O compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, primeiro artista a endossar publicamente as licenças Creative Commons, falou com exclusividade à PÁGINA22. Gil – que lançou a faixa Oslodum na internet por meio da ferramenta, em 2004, autorizando o sampleamento – deu sua visão sobre as mudanças que estão forçando uma revisão na lei brasileira
O que o senhor acha da nossa atual lei de direitos autorais? Pensa que ela precisa ser atualizada?
O que eu conheço da lei é superficial, não sou um especialista nem nada disso. Mas o consenso geral, especialmente devido às novas questões surgidas no campo da autoralidade, no Brasil e no mundo, é de que ela precisa ser atualizada para que seja adequada e acolha novas questões, novos problemas e novas possibilidades do exercício do direito autoral. Por causa das novidades, da internet, do ciberespaço, das redes sociais… Enfim… Das exigências de compartilhamento, autorias e etc. Então tem todo um conjunto de coisas que forçam um pouco a revisão da lei, tornando-a uma coisa natural.
Você acha que iniciativas como o Creative Commons fazem parte desse conjunto de coisas?
Todas essas possibilidades novas, que a própria lei americana já contempla, que a lei da União Europeia em alguma medida já contempla, e também iniciativas autônomas, fora do campo institucional, como o Creative Commons, que cria uma possibilidade de titularidade autoral auto-gerida, devem ser elementos que contribuam com a atualização da lei brasileira. O Commons tem mais de 200 milhões de licenças, enquanto que as licenças tradicionais estão em torno de cinco milhões, mais ou menos. Então é a avalanche da realidade que vai fazer com que se entenda necessária e cabível uma adequação da lei brasileira e um acolhimento, por ela, dessas novidades que estão por aí.
A ideia do Commons é amalgamar esse interesse comum que há entre o autor e o público. Que é um princípio consagrado, que criou o direito autoral lá atrás: proteger o autor e ao mesmo tempo o consumidor da obra autoral.
Mas temos aí as instituições intermediárias, para quem tamanha emancipação talvez não seja interessante… Gravadoras, editoras…
Mas aí, como você já disse, são intermediárias. Elas estão no meio da questão de interesse maior no tocante ao direito autoral, que são os autores e as obras. E esses intermediários que se adaptem àquilo que os autores e os consumidores forem estabelecendo como mais interessante.
Você é um entusiasta das licenças Commons. Como autor, para você, qual é a principal vantagem de uma licença do gênero?
Depende da intenção. No caso, a principal vantagem é a facilidade. Há vários tipos de licença, desde que as que preservam completamente a autoria até aquelas em que o adepto abre mão da titularidade parcialmente. Há licenças Commons que impedem completamente a reprodução da obra para usos comerciais, outros permitem. Há, portanto, uma gradação de possibilidades. No meu caso, nas músicas que eu venha a licenciar via Creative Commons, o que interessa é a facilidade direta da gestão do direito, porque como ela pressupõe o meio eletrônico (por isso mesmo foi criada), então a facilidade maior é esta: a pessoa poder, da sua casa, tanto eu como autor como o consumidor da obra, na outra ponta, estabelecer as condições de uso da obra, sem essa intermediação lenta através de associações e etc…
Qual é a sua postura, no geral, com relação ao uso de trechos de sua obra? Se um DJ, por exemplo, utilizar um trecho de obra sua para um mashup ou um sampler, você é a favor ou é contra? Ou é a favor em determinadas situações…?
Basicamente, sou a favor. A lei americana já criou a figura do fair use, justamente para garantir isso: a possibilidade de que pequenos fragmentos de filmes, áudios, trechos literários e etc sejam utilizados por terceiros. Acho que é um princípio que já está começando a ficar consagrado. A utilização do sampler e afins já forçou a admissão dessa modalidade. E eu, naturalmente, admito também. No caso prático, o que acontece mais frequentemente é que todos os usos que normalmente se quer fazer de trechos de músicas minhas, ou músicas inteiras, são submetidos à minha aprovação em geral. Mas, ainda assim, essas novas formas, como o fair use, garantem a possibilidade de utilização de trechos de obras minhas até mesmo sem que eu tenha de dar autorização.
E, para você, tudo bem?
Uai, vamos pensar. Por que é que a lei americana está admitindo a possibilidade de uso de um trecho de um filme de Hitchcock por um cineasta amador, por exemplo? Porque é uma coisa que foi aceita pela sociedade, foi conquistada até. Foi aprovada por um legislativo que representa a sociedade. E eu, como membro da sociedade, automaticamente estou aceitando também…
Você acha que uma lei de direitos autorais muito rígida pode desestimular a criatividade e a criação?
Sem dúvida. Isso não só é verdade com relação à autoralidade do ponto de vista literário, musical e etc, mas diz respeito também às patentes. O fechamento exagerado das patentes, argumenta-se, é um desestímulo à criação. Cada vez mais, porque o conhecimento e a informação – e a possibilidade de circulação disso – é que movem o estímulo à criação. Então, você vai alargando a cadeia criativa. Quanto mais restrito, na mão de poucos, menos se alarga a cadeia.
Se uma atualização da lei é tão necessária, por que acha que está demorando tanto?
Ah, porque tudo demora muito mesmo, especialmente quando há, em jogo, interesses estabelecidos, que são ameaçados por novos interesses que estão sendo criados. A tecnologia P2P, o compartilhamento, a criação através de sampler, tudo isso está ameaçando o velho direito das gravadoras, dos editores.
Acha que conseguiremos resolver isso ainda na gestão Marta?
Aí é especular, não sei… Vai depender primeiro da disposição da própria instituição pública, do Ministério, de acelerar o processo. Depois, da pressão da sociedade para que a lei saia. Acho que quanto mais vai crescendo esse campo de atividades de interesses comerciais novos e criativos, que dependem da internet, mais pressão se exerce no sentido de acelerar a confecção da atualização da lei.
E os próximos trabalhos? Serão todos distribuídos na rede ou você ainda tem uma afeição ao “velho suporte”?
Ah, não posso antecipar nada disso… A gente já sabe que os velhos suportes estão com os dias contados. Se continuarem a existir, irão existir residualmente. Agora você tem um ressurgimento do vinil, que voltou ao mercado recentemente num nicho específico. A expectativa no futuro é de que todos os artistas, eu inclusive, pessoalmente, estejamos atentos a todas essas possibilidades, a essa variedade de possibilidades de atendimento de mercado, como os micromercados que existem por aí, aos quais você vai ter de alguma maneira de satisfazer… Ou então não, você decide que só vai vender eletronicamente, não quer saber de disco, de coisa nenhuma. Mas isso não se pode antecipar. Isso vai depender lá adiante, de como é que esses mercados estarão reagindo, que tipo de vitalidade ainda terão, ou deixarão de ter… Essas coisas vão depender do futuro, e o futuro a Deus pertence.