A vida na Terra, como a conhecemos, só existe por causa dos oceanos. Foi neles também que surgiram as primeiras formas vivas. Hoje o mar faz parte da alimentação, transporte, lazer, economia e até mesmo do nosso imaginário e crenças, além de funcionar como o grande regulador climático. Ainda assim, o homem tem dado as costas para a sua conservação
Quando cruzou o Oceano Pacífico de avião para morar na Nova Zelândia aos 22 anos, a brasileira Karin Carlyon não imaginava que atravessaria muitos outros mares. Só que sempre mais perto da água: em um barco a vela. Aos 28 anos, partiu com o namorado neozelandês, Russell, para uma viagem sem destino nem data nal. De junho de 2006 a novembro de 2012, passaram por países como África do Sul, Austrália, Fiji, Indonésia, Malásia, Tailândia, Tonga e Brasil.
No trajeto, o casal se acostumou a viver com o balanço das ondas. “É incrível como o corpo humano se adapta ao mar. No terceiro dia a bordo, eu já não enjoava”, diz Karin a PÁGINA22 em entrevista por Skype, de Paihia, conhecida como a joia da Bay of Islandes, no extremo-norte da Nova Zelândia. Ao longo da jornada em alto-mar, conviveram com os animais locais: “Passamos fome por um dia, porque um pássaro exausto pousou em cima da nossa geladeira e tivemos dó de tirá-lo de lá”.
Aprenderam também a viver com o essencial. “Minha mochila pesava 20 quilos e era tudo o que eu precisava.” E, a depender das forças da natureza, com uma fonte de energia eólica e painéis solares. Na bagagem de volta, além de toda a experiência, trouxeram uma lha: Brisa, hoje com 4 anos. “Depois de viver no mar, não tem como gostar de nomes comuns”, conta Karin. [1]
[1] O registro dos sete anos de viagem está em catamaranmoonwalker.blogspot.com
Só que Karin, Russell e Brisa Carlyon trouxeram também uma visão pouco otimista: o impacto negativo do homem na natureza é perceptível em qualquer canto do mundo. “Quando você me pergunta sobre a interação com o mar, infelizmente me vem à cabeça o lado negativo. É muito lixo ao redor! Estivemos em ilhas desabitadas, onde o povoado mais próximo estava a 600 milhas (aproximadamente 965 quilômetros), e o litoral estava cheio de plástico. Várias vezes não conseguíamos fincar a âncora na areia de tanto lixo no fundo do mar. Você imagina que esses lugares são pequenos paraísos, mas já estão degradados”, diz Karin.
ÁGUA VITAL
Foi nos oceanos que há cerca de 3,8 bilhões de anos as primeiras formas de vida se desenvolveram e puderam evoluir até o surgimento de corais, peixes, mamíferos, algas etc. “Os mares são responsáveis pela nossa existência na Terra, mas viraram o depositório de toda porcaria da sociedade global e industrial. Tudo vai parar lá, ou por descarte incorreto ou com o efeito da gravidade”, afirma Frederico Brandini, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.
A água salgada cobre 71% da superfície da Terra e é nela que algas unicelulares fazem fotossíntese e produzem metade do oxigênio da atmosfera. Sem essas águas, a temperatura do planeta seria de 90 graus Celsius e as formas de vida, completamente diferentes das que existem atualmente. Além da relevância ecológica, é dos mares que vêm parte da alimentação, transporte e lazer de que usufruímos. Segundo as Nações Unidas, 3 bilhões de pessoas dependem da biodiversidade marinha e costeira para a própria subsistência, por meio da pesca.
Os mares também estão presentes nas tradições religiosas e mitológicas, como elemento constante quando o assunto é o início da vida. Nas tradições judaica e cristã, por exemplo, a água representa a origem da criação. Segundo o Gênesis – livro que inicia tanto a Bíblia cristã como a Torá judaica – , quando a Terra se encontrava ainda disforme no início, o espírito de Deus pairava sobre as águas. Após fazer a luz, Deus teria dito: “Faça-se o firmamento no meio das águas, e separe umas águas das outras águas”. Já na tradição afro-brasileira do candomblé, a orixá Iemanjá é a rainha do mar e mãe de todos os homens, pois o mar é o grande símbolo de união entre os povos.
“Os oceanos são muito mais importantes para a sociedade do que se pensa. Mas seu valor ecossistêmico é de difícil mensuração. Quanto custa o fato de o mar produzir oxigênio para nós?”, questiona Brandini, ao explicar que, mesmo diante de tamanha relevância – os oceanos são vistos pelos especialistas como o maior regulador climático –, não recebem a devida importância quando o assunto é conservação ambiental (mais sobre a relação entre o mar e o clima em Entrevista).
Como nem todas as pessoas podem observar o mar em sua grande extensão, como fez a família Carlyon, a sensibilização sobre a necessidade de cuidar desse ambiente é mais difícil. Além disso, pesquisas e monitoramentos em alto-mar e submarinos são muito caros. Segundo Ariel Scheffer, presidente da Associação MarBrasil e diretor de Ensino Superior e Pós-Graduação do Instituto Federal do Paraná, os oceanos são esquecidos porque vivemos em um sistema econômico que só olha para a terra. “A agricultura, por exemplo, é valorizada, porque o solo significa dinheiro ”, explica.
Mesmo no Brasil, maior país em extensão litorânea da América do Sul e onde 26,7% da população vive nos 7,3 mil quilômetros de faixa costeira, estamos “de costas para o mar”, dizem os especialistas entrevistados por PÁGINA22. “Ninguém vai ao restaurante a beira-mar e come camarão pensando na criação do animal, feita no manguezal, o que impacta essas regiões”, diz Leandra Gonçalves, consultora da SOS Mata Atlântica. “E o turista só se preocupa se a praia está limpa quando se encontra lá”, exemplifica.
Já Scheffer lembra que nosso País deve aos oceanos parte de sua herança cultural e histórica, pois foi por lá que chegaram colonizadores europeus e os negros africanos. Nossa “herança marítima” impactou até no vocabulário, uma vez que muitas palavras em português possuem raízes nos objetos e termos usados a bordo na época das navegações do Brasil Colônia. (Leia mais no quadro “Papo de pescador“.)
PROTEGER JÁ
Dos 362 milhões de quilômetros quadrados de água salgada que cobrem a Terra, apenas 1% encontra-se sob leis de manejo sustentável ou proteção integral. O Brasil acompanha a baixa média: só 1,57% de seu território marinho está sob proteção, em 102 unidades de conservação (UCs) marinhas.
É possível que até 2020 esse cenário seja diferente. Em 2010, na 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, a ONU convocou os 193 países presentes a assinar um compromisso internacional para aumentar as áreas de proteção em terra e mar – as Metas de Aichi para Biodiversidade. O objetivo para os ecossistemas marinhos é que, passados dez anos do acordo, o mundo tenha 10% de áreas protegidas. “É uma meta audaciosa, mas pequena diante da necessidade de preservação dos mares”, comenta Ariel Scheffer.
Essa regularização das leis sobre os mares é importante para que os impactos no seu ecossistema sejam abrandados. Além da questão do plástico acumulado, há outros desaos menos visíveis. Se fizesse uma escala com as maiores ameaças aos oceanos, hoje, Frederico Brandini daria à sobrepesca o inglório primeiro lugar. O segundo, à poluição química.
Os mares são responsáveis por 80% da produção pesqueira mundial, destinadas ao consumo humano. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a pesca global tira anualmente 80 milhões de toneladas de peixes do mar. É o equivalente a encher 44 estádios do Maracanã com esses animais. Das espécies comercializadas, 52% estão plenamente exploradas e 25% foram utilizadas além de sua capacidade de regeneração, apontam dados da SOS Mata Atlântica no livro O Azul da Mata Atlântica, lançado no fim de julho.
A prática da pesca de arrasto constitui outro grave problema. As grandes redes, como se fossem um arado, tiram tudo o que encontram no caminho. Segundo Scheffer, após um arrasto, apenas entre 10% e 20% da pesca é aproveitada. O resto é descartado como biodiversidade morta e pode conter tartarugas, esponjas e corais
POLUIÇÃO MENOS VISÍVEL
Já a poluição química e a contaminação crônica dos mares constituem problema dos mais graves, visto que hoje a humanidade consome uma grande quantidade de fármacos. Os elementos químicos são liberados na urina ou mesmo no lixo e persistem nos mares, porque não há bactérias que os consuma. “Os reis da contaminação marinha hoje são os antidepressivos, anti-inflamatórios e anticoncepcionais. Essas substâncias se acumulam ao longo da cadeia alimentar, e golfinhos e tubarões, por exemplo, estão incorporando isso em seus tecidos. Existem estudos mostrando peixes feminilizados por conta dos hormônios da pílula”, afirma Brandini.
Já a curto prazo há problemas a serem enfrentados, como o aumento da quantidade de sal na água do mar. Conforme a população mundial cresce, os continentes retêm mais água doce dos rios e da chuva. Atualmente, há 5 mil reservatórios no planeta nutridos com o líquido que antes iria parar no mar. Ao aumentar a densidade dos oceanos, alteram-se as condições fisiológicas dos animais e vegetais e até a flutuabilidade dos navios. Bancos de areia aparecem onde não existiam e colocam em risco rotas de transporte. “Estudos mostram que o regime de chuvas não mudou muito, mas os mares ficaram mais salgados, provando que faltou água doce”, explica Brandini
A longo prazo, a ameaça para o ecossistema marinho é o aquecimento global. Por causa da queima de combustíveis fósseis e do desmatamento, a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera – fenômeno natural necessário à manutenção da vida na Terra – ficou tão volumosa que os oceanos passaram a absorver parte desse excesso de carbono. Reações bioquímicas dentro do mar transformam o CO2 em ácido carbônico, tornando as águas mais ácidas – característica com efeitos deletérios para a vida marinha, sobretudo ao reduzir a taxa de calcificação dos recifes de corais. Isso pode levar ao seu desaparecimento e consequente destruição dos ecossistemas marinhos. Quanto mais carbono é absorvido pelas águas, maior o nível de acidez, o que interfere na vida da fauna, além de gerar o chamado “branqueamento”, ou morte dos corais.
Em um planeta mais quente, o mar também é ameaça à vida humana e à economia: ao longo do século passado, a temperatura da Terra aumentou meio grau e o nível dos mares subiu cerca de 19 centímetros, segundo dados da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA). Depois de 1992, satélites em órbita detectaram um aumento de 3,2 milímetros por ano. Parece pouco, mas, segundo o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) lançado no fim de setembro, o aquecimento global pode elevar o nível dos mares em até 1 metro até o final deste século, no cenário mais pessimista.
Ainda há muito que se fazer pelos oceanos. Os desafios são tão enormes e profundos quanto suas águas. “Temos trabalhado muito pela preservação marinha, mas a realidade é que não existe mais nenhum ambiente livre do impacto do homem. Você encontra DDT[2] em peixes na Antártida, sendo que esse pesticida foi banido na década de 1950 nos Estados Unidos”, lembra Brandini.
[2]Sigla de Dicloro-Difenil-Tricloroetano, primeiro pesticida moderno, usado após a Segunda Guerra Mundial, para a agricultura e para o combate aos mosquitos vetores da malária e do tifo.
DESCOBRIDOR DE TODOS OS MARES
O relógio da conservação corre para que a vida marinha não se perca. Junto, corre o das pesquisas científicas para que conheçamos mais esse ambiente tão distante, antes que seja tarde demais. Segundo o Census of Marine Life[3] , apenas 25% das espécies marinhas são conhecidas.
[3]O documento publicado em 2011 pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) e Unesco pode ser acessado aqui
Uma das chaves para a mudança na situação dos oceanos é a educação de base, concordam os especialistas entrevistados. É preciso que as escolas destaquem a importância dos oceanos, como hoje se busca fazer com as florestas. E que os biomas costeiro e marinho recebam a mesma atenção que biomas terrestres como a Amazônia e a Mata Atlântica.
“Existem cerca de 1.800 municípios na costa do Brasil, mas nas escolas renega-se o assunto ‘oceanos’. Crianças cujos pais trabalham no mar nem sabem por que as marés se formam”, diz Brandini.
Isso é algo que Brisa Carlyon aprendeu desde cedo. Ela e sua família há quase um ano tentam se adaptar à rotina da terra rme e, agora, devem se dedicar aos cuidados do mais novo membro da embarcação: a segunda lha de Karin e Russell, que nasceu em 24 de setembro.
Karin só quer esperar que ela cresça um pouco para embarcar de novo pelo mundo. “Somos definitivamente uma família marítima e vamos continuar velejando juntos. Para nós, a vida é muito menos complicada no mar. Lá conseguimos ter um tempo importante para nos dedicarmos uns aos outros”. O nome da bebê não poderia ser outro: Ilha Maria.
Leia mais nesta edição:
A insustentabilidade da pesca industrial, em “Não está pra Peixe“
Edmo Campos explica o papel dos oceanos para a regulação climática, em “Unindo o Norte ao Sul“
Conservar os oceanos e explorar seus recursos ao memso tempo custa caro, em “Oceanos S.A.“
Questão da governança das águas internacionais dificulta políticas de preservação, em “De Todos, Mas de Ninguém“
[:en]A vida na Terra, como a conhecemos, só existe por causa dos oceanos. Foi neles também que surgiram as primeiras formas vivas. Hoje o mar faz parte da alimentação, transporte, lazer, economia e até mesmo do nosso imaginário e crenças, além de funcionar como o grande regulador climático. Ainda assim, o homem tem dado as costas para a sua conservação
Quando cruzou o Oceano Pacífico de avião para morar na Nova Zelândia aos 22 anos, a brasileira Karin Carlyon não imaginava que atravessaria muitos outros mares. Só que sempre mais perto da água: em um barco a vela. Aos 28 anos, partiu com o namorado neozelandês, Russell, para uma viagem sem destino nem data nal. De junho de 2006 a novembro de 2012, passaram por países como África do Sul, Austrália, Fiji, Indonésia, Malásia, Tailândia, Tonga e Brasil.
No trajeto, o casal se acostumou a viver com o balanço das ondas. “É incrível como o corpo humano se adapta ao mar. No terceiro dia a bordo, eu já não enjoava”, diz Karin a PÁGINA22 em entrevista por Skype, de Paihia, conhecida como a joia da Bay of Islandes, no extremo-norte da Nova Zelândia. Ao longo da jornada em alto-mar, conviveram com os animais locais: “Passamos fome por um dia, porque um pássaro exausto pousou em cima da nossa geladeira e tivemos dó de tirá-lo de lá”.
Aprenderam também a viver com o essencial. “Minha mochila pesava 20 quilos e era tudo o que eu precisava.” E, a depender das forças da natureza, com uma fonte de energia eólica e painéis solares. Na bagagem de volta, além de toda a experiência, trouxeram uma lha: Brisa, hoje com 4 anos. “Depois de viver no mar, não tem como gostar de nomes comuns”, conta Karin. [1]
[1] O registro dos sete anos de viagem está em catamaranmoonwalker.blogspot.com
Só que Karin, Russell e Brisa Carlyon trouxeram também uma visão pouco otimista: o impacto negativo do homem na natureza é perceptível em qualquer canto do mundo. “Quando você me pergunta sobre a interação com o mar, infelizmente me vem à cabeça o lado negativo. É muito lixo ao redor! Estivemos em ilhas desabitadas, onde o povoado mais próximo estava a 600 milhas (aproximadamente 965 quilômetros), e o litoral estava cheio de plástico. Várias vezes não conseguíamos fincar a âncora na areia de tanto lixo no fundo do mar. Você imagina que esses lugares são pequenos paraísos, mas já estão degradados”, diz Karin.
ÁGUA VITAL
Foi nos oceanos que há cerca de 3,8 bilhões de anos as primeiras formas de vida se desenvolveram e puderam evoluir até o surgimento de corais, peixes, mamíferos, algas etc. “Os mares são responsáveis pela nossa existência na Terra, mas viraram o depositório de toda porcaria da sociedade global e industrial. Tudo vai parar lá, ou por descarte incorreto ou com o efeito da gravidade”, afirma Frederico Brandini, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.
A água salgada cobre 71% da superfície da Terra e é nela que algas unicelulares fazem fotossíntese e produzem metade do oxigênio da atmosfera. Sem essas águas, a temperatura do planeta seria de 90 graus Celsius e as formas de vida, completamente diferentes das que existem atualmente. Além da relevância ecológica, é dos mares que vêm parte da alimentação, transporte e lazer de que usufruímos. Segundo as Nações Unidas, 3 bilhões de pessoas dependem da biodiversidade marinha e costeira para a própria subsistência, por meio da pesca.
Os mares também estão presentes nas tradições religiosas e mitológicas, como elemento constante quando o assunto é o início da vida. Nas tradições judaica e cristã, por exemplo, a água representa a origem da criação. Segundo o Gênesis – livro que inicia tanto a Bíblia cristã como a Torá judaica – , quando a Terra se encontrava ainda disforme no início, o espírito de Deus pairava sobre as águas. Após fazer a luz, Deus teria dito: “Faça-se o firmamento no meio das águas, e separe umas águas das outras águas”. Já na tradição afro-brasileira do candomblé, a orixá Iemanjá é a rainha do mar e mãe de todos os homens, pois o mar é o grande símbolo de união entre os povos.
“Os oceanos são muito mais importantes para a sociedade do que se pensa. Mas seu valor ecossistêmico é de difícil mensuração. Quanto custa o fato de o mar produzir oxigênio para nós?”, questiona Brandini, ao explicar que, mesmo diante de tamanha relevância – os oceanos são vistos pelos especialistas como o maior regulador climático –, não recebem a devida importância quando o assunto é conservação ambiental (mais sobre a relação entre o mar e o clima em Entrevista).
Como nem todas as pessoas podem observar o mar em sua grande extensão, como fez a família Carlyon, a sensibilização sobre a necessidade de cuidar desse ambiente é mais difícil. Além disso, pesquisas e monitoramentos em alto-mar e submarinos são muito caros. Segundo Ariel Scheffer, presidente da Associação MarBrasil e diretor de Ensino Superior e Pós-Graduação do Instituto Federal do Paraná, os oceanos são esquecidos porque vivemos em um sistema econômico que só olha para a terra. “A agricultura, por exemplo, é valorizada, porque o solo significa dinheiro ”, explica.
Mesmo no Brasil, maior país em extensão litorânea da América do Sul e onde 26,7% da população vive nos 7,3 mil quilômetros de faixa costeira, estamos “de costas para o mar”, dizem os especialistas entrevistados por PÁGINA22. “Ninguém vai ao restaurante a beira-mar e come camarão pensando na criação do animal, feita no manguezal, o que impacta essas regiões”, diz Leandra Gonçalves, consultora da SOS Mata Atlântica. “E o turista só se preocupa se a praia está limpa quando se encontra lá”, exemplifica.
Já Scheffer lembra que nosso País deve aos oceanos parte de sua herança cultural e histórica, pois foi por lá que chegaram colonizadores europeus e os negros africanos. Nossa “herança marítima” impactou até no vocabulário, uma vez que muitas palavras em português possuem raízes nos objetos e termos usados a bordo na época das navegações do Brasil Colônia. (Leia mais no quadro “Papo de pescador“.)
PROTEGER JÁ
Dos 362 milhões de quilômetros quadrados de água salgada que cobrem a Terra, apenas 1% encontra-se sob leis de manejo sustentável ou proteção integral. O Brasil acompanha a baixa média: só 1,57% de seu território marinho está sob proteção, em 102 unidades de conservação (UCs) marinhas.
É possível que até 2020 esse cenário seja diferente. Em 2010, na 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, a ONU convocou os 193 países presentes a assinar um compromisso internacional para aumentar as áreas de proteção em terra e mar – as Metas de Aichi para Biodiversidade. O objetivo para os ecossistemas marinhos é que, passados dez anos do acordo, o mundo tenha 10% de áreas protegidas. “É uma meta audaciosa, mas pequena diante da necessidade de preservação dos mares”, comenta Ariel Scheffer.
Essa regularização das leis sobre os mares é importante para que os impactos no seu ecossistema sejam abrandados. Além da questão do plástico acumulado, há outros desaos menos visíveis. Se fizesse uma escala com as maiores ameaças aos oceanos, hoje, Frederico Brandini daria à sobrepesca o inglório primeiro lugar. O segundo, à poluição química.
Os mares são responsáveis por 80% da produção pesqueira mundial, destinadas ao consumo humano. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a pesca global tira anualmente 80 milhões de toneladas de peixes do mar. É o equivalente a encher 44 estádios do Maracanã com esses animais. Das espécies comercializadas, 52% estão plenamente exploradas e 25% foram utilizadas além de sua capacidade de regeneração, apontam dados da SOS Mata Atlântica no livro O Azul da Mata Atlântica, lançado no fim de julho.
A prática da pesca de arrasto constitui outro grave problema. As grandes redes, como se fossem um arado, tiram tudo o que encontram no caminho. Segundo Scheffer, após um arrasto, apenas entre 10% e 20% da pesca é aproveitada. O resto é descartado como biodiversidade morta e pode conter tartarugas, esponjas e corais
POLUIÇÃO MENOS VISÍVEL
Já a poluição química e a contaminação crônica dos mares constituem problema dos mais graves, visto que hoje a humanidade consome uma grande quantidade de fármacos. Os elementos químicos são liberados na urina ou mesmo no lixo e persistem nos mares, porque não há bactérias que os consuma. “Os reis da contaminação marinha hoje são os antidepressivos, anti-inflamatórios e anticoncepcionais. Essas substâncias se acumulam ao longo da cadeia alimentar, e golfinhos e tubarões, por exemplo, estão incorporando isso em seus tecidos. Existem estudos mostrando peixes feminilizados por conta dos hormônios da pílula”, afirma Brandini.
Já a curto prazo há problemas a serem enfrentados, como o aumento da quantidade de sal na água do mar. Conforme a população mundial cresce, os continentes retêm mais água doce dos rios e da chuva. Atualmente, há 5 mil reservatórios no planeta nutridos com o líquido que antes iria parar no mar. Ao aumentar a densidade dos oceanos, alteram-se as condições fisiológicas dos animais e vegetais e até a flutuabilidade dos navios. Bancos de areia aparecem onde não existiam e colocam em risco rotas de transporte. “Estudos mostram que o regime de chuvas não mudou muito, mas os mares ficaram mais salgados, provando que faltou água doce”, explica Brandini
A longo prazo, a ameaça para o ecossistema marinho é o aquecimento global. Por causa da queima de combustíveis fósseis e do desmatamento, a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera – fenômeno natural necessário à manutenção da vida na Terra – ficou tão volumosa que os oceanos passaram a absorver parte desse excesso de carbono. Reações bioquímicas dentro do mar transformam o CO2 em ácido carbônico, tornando as águas mais ácidas – característica com efeitos deletérios para a vida marinha, sobretudo ao reduzir a taxa de calcificação dos recifes de corais. Isso pode levar ao seu desaparecimento e consequente destruição dos ecossistemas marinhos. Quanto mais carbono é absorvido pelas águas, maior o nível de acidez, o que interfere na vida da fauna, além de gerar o chamado “branqueamento”, ou morte dos corais.
Em um planeta mais quente, o mar também é ameaça à vida humana e à economia: ao longo do século passado, a temperatura da Terra aumentou meio grau e o nível dos mares subiu cerca de 19 centímetros, segundo dados da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA). Depois de 1992, satélites em órbita detectaram um aumento de 3,2 milímetros por ano. Parece pouco, mas, segundo o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) lançado no fim de setembro, o aquecimento global pode elevar o nível dos mares em até 1 metro até o final deste século, no cenário mais pessimista.
Ainda há muito que se fazer pelos oceanos. Os desafios são tão enormes e profundos quanto suas águas. “Temos trabalhado muito pela preservação marinha, mas a realidade é que não existe mais nenhum ambiente livre do impacto do homem. Você encontra DDT[2] em peixes na Antártida, sendo que esse pesticida foi banido na década de 1950 nos Estados Unidos”, lembra Brandini.
[2]Sigla de Dicloro-Difenil-Tricloroetano, primeiro pesticida moderno, usado após a Segunda Guerra Mundial, para a agricultura e para o combate aos mosquitos vetores da malária e do tifo.
DESCOBRIDOR DE TODOS OS MARES
O relógio da conservação corre para que a vida marinha não se perca. Junto, corre o das pesquisas científicas para que conheçamos mais esse ambiente tão distante, antes que seja tarde demais. Segundo o Census of Marine Life[3] , apenas 25% das espécies marinhas são conhecidas.
[3]O documento publicado em 2011 pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) e Unesco pode ser acessado aqui
Uma das chaves para a mudança na situação dos oceanos é a educação de base, concordam os especialistas entrevistados. É preciso que as escolas destaquem a importância dos oceanos, como hoje se busca fazer com as florestas. E que os biomas costeiro e marinho recebam a mesma atenção que biomas terrestres como a Amazônia e a Mata Atlântica.
“Existem cerca de 1.800 municípios na costa do Brasil, mas nas escolas renega-se o assunto ‘oceanos’. Crianças cujos pais trabalham no mar nem sabem por que as marés se formam”, diz Brandini.
Isso é algo que Brisa Carlyon aprendeu desde cedo. Ela e sua família há quase um ano tentam se adaptar à rotina da terra rme e, agora, devem se dedicar aos cuidados do mais novo membro da embarcação: a segunda lha de Karin e Russell, que nasceu em 24 de setembro.
Karin só quer esperar que ela cresça um pouco para embarcar de novo pelo mundo. “Somos definitivamente uma família marítima e vamos continuar velejando juntos. Para nós, a vida é muito menos complicada no mar. Lá conseguimos ter um tempo importante para nos dedicarmos uns aos outros”. O nome da bebê não poderia ser outro: Ilha Maria.
Leia mais nesta edição:
A insustentabilidade da pesca industrial, em “Não está pra Peixe“
Edmo Campos explica o papel dos oceanos para a regulação climática, em “Unindo o Norte ao Sul“
Conservar os oceanos e explorar seus recursos ao memso tempo custa caro, em “Oceanos S.A.“
Questão da governança das águas internacionais dificulta políticas de preservação, em “De Todos, Mas de Ninguém“