidade antes do próximo crash econômico, que deve ocorrer em alguns anos.
Há conexão entre os movimentos populares recentes no Egito, Turquia, Brasil? Trata-se da “verdadeira globalização”?
De fato. As origens podem ser encontradas no Movimento pela Justiça Global iniciado com a rebelião Zapatista em Chiapas em 1994 e que continua até hoje. O movimento era baseado na compreensão de que o que chamávamos de Consenso de Washington era o produto de uma inovação na história humana: a criação da primeira burocracia administrativa em escala planetária. Compunha-se não só de burocracias comerciais como FMI, Banco Mundial, OMC, NAFTA, UE, mas de instituições financeiras, corporações transnacionais e também ONGs, que se toraram “a mão esquerda do Estado”, tirando até mesmo as polticas sociais das mãos de funcionários públicos locais imputáveis democraticamente. Ironicamente, tal estrutura foi criada em nome do “comércio livre” e do “mercado livre” e, claro, por meio da falsa moralidade da dívida, que permitiu que os ricos tornassem os pobres esbanjadores e incapazes de gerir suas próprias contas. Naquela época ninguém, pelo menos nos países mais ricos, sabia muito sobre tais instituições. O movimento iniciado em Chiapas foi muito bem sucedido em apenas alguns anos, paralisando o Consenso de Washington e todos os novos pactos comerciais; o FMI foi expulso do Sudeste da Ásia e da América Latina. A estrutura, porém, ainda existe e a crise da dívida finalmente atacou o centro do império, ou pelo menos as margens desse centro: o Sul da Europa e o Oriente Médio. As novas rebeliões assumem a mesma forma da original: sem hierarquia, prefigurativas ao tentar criar estruturas democráticas de base para justapor às estruturas de-cima-para-baixo e altamente anti-democráticas que governam o mundo atualmente. É ilustrativo que haja tanto em comum entre países que supostamente são os menos democráticos (Egito) e os mais democráticos (EUA, Itália, Brasil). Percebemos que o modelo dos anos 90 de democratização tem nada a ver com democracia verdadeira.
Assim como o Occupy, manifestantes no Brasil foram criticados pela falta de hierarquia e demanda unificada. Que conselho o Sr. envia àqueles que tentam mudar o sistema político brasileiro?
Não é preciso formar partido ou enunciar objetivos específicos. Há gente suficiente fazendo isso, vários planos excelentes. A questão é: por que não conseguem colocar tais planos em prática? Vejo a Argentina em 2002 como inspiração, o momento Que Se Vayan Todos: uma crise de legitimidade do sistema como um todo, o fato de que políticos de qualquer partido eram tão universalmente desprezados que não podiam ir a restaurantes elegantes sem disfarce pois as pessoas começavam a jogar comida neles. Isso levou até mesmo moderados Sociais Democratas como Kirchner a perceber que tinham que fazer algo radical, e veio o default que quase destruiu o FMI. O curso ideal é tentar criar novas instituições ou tomar aquelas existentes e operá-las de maneira democrática, de forma a dizer à classe política: “é tarefa sua provar que você é de qualquer forma relevante para nossas vidas”.