Recompensem o trabalho e não a riqueza é a mensagem da Oxfam em estudo lançado sobre desigualdade – que afeta sobretudo as mulheres em todo o mundo
Quem ganha 1 salário mínimo no Brasil precisaria trabalhar 19 anos para obter o mesmo que uma pessoa do grupo do 0,1% mais rico da população ganha em um mês. No exterior, o diretor executivo de uma das cinco maiores empresas do setor de vestuário ganha, em pouco mais de 4 dias, o mesmo que uma trabalhadora comum de Bangladesh levaria a vida inteira para conquistar. Uma série de casos como esses ilustram contundente relatório sobre desigualdade que a organização Oxfam publica hoje e conclama já em seu título: Recompensem o Trabalho, Não a Riqueza.
Divulgada às vésperas do Fórum Econômico Mundial, a mensagem é direta aos privilegiados. Pudera: os bilionários do mundo viram sua riqueza aumentar 11% ao ano desde 2010, enquanto os salários aumentaram, em média, 2% a cada ano. A maior parte da renda dos mais ricos vem de retornos sobre suas fortunas e não de seu trabalho. A publicação leva a concluir que, em muitos casos, a riqueza de um punhado de gente justamente se alimenta da exploração social da grande massa.
Apenas 1% da população detém 82% da riqueza do que todo o restante da humanidade. O ano passado registrou o maior aumento no número de bilionários da História, com o surgimento de mais um ricaço a cada dois dias. Em 12 meses, a riqueza dessa tropa de elite aumentou em US$ 762 bilhões – o que seria suficiente para acabar mais de sete vezes com a pobreza extrema.
A questão de gênero fala alto
Segundo os autores, as fortunas dos mais ricos são alimentadas pela sonegação fiscal, baixos salários pagos aos seus trabalhadores, precarização das condições de trabalho e perda de direitos trabalhistas. O estudo também enfatiza que a desigualdade econômica e a de gênero estão estreitamente relacionadas, devido à exploração das mulheres – em especial as não-brancas. Além disso, trabalhadoras imigrantes podem ser encontradas nos piores empregos na maioria das sociedades, recebendo os salários mais baixos e sem mecanismos adequados de proteção social.
Embora a diferença nos salários entre os gêneros venha caindo em alguns países, o ritmo é lento. Em todo o mundo, mais homens do que mulheres são proprietários de terras, ações de empresas e outros bens de capital, ou seja, detém riquezas que geram riquezas e perpetuam a desigualdade.
Segundo o Fórum Econômico Mundial, sem acelerar mudanças, não será possível eliminar a lacuna econômica global entre mulheres e homens em termos de trabalho – diferenças salariais e de oportunidades de emprego – nos próximos 217 anos.
Entre os trabalhadores, os homens recebem mais para desempenhar as mesmas funções que as mulheres e ocupam vagas de maior remuneração e status social. Globalmente, a participação das mulheres na força de trabalho formal é 26% mais baixa que a dos homens e a diferença salarial média entre os gêneros é de 23%.
“Não é por acaso que o número de mulheres que ocupam muitos dos empregos mais mal pagos e menos seguros é expressivamente superior que o registrado para os homens. Em todo o mundo, normas, atitudes e crenças sociais desvalorizam o status e as habilidades das mulheres, justificam a violência e a discriminação de que são vítimas e definem os empregos que elas podem – ou não – ocupar”, escrevem os autores.
Considerando o patrimônio dólares, atualmente há 2.043 bilionários em todo o mundo, sendo que nove entre dez são homens. Enquanto as fortunas dos bilionários aumentaram US$ 762 bilhões em um ano, as mulheres contribuem anualmente com US$ 10 trilhões executando tarefas não remuneradas para sustentar a economia global, tais como serviços domésticos prestados para a família e cuidado com crianças, doentes e idosos.
A noção de que as mulheres não são o principal ganha-pão das suas famílias pode fazer com que sejam percebidas como mais indicadas para empregos temporários, de meio período ou informais. Elas também são vistas como mais fáceis de serem intimidadas. Com isso, a probabilidade de sofrerem violência e de serem exploradas no trabalho, no lar e nas suas comunidades é maior.
Um documento de 2015 do Banco Asiático de Desenvolvimento demonstra a generalização de estereótipos que afetam as mulheres na força de trabalho, citando a sua “destreza manual” e a ideia de que são preferíveis aos homens por serem “menos propensas a fazer greve ou interromper a produção”. Em muitos casos, isso decorre de barreiras sociais ou jurídicas que não permitem que mulheres se sindicalizem ou assumam funções de liderança em sindicatos, dominados por homens. De modo geral, a legislação também não está do lado das mulheres, que têm menos direitos econômicos que os homens em 155 países.
Fora isso, a desigualdade de gênero acentuou-se com o aumento da terceirização promovida por estratégias econômicas que priorizam o trabalho barato e precário, na maioria das vezes realizado por mulheres. Países com grandes setores voltados para a exportação tiram proveito de uma força de trabalho grande, pouco qualificada e sem voz.
O estudo pinça a história de Forida, 22 anos, costureira em Dhaka, Bangladesh. Ela trabalha em uma confecção que abastece marcas globais como H&M e Target Austrália. Forida, que começou a trabalhar em fábricas de roupas quando tinha 15 anos, a cada dia precisa cumprir uma meta diferente antes de poder voltar para casa. Como é impossível cumprir as metas no expediente normal, das 8 às 17 horas, faz várias horas e sua jornada de trabalho acaba sendo de 12 horas.
“No ano passado, trabalhei o mês inteiro até a meia-noite. Tivemos de manter uma produção constante, então fomos obrigadas a trabalhar em um ritmo intenso. Eu ficava doente o tempo todo e preocupada com meu filho. Ao sair do trabalho, ainda precisava arrumar a casa, cozinhar e estar de volta na manhã seguinte no mesmo horário. Ia dormir às 2 da manhã e acordava às 5 e meia diariamente”, contou aos pesquisadores.
O salário de Forida é tão baixo que, mesmo com as horas extras, sua renda combinada com a de seu marido não é suficiente para alimentar toda a família adequadamente. Na melhor das hipóteses, só conseguem comprar verduras e frango em uma quantidade que dura apenas metade do mês . Na outra metade, consome arroz aguado com pimenta e sal. “Se nos pagassem um pouco mais, eu poderia mandar o meu filho para a escola. Assim, poderíamos ser felizes e ter uma vida melhor”. (Fonte: What She makes: Power and poverty in the fashion industry)
Ainda segundo o relatório, mulheres jovens em países como Mianmar ganham apenas US$ 4 por dia trabalhando em jornadas de 14 horas em condições perigosas, sem poder ir ao banheiro, costurando peças de roupa para exportação. O custo anual para elevar o valor médio recebido pelos 2,5 milhões de trabalhadores do setor de vestuário do Vietnã a um salário digno seria de US$ 2,2 bilhões. Essa cifra corresponde a um terço do valor que os cinco maiores varejistas de moda distribuíram aos seus acionistas em 2016.
“O setor de vestuário gera enormes lucros para proprietários e acionistas, alguns dos quais figuram entre as pessoas mais ricas do planeta. Em 2016, por exemplo, os dividendos anuais distribuídos pela empresa controladora da rede de moda Zara ao quarto homem mais rico do mundo, Amancio Ortega, somaram aproximadamente 1,3 bilhão de euros. Stefan Persson, cujo pai fundou a H&M e cujo filho administra a empresa, ocupa a 43ª posição na lista Forbes das pessoas mais ricas do mundo e recebeu 658 milhões de euros em dividendos no ano passado. No total, os cinco maiores varejistas de moda distribuíram um espantoso montante de US$ 6,9 bilhões aos seus acionistas em 2016.” (Mais sobre a indústria da moda nesta edição de P22_ON.)
Sonegação fiscal
O Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia do Parlamento Europeu também identificou que a Zara evitou o pagamento de impostos entre 2011 e 2014. A evasão fiscal, seja individualmente, seja por meio das empresas das quais são titulares ou acionistas, é apontada no relatório como um dos fatores da concentração de riqueza.
“Usando uma rede global de paraísos fiscais, como revelado nas operações Panamá Papers e Paradise Papers, os super-ricos estão escondendo pelo menos US$ 7,6 trilhões das autoridades fiscais”, escrevem os autores.
Segundo eles, uma nova análise do economista Gabriel Zucman feita para o documento mostra que o grupo 1% mais rico vem sonegando cerca de US$ 200 bilhões em impostos. Empresas estão deixando de recolher outros US$ 500 bilhões. E que os países em desenvolvimento estão perdendo pelo menos US$ 170 bilhões por ano em impostos não pagos por empresas e super-ricos.
Razões de sobra
Como se o apelo moral de um mundo mais justo não fosse motivo suficiente para convencer as pessoas a combater a disparidade socioeconômica, o relatório lista razões pelas quais devemos nos importar com isso.
Uma delas é que a desigualdade afeta o desempenho econômico, por estar associada a níveis mais altos de terrorismo, instabilidade política e criminalidade, e a níveis mais baixos de confiança. Para isso, cita pesquisa do Fundo Monetário Internacional (FMI), revelando que níveis elevados de desigualdade reduzem a probabilidade de um país sustentar o crescimento econômico no longo prazo e que a redistribuição da renda é altamente benéfica para o crescimento.
Embora a desigualdade global esteja em baixa em decorrência do crescimento econômico registrado na América Latina, na China e em outros países asiáticos populosos, a disparidade dentro da maioria dos países está em alta. “A desigualdade pode ser medida em nível global, nacional ou mesmo subnacional. Ou seja, é possível medir a desigualdade entre todas as pessoas do nosso planeta ou entre os cidadãos de um país e subgrupos menores. É importante medir a desigualdade global, mas a desigualdade nacional (e, em alguns casos, subnacional) é a que importa para a maioria dos cidadãos e é sobre ela que as ações dos formuladores de políticas têm o maior impacto”, esclarecem os pesquisadores.
Abaixo, seguem algumas propostas da Oxfam para o combate à desigualdade.
Para governos e instituições internacionais:
- Estabelecer metas e planos de ação concretos e com prazos definidos. Os governos devem trabalhar no sentido de que a renda coletiva dos 10% mais ricos não seja maior que a dos 40% mais pobres. Os governos devem acordar que usarão essa medida como o indicador atualizado do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 10 de redução da desigualdade.
- Pôr fim à riqueza extrema, para acabar também com a pobreza extrema. Os governos devem usar a regulação e a tributação para reduzir radicalmente os níveis atuais de riqueza extrema e limitar a influência de indivíduos e grupos ricos na formulação de políticas.
- Trabalhar em conjunto para promover uma revolução nos dados sobre desigualdade. Todos os países devem se empenhar em produzir, anualmente, dados sobre a riqueza e a renda de todas as pessoas da sociedade, em especial dos 10% e do 1% mais ricos. Além de financiar mais pesquisas domiciliares, outras fontes de dados devem ser publicadas para lançar luz sobre o tema da renda e da concentração de riqueza nas mãos dos mais ricos.
- Implementar políticas concebidas para combater todas as formas de discriminação de gênero, promover normas sociais e atitudes positivas em relação às mulheres e ao seu trabalho e equilibrar a dinâmica de poder nos níveis domiciliar, local, nacional e internacional.
- Reconhecer e proteger os direitos dos cidadãos e de suas organizações à liberdade de expressão e de associação. Reverter todas as leis e ações que tenham fechado espaço para os cidadãos. Apoiar especificamente organizações que defendem os direitos das mulheres e de outros grupos excluídos.
Para estimular uma economia mais justa:
- Incentivar modelos de negócios que priorizem retornos mais justos, inclusive modelos de cooperativas e de participação de empregados na governança de empresas e nas cadeias de abastecimento.
- Exigir que todas as multinacionais realizem auditorias obrigatórias em toda a sua cadeia de abastecimento para garantir que os trabalhadores recebam um salário digno, de acordo com os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos.
- Limitar retornos para acionistas e promover um coeficiente de remuneração para altos executivos de empresas que seja no máximo 20 vezes superior ao salário médio de seus empregados, preferivelmente até mais baixos.
- Eliminar diferenças salariais entre homens e mulheres e garantir que os direitos das mulheres trabalhadoras sejam plenamente usufruídos em toda a economia. Revogar leis que discriminam a igualdade econômica das mulheres e implementar leis e marcos regulatórios que apoiem os direitos das mulheres.
- Eliminar o trabalho escravo e os salários miseráveis. Promover uma transição dos níveis de salário mínimo para “salários dignos” para todos os trabalhadores, com base em evidências sobre o custo de vida e com o pleno envolvimento de sindicatos e outros parceiros sociais.
- Promover a organização dos trabalhadores. Definir normas legais que protejam os direitos de sindicalização e de greve dos trabalhadores, revogando todas as leis que contrariem esses direitos. Permitir e apoiar acordos de negociação coletiva com ampla cobertura.
- Eliminar o trabalho precário e garantir que todas as novas formas de emprego respeitem os direitos dos trabalhadores. Garantir os direitos de trabalhadores domésticos, trabalhadores migrantes e trabalhadores informais. Formalizar progressivamente a economia informal e garantir proteção a todos os trabalhadores.