Transformados em objetos de consumo, os pets são os animais menos sujeitos a regras de bem-estar animal
Terapeutas, resorts, sapatinhos, esteiras, coleiras com câmeras acopladas [1]– o mercado voltado para pets cresce e explora cada dia mais a afeição que nós, humanos, temos por animais de estimação. Mas o que aparece como estima – tantas vezes exagerada – reflete um problema: a transformação dos bichos de estimação em objetos da nossa sociedade de consumo.
[1] Disparam automaticamente e são usadas tanto em cães de guarda, como instrumento a mais de monitoramento para o dono, quanto por quem quer imagens do mundo visto pelos bichos
Os números falam por si: pets foram responsáveis por gastos de mais de R$ 15 bilhões no Brasil no ano passado. Enquanto somos o segundo país que mais gasta com eles (somente atrás dos Estados Unidos), de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), o número de bichos abandonados é estimado em 35 milhões, relatou um artigo publicado no fim de 2013 na Revista Bioética – 10 milhões de gatos e 25 milhões de cães [2]. “Infelizmente, os animais tornaram-se objeto de consumo, é só a gente ver a quantidade de animais nas ruas e o número que vai para adoção”, diz Gelson Genaro, professor de Etologia e Fisiologia Animal da USP em Ribeirão Preto.
[2] O artigo “Representação social acerca dos animais e bioética de proteção: subsídios à construção da educação humanitária” avalia como as crianças veem os animais e que valor dão a eles. De forma geral, cães e gatos são a referência ética, fundamentada nos vínculos afetivos desenvolvidos no cotidiano, enquanto outras espécies são vistas como menos importantes. Disponível aqui.
Um indício de que os animais entraram na lista de objetos de desejo é o modismo de raças: o pequinês e o dobermann, cultuados há 10, 20 anos, deram lugar a pug, lhasa e shih-tzu. Hoje, até mesmo espécies exóticas como iguanas compõem o nicho dos novos pets. “Se você frequentar pet shops, verá que há animais que hoje são opção e amanhã não são mais. Os criadores percebem isso, vão aposentando as matrizes [3] e investem em outras que estão se tornando tendência”, diz Genaro.
[3] São as fêmeas usadas como reprodutoras por terem as características desejadas
Diferentemente da criação para consumo alimentar, como a de gado e aves, em que há algumas regras para o bem-estar do bicho e cruzamentos em busca de mais saúde, a de animais de estimação é balizada apenas pela lei de oferta e demanda. “O mercado controla e os criadores produzem o que se quiser comprar, o que comanda é a moda”, diz Greger Larson, biólogo da Universidade de Durham, na Inglaterra, que estuda a origem genética de animais domésticos.
A criação com fins estéticos tem levado ao aumento de doenças. O cruzamento entre parentes próximos para reforçar um traço estético desejado, muito comum na reprodução de cães, reduz a diversidade e torna os filhotes mais suscetíveis a sofrer doenças genéticas [4]. Nos cavalos e gatos, porém, as doenças genéticas não são tão comuns, visto que a seleção genética é mais voltada para obter animais com melhor saúde em detrimento do apelo estético.
[4] O documentário Pedigree Dogs Exposed, da BBC, mostra como o cruzamento exagerado em busca da melhoria estética dos cães tem levado ao aumento de doenças típicas em cada raça. O golden retriever, por exemplo, apresenta incidência elevada de câncer, enquanto o labrador desenvolve problemas em juntas e orelhas
A “construção” de raças tem a ver com a utilidade que os humanos historicamente buscam nos animais e foi desenvolvida em uma longa convivência – de 15 mil anos com os cachorros e 9 mil anos com os gatos. Começou com uma domesticação conhecida como comensal, quando deixamos de ser nômades e os bichos menos medrosos passaram a se alimentar do nosso lixo. Vimos, então, que alguns eram mais aptos para determinadas atividades e fizemos uma seleção por função – uns para caça, outros para companhia. Para ressaltar as características de cada grupo, fomos definindo raças por meio de cruzamentos controlados.
Animais como hamsters e coelhos tiveram uma domesticação direta, saindo da vida selvagem sem rodeios. Já o gado bovino, as ovelhas e as lhamas foram da caça à criação. Nos três caminhos para a vida doméstica, o destino é o mesmo, segundo estudos da área da genética animal: passamos a controlar a reprodução dos animais.
Entretanto, agora, uma agenda de preocupação com esses seres começa a se firmar no meio acadêmico.
Centrados nos animais de produção e laboratório, os estudos sobre o bem-estar dos bichos buscam as condições mínimas adequadas do ambiente que criamos para eles. As condições que damos aos pets ainda permanecem à margem dessas pesquisas.