Mudanças na regulação mostram como a ciência, a tecnologia, os interesses econômicos e os da saúde pública disputam influência sobre o que comemos
Um dos principais objetivos dos empresários da indústria de alimentos, ao fundar, em outubro de 1963, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), era modernizar a legislação de alimentos, então considerada confusa. A partir daí, a entidade passou a participar intensamente da elaboração e atualização do emaranhado de portarias, resoluções e leis que definem que tipo de alimento será permitido na mesa dos brasileiros.
Na década de 1960, a legislação brasileira ainda nem havia se harmonizado com o Codex Alimentarius, o fórum internacional ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) que estabelece padrões para composição, perfil nutricional, higiene e rotulagem de alimentos com a finalidade de proteger a saúde dos consumidores e assegurar práticas equitativas no comércio.
Na virada do século, a regulação de alimentos no Brasil parecia ter deixado o atraso para trás: já harmonizada com o Codex e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), aberta a revisões e atualizações por meio de consultas públicas disponíveis na internet e conduzida em parte por uma agência governamental com estrutura administrativa própria – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada em 1999 pelo governo FHC. Mas, vista em perspectiva, essa evolução parece menos uma corrida acelerada para frente do que uma valsa, com passos em diversas direções e algumas pausas, dançada conforme a música dos avanços científicos e tecnológicos, de interesses econômicos e políticos e, claro, de limitações do sistema.
IDAS E VINDAS
Veja-se o caso da regulação do mercado de fórmulas infantis, que há décadas opõe fabricantes e defensores do aleitamento materno exclusivo. A Norma Brasileira para Comercialização de Alimentos para Lactentes (NBCAL), criada em 1988 e revista em 1992, representou um instrumento importante para promover o aleitamento e coibir práticas promocionais abusivas, que incluíam distribuição gratuita de “leite em pó” em maternidades.
Mas, por não ter força de lei nem conter normas claras para publicidade na internet, a NBCAL nunca foi inteiramente cumprida. “A norma é boa, mas não é coercitiva”, diz Rosana De Divitiis, coordenadora nacional da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan). A lei que resolveria esse problema existe desde 2006 (consulte aqui), mas ainda não foi regulamentada.
AFROUXAMENTO DA LEI
Entre as conquistas citadas no livro comemorativo dos 50 anos da Abia está a Resolução nº 12 da Comissão Nacional de Normas e Padrões para Alimentos (CNNPA), de 1978, um documento de mais de 100 páginas que definia padrões para diversos grupos de alimentos. Até os anos 2000, ele exigia, por exemplo, um mínimo de 32% de cacau nos chocolates, só deixava chamar de integral o pão feito com pelo menos 50% de farinha integral e proibia corantes em sopas desidratadas.
Após a virada do século a legislação foi desmembrada em resoluções específicas por grupo de alimento, e essas exigências foram afrouxadas. Hoje, pães podem ser chamados de integrais mesmo com predominância de farinha refinada e qualquer quantidade de fibra de trigo no lugar da farinha integral; o mínimo de cacau nos chocolates é 25% e há 33 corantes aprovados para uso em sopas, incluindo o artificial tartrazina, que pode causar alergia [1].
[1] Consulte as resoluções sobre farinhas, chocolates e sopas respectivamente aqui, aqui e aqui
A redução no teor mínimo de cacau nos chocolates foi solicitada pela indústria brasileira em 2004, por meio de consulta pública. Antonia Aquino, gerente de alimentos especiais da Anvisa, diz que o pedido foi atendido porque a redução já havia sido feita no Codex Alimentarius. “Foi entendido que 25% de cacau era suficiente para não descaracterizar o produto. Mas hoje temos chocolates com 70%, 80% de cacau.” Além disso, completa, o foco da agência são as questões sanitárias e de saúde.
Na visão de Antonia, que está na Anvisa desde sua fundação, uma das maiores realizações da agência foi a obrigatoriedade da rotulagem nutricional para todos os alimentos embalados, em 2003. Seria a partir dela que o consumidor poderia escolher alimentos mais saudáveis e limitar o consumo de produtos com excesso de sal, açúcar e gordura, conforme a recomendação da OMS. Mas, em uma pesquisa divulgada em agosto, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) consultou 807 mulheres [2], e 40% manifestaram dificuldade em entender a tabela de nutrientes.
Assim como organizações europeias, o Idec defende que os rótulos avisem de forma mais explícita, usando as cores do semáforo, se os teores desses nutrientes nos alimentos são saudáveis ou excessivos. “Nesse tema ainda nem saímos do estágio da discussão”, lamenta Carlos Thadeu, gerente técnico do Idec.
[2] A consulta foi feita com mulheres pelo fato de ainda serem as principais responsáveis pela compra de alimentos para o domicílio
INGREDIENTES VS. NUTRIENTES
Será que uma alimentação saudável diz mais respeito aos nutrientes do que aos ingredientes? Desde 2008, a Abia tem firmado acordos com o Ministério da Saúde para reduzir os teores de gordura trans, sódio e açúcar nos alimentos industrializados. A primeira meta era limitar as gorduras hidrogenadas a 2% do total de gorduras por alimento até 2010. A Abia informa ter logrado remover 230 mil toneladas de gordura trans do mercado na primeira fase do acordo, por meio da substituição da hidrogenação por outro processo de solidificação de óleos vegetais. Isso não significa que o problema esteja resolvido.
Para o consumidor, a informação que chega é ambígua. A embalagem de produtos com gordura vegetal hidrogenada na lista de ingredientes pode trazer a alegação “zero gordura trans”, se a tabela nutricional informar um valor menor que 0,02 grama de gordura trans por porção. Ou seja, a transparência na rotulagem depende do tamanho da porção sugerida na tabela. E, para aquecer a discussão, no início de novembro a agência americana de alimentos e remédios (FDA) pôs em consulta pública a proposta de banir completamente a gordura trans dos alimentos industrializados, decisão tomada uma década atrás pela Dinamarca.
Está em curso agora o acordo para eliminar 28 mil toneladas de sódio até 2020. A redução do açúcar tem início previsto para 2014. Como a declaração da quantidade de açúcar nos rótulos não é obrigatória – outra crítica à rotulagem vigente – , por enquanto o consumidor não tem muitos meios de escolher os produtos adoçados com pouco açúcar. (Mais sobre a importância desses ingredientes para a indústria de alimentos em “Mercado viciado em junk food“)
O alarde gira em torno do que será eliminado, com menos holofotes sobre o que será colocado no lugar. Com liberdade limitada para criar sabores e texturas irresistíveis com gordura, sal e açúcar, a indústria terá de lançar mão de formulações alternativas, e não será surpresa se isso significar um aumento no uso de aditivos como espessantes, estabilizantes, aromatizantes e corantes.
Nos últimos 50 anos, a resistência ao uso de aditivos nos alimentos também se flexibilizou, ao sabor das inovações e da competitividade. O Decreto nº 55.871, de 1965, tolerava o uso de aditivo que fosse “indispensável à adequada tecnologia de fabricação” e não mais que três corantes por produto.
Hoje não é difícil encontrar produtos em que os aditivos ocupam mais espaço que os alimentos na lista de ingredientes. Segundo Antonia, da Anvisa, a aprovação de aditivos segue dois critérios: necessidade e segurança. A segurança é atestada pelo Comitê de Especialistas em Aditivos Alimentares da FAO/OMS, e a necessidade é apresentada pelo fabricante, mais ou menos como aconteceu no caso do chocolate. Na prática, as inovações são bem-vindas, até que se prove o contrário.
“A cor é o segundo quesito mais importante na aceitação (dos produtos) pelo consumidor”, diz o químico Daniel Bonadia, da brasileira Corantec Corantes Naturais. Ele diz que, no Brasil, embora a legislação já tenha banido muitos corantes artificiais, os fabricantes ainda burlam regras, e os consumidores nem sempre percebem enganações. Aqui até macarrão tem corante, assegura. Na Europa, segundo Bonadia, os fabricantes estão se antecipando à regulação e preferindo evitar corantes artificiais para não assustar os consumidores, ditos mais atentos e exigentes que os brasileiros. Ainda assim, ressalva: “Não é porque é natural que é inócuo”.
Que o digam os alérgicos. Naturais ou processados, a proteína do leite, derivados de soja, ovo, trigo, amendoim e crustáceos não declarados nos rótulos podem significar muito mal-estar para quem nasceu com alergia a algum desses alimentos, mesmo em quantidades mínimas.
Mãe de uma criança alérgica, a advogada Maria Cecília Cury fez doutorado sobre o tema e descobriu que em países como Austrália, Estados Unidos e Japão já é obrigatório avisar a presença de traços desses alimentos nas embalagens, assim como aqui é obrigatório declarar o glúten e o corante tartrazina. Mas os alérgicos brasileiros ainda dependem de consultas aos serviços de atendimento ao consumidor e trocas de informações entre eles para evitar transtornos.
Na falta de estudos brasileiros que justifiquem medidas antecipadas, o Brasil, em alguns casos, aguarda que órgãos internacionais tomem a decisão primeiro. Mas há casos em que o País não espera muito. A rotulagem obrigatória de alimentos transgênicos – com todas as suas imperfeições – foi definida 10 anos atrás pelo Decreto nº 4.680/2003. Nos Estados Unidos, também um grande produtor de grãos geneticamente modificados, a hipótese de rotular ainda está em discussão.
CONTROLE DE AGROTÓXICOS
O fato de o Brasil ser um país de tradição agrícola, com enormes áreas de plantio, requer também um controle rígido dos agrotóxicos, o que depende não só de legislação, mas também de fiscalização.
Um passo importante foi dado no início dos anos 1990, quando o Ministério da Agricultura e Abastecimento (Mapa) – incumbido de incentivar a produção agrícola – deixou de ser o único responsável pela regulação dos agrotóxicos, passando a dividir a tarefa com os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. À época, a Lei nº 7.802, de 1989, mais conhecida como a Lei dos Agrotóxicos, representou um grande avanço.
Desde 2003, a Anvisa participa do controle do uso de agrotóxicos pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), que detecta o uso excessivo de produtos aprovados, bem como a aplicação de produtos proibidos, a partir de resíduos em alimentos in natura vendidos no comércio. Anualmente, são divulgadas as listas dos alimentos com maior quantidade de resíduos indesejados – o pimentão e o tomate têm marcado presença nessa lista –, confirmando que a lei ainda não é inteiramente seguida, principalmente por pequenos produtores. A agência também tem participação no registro de novos produtos.
Mas uma decisão recente da Casa Civil pode desviar novamente o curso dessa história. Sob forte pressão do setor produtivo, em novembro o governo resolveu rever a forma como os novos defensivos agrícolas são aprovados. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a criação de uma nova comissão técnica por medida provisória esvaziaria o poder da Anvisa, considerada pelos fabricantes como responsável pela demora nos registros.
Na avaliação do engenheiro agrônomo Guilherme Guimarães, gerente de regulamentação federal da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), entidade do setor de defensivos agrícolas, a legislação brasileira atual se compara às das mais importantes agências regulatórias do mundo no que se refere ao registro de novos produtos. Mas a lei de 1989 precisa ser atualizada, admite.
“A ciência avançou, a sociedade exigiu maiores controles, e é tempo de tornarmos nossa legislação mais ágil e criteriosa”, diz. Outra falha apontada por Guimarães é a demora do País em adotar a avaliação de risco prevista no Decreto nº 4.074, de 2002, que já aguarda implementação há 11 anos. Para Guimarães, a solução contra o uso de defensivos proibidos está em remover entraves burocráticos e principalmente retomar a extensão rural. “Em um país agrícola como o nosso, o governo precisa ajudar o agricultor a obter maiores colheitas com ferramentas legais”, diz.
Um dossiê sobre agrotóxicos preparado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em 2012 propõe que o governo priorize a implantação de uma política nacional de agroecologia, suspenda as isenções fiscais concedidas ao registro de agrotóxicos e estenda as análises para alimentos processados, entre outras recomendações[3]. Segundo Luis Madi e Raul Amaral, respectivamente diretor-geral e coordenador da plataforma de inovação tecnológica do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital) – que também completou 50 anos em 2013 –, a legislação busca sempre atender às demandas da sociedade em sua época.
No início do século XX, a preocupação era combater a desnutrição com alimentos fortificados com vitaminas e minerais. Hoje, temos não apenas de combater a obesidade, o diabetes e a hipertensão, como também atender ao consumidor “Loha” (lifestyle of health and sustainability, ou, em português, estilo de vida pautado em saúde e sustentabilidade), que entende saúde e bem-estar de forma mais ampla. “Sempre surgem novas demandas, e todos temos de nos adaptar”, diz Madi. “O processo é evolutivo.”
[:en]Mudanças na regulação mostram como a ciência, a tecnologia, os interesses econômicos e os da saúde pública disputam influência sobre o que comemos
Um dos principais objetivos dos empresários da indústria de alimentos, ao fundar, em outubro de 1963, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), era modernizar a legislação de alimentos, então considerada confusa. A partir daí, a entidade passou a participar intensamente da elaboração e atualização do emaranhado de portarias, resoluções e leis que definem que tipo de alimento será permitido na mesa dos brasileiros.
Na década de 1960, a legislação brasileira ainda nem havia se harmonizado com o Codex Alimentarius, o fórum internacional ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) que estabelece padrões para composição, perfil nutricional, higiene e rotulagem de alimentos com a finalidade de proteger a saúde dos consumidores e assegurar práticas equitativas no comércio.
Na virada do século, a regulação de alimentos no Brasil parecia ter deixado o atraso para trás: já harmonizada com o Codex e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), aberta a revisões e atualizações por meio de consultas públicas disponíveis na internet e conduzida em parte por uma agência governamental com estrutura administrativa própria – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada em 1999 pelo governo FHC. Mas, vista em perspectiva, essa evolução parece menos uma corrida acelerada para frente do que uma valsa, com passos em diversas direções e algumas pausas, dançada conforme a música dos avanços científicos e tecnológicos, de interesses econômicos e políticos e, claro, de limitações do sistema.
IDAS E VINDAS
Veja-se o caso da regulação do mercado de fórmulas infantis, que há décadas opõe fabricantes e defensores do aleitamento materno exclusivo. A Norma Brasileira para Comercialização de Alimentos para Lactentes (NBCAL), criada em 1988 e revista em 1992, representou um instrumento importante para promover o aleitamento e coibir práticas promocionais abusivas, que incluíam distribuição gratuita de “leite em pó” em maternidades.
Mas, por não ter força de lei nem conter normas claras para publicidade na internet, a NBCAL nunca foi inteiramente cumprida. “A norma é boa, mas não é coercitiva”, diz Rosana De Divitiis, coordenadora nacional da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan). A lei que resolveria esse problema existe desde 2006 (consulte aqui), mas ainda não foi regulamentada.
AFROUXAMENTO DA LEI
Entre as conquistas citadas no livro comemorativo dos 50 anos da Abia está a Resolução nº 12 da Comissão Nacional de Normas e Padrões para Alimentos (CNNPA), de 1978, um documento de mais de 100 páginas que definia padrões para diversos grupos de alimentos. Até os anos 2000, ele exigia, por exemplo, um mínimo de 32% de cacau nos chocolates, só deixava chamar de integral o pão feito com pelo menos 50% de farinha integral e proibia corantes em sopas desidratadas.
Após a virada do século a legislação foi desmembrada em resoluções específicas por grupo de alimento, e essas exigências foram afrouxadas. Hoje, pães podem ser chamados de integrais mesmo com predominância de farinha refinada e qualquer quantidade de fibra de trigo no lugar da farinha integral; o mínimo de cacau nos chocolates é 25% e há 33 corantes aprovados para uso em sopas, incluindo o artificial tartrazina, que pode causar alergia [1].
[1] Consulte as resoluções sobre farinhas, chocolates e sopas respectivamente aqui, aqui e aqui
A redução no teor mínimo de cacau nos chocolates foi solicitada pela indústria brasileira em 2004, por meio de consulta pública. Antonia Aquino, gerente de alimentos especiais da Anvisa, diz que o pedido foi atendido porque a redução já havia sido feita no Codex Alimentarius. “Foi entendido que 25% de cacau era suficiente para não descaracterizar o produto. Mas hoje temos chocolates com 70%, 80% de cacau.” Além disso, completa, o foco da agência são as questões sanitárias e de saúde.
Na visão de Antonia, que está na Anvisa desde sua fundação, uma das maiores realizações da agência foi a obrigatoriedade da rotulagem nutricional para todos os alimentos embalados, em 2003. Seria a partir dela que o consumidor poderia escolher alimentos mais saudáveis e limitar o consumo de produtos com excesso de sal, açúcar e gordura, conforme a recomendação da OMS. Mas, em uma pesquisa divulgada em agosto, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) consultou 807 mulheres [2], e 40% manifestaram dificuldade em entender a tabela de nutrientes.
Assim como organizações europeias, o Idec defende que os rótulos avisem de forma mais explícita, usando as cores do semáforo, se os teores desses nutrientes nos alimentos são saudáveis ou excessivos. “Nesse tema ainda nem saímos do estágio da discussão”, lamenta Carlos Thadeu, gerente técnico do Idec.
[2] A consulta foi feita com mulheres pelo fato de ainda serem as principais responsáveis pela compra de alimentos para o domicílio
INGREDIENTES VS. NUTRIENTES
Será que uma alimentação saudável diz mais respeito aos nutrientes do que aos ingredientes? Desde 2008, a Abia tem firmado acordos com o Ministério da Saúde para reduzir os teores de gordura trans, sódio e açúcar nos alimentos industrializados. A primeira meta era limitar as gorduras hidrogenadas a 2% do total de gorduras por alimento até 2010. A Abia informa ter logrado remover 230 mil toneladas de gordura trans do mercado na primeira fase do acordo, por meio da substituição da hidrogenação por outro processo de solidificação de óleos vegetais. Isso não significa que o problema esteja resolvido.
Para o consumidor, a informação que chega é ambígua. A embalagem de produtos com gordura vegetal hidrogenada na lista de ingredientes pode trazer a alegação “zero gordura trans”, se a tabela nutricional informar um valor menor que 0,02 grama de gordura trans por porção. Ou seja, a transparência na rotulagem depende do tamanho da porção sugerida na tabela. E, para aquecer a discussão, no início de novembro a agência americana de alimentos e remédios (FDA) pôs em consulta pública a proposta de banir completamente a gordura trans dos alimentos industrializados, decisão tomada uma década atrás pela Dinamarca.
Está em curso agora o acordo para eliminar 28 mil toneladas de sódio até 2020. A redução do açúcar tem início previsto para 2014. Como a declaração da quantidade de açúcar nos rótulos não é obrigatória – outra crítica à rotulagem vigente – , por enquanto o consumidor não tem muitos meios de escolher os produtos adoçados com pouco açúcar. (Mais sobre a importância desses ingredientes para a indústria de alimentos em “Mercado viciado em junk food“)
O alarde gira em torno do que será eliminado, com menos holofotes sobre o que será colocado no lugar. Com liberdade limitada para criar sabores e texturas irresistíveis com gordura, sal e açúcar, a indústria terá de lançar mão de formulações alternativas, e não será surpresa se isso significar um aumento no uso de aditivos como espessantes, estabilizantes, aromatizantes e corantes.
Nos últimos 50 anos, a resistência ao uso de aditivos nos alimentos também se flexibilizou, ao sabor das inovações e da competitividade. O Decreto nº 55.871, de 1965, tolerava o uso de aditivo que fosse “indispensável à adequada tecnologia de fabricação” e não mais que três corantes por produto.
Hoje não é difícil encontrar produtos em que os aditivos ocupam mais espaço que os alimentos na lista de ingredientes. Segundo Antonia, da Anvisa, a aprovação de aditivos segue dois critérios: necessidade e segurança. A segurança é atestada pelo Comitê de Especialistas em Aditivos Alimentares da FAO/OMS, e a necessidade é apresentada pelo fabricante, mais ou menos como aconteceu no caso do chocolate. Na prática, as inovações são bem-vindas, até que se prove o contrário.
“A cor é o segundo quesito mais importante na aceitação (dos produtos) pelo consumidor”, diz o químico Daniel Bonadia, da brasileira Corantec Corantes Naturais. Ele diz que, no Brasil, embora a legislação já tenha banido muitos corantes artificiais, os fabricantes ainda burlam regras, e os consumidores nem sempre percebem enganações. Aqui até macarrão tem corante, assegura. Na Europa, segundo Bonadia, os fabricantes estão se antecipando à regulação e preferindo evitar corantes artificiais para não assustar os consumidores, ditos mais atentos e exigentes que os brasileiros. Ainda assim, ressalva: “Não é porque é natural que é inócuo”.
Que o digam os alérgicos. Naturais ou processados, a proteína do leite, derivados de soja, ovo, trigo, amendoim e crustáceos não declarados nos rótulos podem significar muito mal-estar para quem nasceu com alergia a algum desses alimentos, mesmo em quantidades mínimas.
Mãe de uma criança alérgica, a advogada Maria Cecília Cury fez doutorado sobre o tema e descobriu que em países como Austrália, Estados Unidos e Japão já é obrigatório avisar a presença de traços desses alimentos nas embalagens, assim como aqui é obrigatório declarar o glúten e o corante tartrazina. Mas os alérgicos brasileiros ainda dependem de consultas aos serviços de atendimento ao consumidor e trocas de informações entre eles para evitar transtornos.
Na falta de estudos brasileiros que justifiquem medidas antecipadas, o Brasil, em alguns casos, aguarda que órgãos internacionais tomem a decisão primeiro. Mas há casos em que o País não espera muito. A rotulagem obrigatória de alimentos transgênicos – com todas as suas imperfeições – foi definida 10 anos atrás pelo Decreto nº 4.680/2003. Nos Estados Unidos, também um grande produtor de grãos geneticamente modificados, a hipótese de rotular ainda está em discussão.
CONTROLE DE AGROTÓXICOS
O fato de o Brasil ser um país de tradição agrícola, com enormes áreas de plantio, requer também um controle rígido dos agrotóxicos, o que depende não só de legislação, mas também de fiscalização.
Um passo importante foi dado no início dos anos 1990, quando o Ministério da Agricultura e Abastecimento (Mapa) – incumbido de incentivar a produção agrícola – deixou de ser o único responsável pela regulação dos agrotóxicos, passando a dividir a tarefa com os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. À época, a Lei nº 7.802, de 1989, mais conhecida como a Lei dos Agrotóxicos, representou um grande avanço.
Desde 2003, a Anvisa participa do controle do uso de agrotóxicos pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), que detecta o uso excessivo de produtos aprovados, bem como a aplicação de produtos proibidos, a partir de resíduos em alimentos in natura vendidos no comércio. Anualmente, são divulgadas as listas dos alimentos com maior quantidade de resíduos indesejados – o pimentão e o tomate têm marcado presença nessa lista –, confirmando que a lei ainda não é inteiramente seguida, principalmente por pequenos produtores. A agência também tem participação no registro de novos produtos.
Mas uma decisão recente da Casa Civil pode desviar novamente o curso dessa história. Sob forte pressão do setor produtivo, em novembro o governo resolveu rever a forma como os novos defensivos agrícolas são aprovados. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a criação de uma nova comissão técnica por medida provisória esvaziaria o poder da Anvisa, considerada pelos fabricantes como responsável pela demora nos registros.
Na avaliação do engenheiro agrônomo Guilherme Guimarães, gerente de regulamentação federal da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), entidade do setor de defensivos agrícolas, a legislação brasileira atual se compara às das mais importantes agências regulatórias do mundo no que se refere ao registro de novos produtos. Mas a lei de 1989 precisa ser atualizada, admite.
“A ciência avançou, a sociedade exigiu maiores controles, e é tempo de tornarmos nossa legislação mais ágil e criteriosa”, diz. Outra falha apontada por Guimarães é a demora do País em adotar a avaliação de risco prevista no Decreto nº 4.074, de 2002, que já aguarda implementação há 11 anos. Para Guimarães, a solução contra o uso de defensivos proibidos está em remover entraves burocráticos e principalmente retomar a extensão rural. “Em um país agrícola como o nosso, o governo precisa ajudar o agricultor a obter maiores colheitas com ferramentas legais”, diz.
Um dossiê sobre agrotóxicos preparado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em 2012 propõe que o governo priorize a implantação de uma política nacional de agroecologia, suspenda as isenções fiscais concedidas ao registro de agrotóxicos e estenda as análises para alimentos processados, entre outras recomendações[3]. Segundo Luis Madi e Raul Amaral, respectivamente diretor-geral e coordenador da plataforma de inovação tecnológica do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital) – que também completou 50 anos em 2013 –, a legislação busca sempre atender às demandas da sociedade em sua época.
No início do século XX, a preocupação era combater a desnutrição com alimentos fortificados com vitaminas e minerais. Hoje, temos não apenas de combater a obesidade, o diabetes e a hipertensão, como também atender ao consumidor “Loha” (lifestyle of health and sustainability, ou, em português, estilo de vida pautado em saúde e sustentabilidade), que entende saúde e bem-estar de forma mais ampla. “Sempre surgem novas demandas, e todos temos de nos adaptar”, diz Madi. “O processo é evolutivo.”