Vinte e cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988, não apenas os direitos indígenas carecem de efetivação. Saiba como as comunidades quilombolas e seus apoiadores têm se organizado para fazer frente aos ataques a seus direitos coletivos
Na primeira semana de outubro, diversas cidades brasileiras, como São Paulo e Brasília, viram tomar corpo passeatas capitaneadas por alguns dos mais de 240 povos indígenas que vivem no País. O fato quase desconhecido pela opinião pública é que a Mobilização Nacional Indígena também foi fortalecida por outras populações tradicionais, como as comunidades quilombolas[1].
Benedito Alves da Silva, o Ditão, conhecida liderança do quilombo de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, é um dos 300 quilombolas que lotaram mais de três ônibus para ir ao encontro dos Guarani Mbyá e Ñandeva. Juntos, eles compuseram a massa de pessoas que, caminhando da Avenida Paulista ao Parque do Ibirapuera, tomaram o Monumento às Bandeiras, na capital paulista.
A mobilização foi motivada pela defesa dos direitos constitucionais de povos indígenas e populações tradicionais[2], como os quilombolas, diante de uma série de iniciativas no Congresso Nacional. Estas visam alterar os procedimentos de demarcação de terras indígenas e de reconhecimento de territórios remanescentes de quilombo, como o Projeto de Lei Complementar nº 227/2012 e a Proposta de Emenda à Constituição nº 215/2000. (Leia mais sobre os projetos em “Sem apito, sem terra, sem voz“.)
[1] Os remanescentes de quilombo são grupos étnico-raciais de ancestralidade negra e trajetória histórica própria, relacionada com a resistência à escravidão. Eles têm assegurado, pela Constituição de 1988, o direito à propriedade definitiva sobre as terras que ocupam
[2] Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais. Possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (Definição usada no Decreto Federal nº 6.040/2000, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais)
Convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Mobilização Nacional Indígena foi apoiada por inúmeras organizações da sociedade civil, incluindo a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq). Na região da Mata Atlântica, conta Ditão, os territórios remanescentes de quilombo e as terras indígenas enfrentam ameaças parecidas, que incluem projetos hidrelétricos e de mineração, mas o que parece o maior fator de união é a luta pela efetivação de seus direitos territoriais: “As políticas atuais não estão sendo favoráveis a esses dois segmentos da sociedade nacional”, diz.
Mas a união de quilombolas e indígenas por essa pauta não foi exclusividade da mobilização em São Paulo: na região do Rio Trombetas, norte do Pará, os Kaxuyana e os Tunayana juntaram-se às comunidades quilombolas em um ato contra a morosidade dos processos de reconhecimento territorial e contra as iniciativas de mineração nas terras quilombolas Alto Trombetas e Jamari/Último Quilombo/Moua. No dia 2 de outubro, com o apoio de ONGs indigenistas, eles lançaram a campanha “Índios e quilombolas de Oriximiná juntos na defesa dos direitos territoriais” [3].
[3] A campanha pode ser apoiada aqui
O coordenador nacional da Conaq, Denildo Rodrigues, o Bico, concorda que o contexto é desfavorável: “A gente sabe que quem está no olho do furacão agora são quilombolas e indígenas. Em São Paulo, a gente já vinha fazendo uma pauta conjunta. E aí essa pauta de outubro foi integrada nacionalmente”.
Publicada em 30 de setembro, a “Carta dos Quilombolas à Sociedade Brasileira”, assinada pela Conaq, quer lembrar que o País também é terra quilombola. Bico reitera: “Hoje, no Brasil, temos mais de 5 mil comunidades quilombolas. Onde existiu escravatura, existiu a resistência”.
Às vésperas do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), tanto Ditão quanto Bico avaliam que há pouco a comemorar. “Nós estamos bastante pessimistas. O que estamos fortalecendo é a nossa luta, para brigar contra esse sistema. A nossa luta tem melhorado cada vez mais”, nota Ditão, lembrando que a própria história do povo negro brasileiro, especialmente dos quilombolas, é amplamente desconhecida.
SER QUILOMBOLA
Se hoje as principais demandas das comunidades quilombolas estão centradas no reconhecimento de seus territórios, isso não significa que as questões que as envolvem se resumam a esse tema.
O próprio direito à terra, no caso quilombola, é mediado pelo critério da autoatribuição, outro dos direitos conquistados pelo movimento e reiterado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Oficialmente definidos como remanescentes de comunidades de quilombo, os herdeiros de Zumbi dos Palmares não representam “sobras” dos coletivos que foram escravizados no passado, mas grupos que, tendo em vista essa ancestralidade, querem garantir a continuidade de modos de vida culturalmente diferenciados, seja no ambiente rural, seja no urbano.
No Brasil é possível observar historicamente uma diversidade nas formas de organização dos quilombos, constituídos não apenas por descendentes de escravos fugitivos – como no caso de Palmares.
Já em 1850, com a Lei de Terras, por exemplo, havia registros de terras de uso comum por comunidades negras, como “terras de santo” e “terras de preto”.
Rebeca Campos Ferreira, pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (Nadir/USP), observa que existe uma contradição no fato de que, para ter acesso a determinados direitos sociais ou mesmo ao reconhecimento territorial, as comunidades tenham de receber uma certidão emitida por um ente público garantindo que são quilombolas. Para ser reconhecida, a comunidade precisa se autodeterminar, constituir uma associação e encaminhar uma ata da associação à Fundação Cultural Palmares pleiteando a certificação.
Por conta disso, apesar de a Conaq contabilizar a existência de pelo menos 5 mil comunidades, a Fundação Cultural Palmares (FCP) certificou apenas 2.278 até agosto de 2013 [4]. Assim, “quilombola” aparece como uma categoria a que tais comunidades precisam se adequar para ser reconhecidas como sujeitos de direito diante do Estado.
[4] Conheça os dados de comunidades certificadas por estado pela FCP no site
O IMPASSE DAS TITULAÇÕES
Em novembro deste ano, comemoram-se dez anos da instituição da normativa que regula os procedimentos de identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos: o Decreto nº 4.887/2003.
Bico, da Conaq, analisa: “O Decreto 4.887 é uma vitória para nós. Mas essa conquista não basta, se não houver vontade política. O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem mais de 20 processos nas mãos dele e não assina; tem de parar de deixar que interesses econômicos se sobreponham aos direitos das comunidades”.
Segundo informações disponibilizadas no site do Incra, há 1.264 processos de demarcação em aberto, dos quais, até o momento, apenas 139 chegaram ao estágio final: o título da terra. Dessa forma, 207 comunidades receberam os títulos de posse de suas terras até o momento – porque um mesmo título pode ser expedido para mais de uma comunidade.
Assim como nos conhecidos casos de terras indígenas, parece haver gargalos em todas as etapas do processo e, mesmo com a sua finalização, o reconhecimento oficial não garante que os conflitos fundiários cessem. Segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil 2012, editado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), os assassinatos de quilombolas representaram 12% do total de mortes ocasionadas por conflitos fundiários em 2012.
Rebeca lembra que alguns dos entraves à titulação das terras quilombolas tem origem no próprio governo federal. “Em diversas situações, órgãos do governo apresentam resistência à regularização das áreas quilombolas. Podemos citar (o caso de) Marambaia (RJ), onde uma disputa é travada com a Marinha; de Alcântara, no Maranhão, em que a Aeronáutica está implicada; e os processos envolvendo a sobreposição de terras quilombolas e unidades de conservação, nas quais a resistência parte dos órgãos ambientais, como o caso de Cambury, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, e muitas das comunidades do Vale do Ribeira, também em São Paulo”, enumera.
A pesquisadora destaca ainda a existência de diversas comunidades desterritorializadas – fora de seu território original –, como o Quilombo de Porcinos, na cidade de Agudos (SP), em que a comunidade foi expulsa por uma ação de reintegração de posse.
De fato, as comunidades quilombolas enfrentam muitos obstáculos para efetivar o acesso pleno ao direito à terra, especialmente porque, além das titulações, as desapropriações das propriedades incidentes em terras quilombolas seguem lentamente. Segundo a pesquisadora, “embora tenham sido decretadas pelo governo federal, não há reais condições para dar eficácia a essas desapropriações”.
Para piorar a situação, o decreto de 2003 é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Adin nº 3.239, ajuizada pelo então PFL, o hoje Democratas (DEM), no Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2004, seis meses após a publicação do decreto. O DEM contesta na Adin, entre outros pontos, o poder do Incra para desapropriar terras particulares sobrepostas a territórios quilombolas e o direito à autodeterminação das comunidades. Tendo ido a julgamento em abril de 2012, a Adin obteve até agora apenas o voto do relator, o ministro César Peluso, a favor da inconstitucionalidade.
Rebeca explica: “Há um ano e meio o julgamento encontra-se suspenso e o voto de Peluso é o que vale. Enquanto a Adin não voltar à pauta e continuarmos nessa situação de suspensão, que já dura um ano e meio, as titulações, que já caminhavam a passos lentos (ou não caminhavam), dificilmente vão deslanchar”.
Para a pesquisadora, o julgamento da Adin nº 3.239 gerou insegurança jurídica sobre os processos de reconhecimento de comunidades quilombolas. “Como não se sabe se é constitucional ou não, visto que aguarda a retomada do julgamento pelo STF, é melhor não arriscar. Nessa espera, os conflitos e a violência se intensificam, e as comunidades padecem”, diz.
A esperança do movimento quilombola reside agora em outro julgamento, este no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4), no caso da Comunidade Quilombola de Invernada Paiol de Telha, do Paraná [5]. Acredita-se que uma decisão favorável à comunidade, considerando-se improcedente a arguição de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, poderia influenciar o julgamento da Adin nº 3.239, levando o STF a rejeitar o argumento do DEM.
No entanto, segundo Bico, da Conaq, nada está garantido: “A gente tem muito medo. A gente sabe que hoje em dia quem está nos tribunais não são as famílias de baixa renda. No caso de Paiol de Telha, foi dado o parecer favorável à comunidade quilombola e, depois, a Justiça voltou para trás”.
[5] Há uma petição pública em favor da comunidade
DIREITOS EM SUSPENSO, SOLUÇÕES CONCRETAS
O governo tem tentado esboçar respostas a esse quadro de difícil solução. Segundo o diagnóstico apresentado pelo Programa Brasil Quilombola, em agosto de 2012, os avanços mais significativos na política de regularização fundiária ocorreram no período de 2003 a 2010 – propiciados pela criação do programa em âmbito federal em 2004, pela implantação de normativas para a desintrusão das terras e pela inclusão de dotações específicas para a regularização fundiária de áreas quilombolas no Plano Plurianual 2004-2007, entre outros.
Elaborado sob responsabilidade da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o relatório registra: “Por se tratar de uma política relativamente nova, a qualificação das demandas tem provocado a necessidade de adaptações (legais, orçamentária, financeira e operacional), para sua melhor execução”. Ainda assim, o diagnóstico reconhece que isso não é o suficiente para dar conta das demandas de regularização das comunidades.
Na opinião de Nilto Tatto, coordenador do Programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA), diferentemente da problemática indígena – em que houve avanços na Amazônia Legal e o desafio maior atualmente localiza-se no Sudeste e Nordeste – no caso das terras quilombolas a necessidade de desapropriação demanda um grande volume de recursos para regularizar plenamente os territórios – para além de haver vontade política. “Nesse sentido, ela não é distinta da dificuldade de fazer a reforma agrária”, compara.
No caso das terras indígenas (TIs), a legislação prevê que a população não indígena seja indenizada apenas pelo valor das benfeitorias e não da terra nua. Para que um título de propriedade coletiva possa ser emitido para uma comunidade quilombola, a área precisa ser desapropriada e os ocupantes não quilombolas precisam ser indenizados. Mas Tatto reconhece que houve progresso com o Decreto nº 4.887 – especialmente para a efetivação de outros direitos, como à educação e saúde. A instituição do Programa Brasil Quilombola foi uma forma de consolidar políticas de Estado para populações quilombolas de forma transversal, com o apoio de outros onze ministérios. Composto por quatro eixos – acesso à terra; infraestrutura e qualidade de vida; inclusão produtiva e desenvolvimento local; e direitos e cidadania –, o programa publicou seu último relatório de gestão em 2012, registrando todas as ações levadas a cabo pelos ministérios para a resolução.
Rebeca Campos Ferreira lembra que o acesso a esses direitos é muitas vezes dificultado pela ausência de regularização territorial: “Algumas comunidades não acessam tais políticas públicas por carecer de títulos de posse e até mesmo da certidão da Fundação Cultural Palmares.” Para ela, é preciso que sejam pensadas estratégias no campo jurídico, junto aos poderes Legislativo e ao Executivo, por exemplo, para cobrar a implementação das políticas públicas específicas para que as comunidades quilombolas tenham efetiva proteção jurídica.
Para Nilce de Pontes Pereira, uma jovem liderança do quilombo de Ribeirão Grande/Terra Seca, de Barra do Turvo (SP), o direito à terra é fundamental, mas importante também seria que os quilombolas tivessem acesso às políticas do Programa Brasil Quilombola e que o valor dos créditos e financiamentos fosse desburocratizado e incrementado, para que os quilombolas investissem na terra: “Seria uma maneira de dar uma autonomia e sustentabilidade às comunidades, enquanto esperam o lento processo de regularização fundiária de seus territórios”, propõe.
Tatto avalia que dificilmente a sociedade brasileira aceitaria as restrições que estão sendo propostas aos direitos constitucionais de tais populações, mas também não enxerga soluções imediatas para tantos impasses. No Vale do Ribeira, o programa que Tatto coordena tem apoiado os quilombolas em diversas frentes, que vão da valorização cultural e apoio às associações quilombolas às negociações com órgãos ambientais, por exemplo. O programa também tem incentivado o turismo nos quilombos do Ribeira, coma criação do Circuito Quilombola. Com cerca de 80 comunidades quilombolas, a região conta com 20 quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares. Desses, apenas seis tiveram seus títulos expedidos pelo Incra, e mesmo assim continuam enfrentando pendências fundiárias.
O esforço do programa do ISA tem sido demonstrar que as comunidades quilombolas conservam seus ambientes, o que ocorre por meio do manejo tradicional dos recursos naturais, observa Tatto. Nesse sentido, no início de outubro, a comunidade do Quilombo do Galvão recebeu autorização para preparar suas roças tradicionais. As negociações para tanto levaram mais de seis anos para se concretizar e foram fortalecidas pela interlocução com o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e pesquisadores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da USP e do Instituto de Botânica, que estudam as práticas agrícolas e a agrobiodiversidade presentes nos quilombos e sua importância para a segurança alimentar dessas comunidades.
COMUNIDADES CERTIFICADAS
A Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq) estima que haja mais de 5 mil comunidades quilombolas no Brasil, mas a Fundação Cultural Palmares certificou até o momento 2.278 delas, ou seja, menos da metade foi reconhecida. Desse total, apenas 207, segundo o Incra, tiveram suas terras tituladas até o momento. Veja na tabela abaixo o número de comunidades certificadas por estado da federação
Este ensaio é resultado da parceria firmada entre PÁGINA22 e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.
[:en]Vinte e cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988, não apenas os direitos indígenas carecem de efetivação. Saiba como as comunidades quilombolas e seus apoiadores têm se organizado para fazer frente aos ataques a seus direitos coletivos
Na primeira semana de outubro, diversas cidades brasileiras, como São Paulo e Brasília, viram tomar corpo passeatas capitaneadas por alguns dos mais de 240 povos indígenas que vivem no País. O fato quase desconhecido pela opinião pública é que a Mobilização Nacional Indígena também foi fortalecida por outras populações tradicionais, como as comunidades quilombolas[1].
Benedito Alves da Silva, o Ditão, conhecida liderança do quilombo de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, é um dos 300 quilombolas que lotaram mais de três ônibus para ir ao encontro dos Guarani Mbyá e Ñandeva. Juntos, eles compuseram a massa de pessoas que, caminhando da Avenida Paulista ao Parque do Ibirapuera, tomaram o Monumento às Bandeiras, na capital paulista.
A mobilização foi motivada pela defesa dos direitos constitucionais de povos indígenas e populações tradicionais[2], como os quilombolas, diante de uma série de iniciativas no Congresso Nacional. Estas visam alterar os procedimentos de demarcação de terras indígenas e de reconhecimento de territórios remanescentes de quilombo, como o Projeto de Lei Complementar nº 227/2012 e a Proposta de Emenda à Constituição nº 215/2000. (Leia mais sobre os projetos em “Sem apito, sem terra, sem voz“.)
[1] Os remanescentes de quilombo são grupos étnico-raciais de ancestralidade negra e trajetória histórica própria, relacionada com a resistência à escravidão. Eles têm assegurado, pela Constituição de 1988, o direito à propriedade definitiva sobre as terras que ocupam
[2] Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais. Possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (Definição usada no Decreto Federal nº 6.040/2000, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais)
Convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Mobilização Nacional Indígena foi apoiada por inúmeras organizações da sociedade civil, incluindo a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq). Na região da Mata Atlântica, conta Ditão, os territórios remanescentes de quilombo e as terras indígenas enfrentam ameaças parecidas, que incluem projetos hidrelétricos e de mineração, mas o que parece o maior fator de união é a luta pela efetivação de seus direitos territoriais: “As políticas atuais não estão sendo favoráveis a esses dois segmentos da sociedade nacional”, diz.
Mas a união de quilombolas e indígenas por essa pauta não foi exclusividade da mobilização em São Paulo: na região do Rio Trombetas, norte do Pará, os Kaxuyana e os Tunayana juntaram-se às comunidades quilombolas em um ato contra a morosidade dos processos de reconhecimento territorial e contra as iniciativas de mineração nas terras quilombolas Alto Trombetas e Jamari/Último Quilombo/Moua. No dia 2 de outubro, com o apoio de ONGs indigenistas, eles lançaram a campanha “Índios e quilombolas de Oriximiná juntos na defesa dos direitos territoriais” [3].
[3] A campanha pode ser apoiada aqui
O coordenador nacional da Conaq, Denildo Rodrigues, o Bico, concorda que o contexto é desfavorável: “A gente sabe que quem está no olho do furacão agora são quilombolas e indígenas. Em São Paulo, a gente já vinha fazendo uma pauta conjunta. E aí essa pauta de outubro foi integrada nacionalmente”.
Publicada em 30 de setembro, a “Carta dos Quilombolas à Sociedade Brasileira”, assinada pela Conaq, quer lembrar que o País também é terra quilombola. Bico reitera: “Hoje, no Brasil, temos mais de 5 mil comunidades quilombolas. Onde existiu escravatura, existiu a resistência”.
Às vésperas do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), tanto Ditão quanto Bico avaliam que há pouco a comemorar. “Nós estamos bastante pessimistas. O que estamos fortalecendo é a nossa luta, para brigar contra esse sistema. A nossa luta tem melhorado cada vez mais”, nota Ditão, lembrando que a própria história do povo negro brasileiro, especialmente dos quilombolas, é amplamente desconhecida.
SER QUILOMBOLA
Se hoje as principais demandas das comunidades quilombolas estão centradas no reconhecimento de seus territórios, isso não significa que as questões que as envolvem se resumam a esse tema.
O próprio direito à terra, no caso quilombola, é mediado pelo critério da autoatribuição, outro dos direitos conquistados pelo movimento e reiterado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Oficialmente definidos como remanescentes de comunidades de quilombo, os herdeiros de Zumbi dos Palmares não representam “sobras” dos coletivos que foram escravizados no passado, mas grupos que, tendo em vista essa ancestralidade, querem garantir a continuidade de modos de vida culturalmente diferenciados, seja no ambiente rural, seja no urbano.
No Brasil é possível observar historicamente uma diversidade nas formas de organização dos quilombos, constituídos não apenas por descendentes de escravos fugitivos – como no caso de Palmares.
Já em 1850, com a Lei de Terras, por exemplo, havia registros de terras de uso comum por comunidades negras, como “terras de santo” e “terras de preto”.
Rebeca Campos Ferreira, pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (Nadir/USP), observa que existe uma contradição no fato de que, para ter acesso a determinados direitos sociais ou mesmo ao reconhecimento territorial, as comunidades tenham de receber uma certidão emitida por um ente público garantindo que são quilombolas. Para ser reconhecida, a comunidade precisa se autodeterminar, constituir uma associação e encaminhar uma ata da associação à Fundação Cultural Palmares pleiteando a certificação.
Por conta disso, apesar de a Conaq contabilizar a existência de pelo menos 5 mil comunidades, a Fundação Cultural Palmares (FCP) certificou apenas 2.278 até agosto de 2013 [4]. Assim, “quilombola” aparece como uma categoria a que tais comunidades precisam se adequar para ser reconhecidas como sujeitos de direito diante do Estado.
[4] Conheça os dados de comunidades certificadas por estado pela FCP no site
O IMPASSE DAS TITULAÇÕES
Em novembro deste ano, comemoram-se dez anos da instituição da normativa que regula os procedimentos de identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos: o Decreto nº 4.887/2003.
Bico, da Conaq, analisa: “O Decreto 4.887 é uma vitória para nós. Mas essa conquista não basta, se não houver vontade política. O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem mais de 20 processos nas mãos dele e não assina; tem de parar de deixar que interesses econômicos se sobreponham aos direitos das comunidades”.
Segundo informações disponibilizadas no site do Incra, há 1.264 processos de demarcação em aberto, dos quais, até o momento, apenas 139 chegaram ao estágio final: o título da terra. Dessa forma, 207 comunidades receberam os títulos de posse de suas terras até o momento – porque um mesmo título pode ser expedido para mais de uma comunidade.
Assim como nos conhecidos casos de terras indígenas, parece haver gargalos em todas as etapas do processo e, mesmo com a sua finalização, o reconhecimento oficial não garante que os conflitos fundiários cessem. Segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil 2012, editado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), os assassinatos de quilombolas representaram 12% do total de mortes ocasionadas por conflitos fundiários em 2012.
Rebeca lembra que alguns dos entraves à titulação das terras quilombolas tem origem no próprio governo federal. “Em diversas situações, órgãos do governo apresentam resistência à regularização das áreas quilombolas. Podemos citar (o caso de) Marambaia (RJ), onde uma disputa é travada com a Marinha; de Alcântara, no Maranhão, em que a Aeronáutica está implicada; e os processos envolvendo a sobreposição de terras quilombolas e unidades de conservação, nas quais a resistência parte dos órgãos ambientais, como o caso de Cambury, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, e muitas das comunidades do Vale do Ribeira, também em São Paulo”, enumera.
A pesquisadora destaca ainda a existência de diversas comunidades desterritorializadas – fora de seu território original –, como o Quilombo de Porcinos, na cidade de Agudos (SP), em que a comunidade foi expulsa por uma ação de reintegração de posse.
De fato, as comunidades quilombolas enfrentam muitos obstáculos para efetivar o acesso pleno ao direito à terra, especialmente porque, além das titulações, as desapropriações das propriedades incidentes em terras quilombolas seguem lentamente. Segundo a pesquisadora, “embora tenham sido decretadas pelo governo federal, não há reais condições para dar eficácia a essas desapropriações”.
Para piorar a situação, o decreto de 2003 é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Adin nº 3.239, ajuizada pelo então PFL, o hoje Democratas (DEM), no Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2004, seis meses após a publicação do decreto. O DEM contesta na Adin, entre outros pontos, o poder do Incra para desapropriar terras particulares sobrepostas a territórios quilombolas e o direito à autodeterminação das comunidades. Tendo ido a julgamento em abril de 2012, a Adin obteve até agora apenas o voto do relator, o ministro César Peluso, a favor da inconstitucionalidade.
Rebeca explica: “Há um ano e meio o julgamento encontra-se suspenso e o voto de Peluso é o que vale. Enquanto a Adin não voltar à pauta e continuarmos nessa situação de suspensão, que já dura um ano e meio, as titulações, que já caminhavam a passos lentos (ou não caminhavam), dificilmente vão deslanchar”.
Para a pesquisadora, o julgamento da Adin nº 3.239 gerou insegurança jurídica sobre os processos de reconhecimento de comunidades quilombolas. “Como não se sabe se é constitucional ou não, visto que aguarda a retomada do julgamento pelo STF, é melhor não arriscar. Nessa espera, os conflitos e a violência se intensificam, e as comunidades padecem”, diz.
A esperança do movimento quilombola reside agora em outro julgamento, este no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4), no caso da Comunidade Quilombola de Invernada Paiol de Telha, do Paraná [5]. Acredita-se que uma decisão favorável à comunidade, considerando-se improcedente a arguição de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, poderia influenciar o julgamento da Adin nº 3.239, levando o STF a rejeitar o argumento do DEM.
No entanto, segundo Bico, da Conaq, nada está garantido: “A gente tem muito medo. A gente sabe que hoje em dia quem está nos tribunais não são as famílias de baixa renda. No caso de Paiol de Telha, foi dado o parecer favorável à comunidade quilombola e, depois, a Justiça voltou para trás”.
[5] Há uma petição pública em favor da comunidade
DIREITOS EM SUSPENSO, SOLUÇÕES CONCRETAS
O governo tem tentado esboçar respostas a esse quadro de difícil solução. Segundo o diagnóstico apresentado pelo Programa Brasil Quilombola, em agosto de 2012, os avanços mais significativos na política de regularização fundiária ocorreram no período de 2003 a 2010 – propiciados pela criação do programa em âmbito federal em 2004, pela implantação de normativas para a desintrusão das terras e pela inclusão de dotações específicas para a regularização fundiária de áreas quilombolas no Plano Plurianual 2004-2007, entre outros.
Elaborado sob responsabilidade da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o relatório registra: “Por se tratar de uma política relativamente nova, a qualificação das demandas tem provocado a necessidade de adaptações (legais, orçamentária, financeira e operacional), para sua melhor execução”. Ainda assim, o diagnóstico reconhece que isso não é o suficiente para dar conta das demandas de regularização das comunidades.
Na opinião de Nilto Tatto, coordenador do Programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA), diferentemente da problemática indígena – em que houve avanços na Amazônia Legal e o desafio maior atualmente localiza-se no Sudeste e Nordeste – no caso das terras quilombolas a necessidade de desapropriação demanda um grande volume de recursos para regularizar plenamente os territórios – para além de haver vontade política. “Nesse sentido, ela não é distinta da dificuldade de fazer a reforma agrária”, compara.
No caso das terras indígenas (TIs), a legislação prevê que a população não indígena seja indenizada apenas pelo valor das benfeitorias e não da terra nua. Para que um título de propriedade coletiva possa ser emitido para uma comunidade quilombola, a área precisa ser desapropriada e os ocupantes não quilombolas precisam ser indenizados. Mas Tatto reconhece que houve progresso com o Decreto nº 4.887 – especialmente para a efetivação de outros direitos, como à educação e saúde. A instituição do Programa Brasil Quilombola foi uma forma de consolidar políticas de Estado para populações quilombolas de forma transversal, com o apoio de outros onze ministérios. Composto por quatro eixos – acesso à terra; infraestrutura e qualidade de vida; inclusão produtiva e desenvolvimento local; e direitos e cidadania –, o programa publicou seu último relatório de gestão em 2012, registrando todas as ações levadas a cabo pelos ministérios para a resolução.
Rebeca Campos Ferreira lembra que o acesso a esses direitos é muitas vezes dificultado pela ausência de regularização territorial: “Algumas comunidades não acessam tais políticas públicas por carecer de títulos de posse e até mesmo da certidão da Fundação Cultural Palmares.” Para ela, é preciso que sejam pensadas estratégias no campo jurídico, junto aos poderes Legislativo e ao Executivo, por exemplo, para cobrar a implementação das políticas públicas específicas para que as comunidades quilombolas tenham efetiva proteção jurídica.
Para Nilce de Pontes Pereira, uma jovem liderança do quilombo de Ribeirão Grande/Terra Seca, de Barra do Turvo (SP), o direito à terra é fundamental, mas importante também seria que os quilombolas tivessem acesso às políticas do Programa Brasil Quilombola e que o valor dos créditos e financiamentos fosse desburocratizado e incrementado, para que os quilombolas investissem na terra: “Seria uma maneira de dar uma autonomia e sustentabilidade às comunidades, enquanto esperam o lento processo de regularização fundiária de seus territórios”, propõe.
Tatto avalia que dificilmente a sociedade brasileira aceitaria as restrições que estão sendo propostas aos direitos constitucionais de tais populações, mas também não enxerga soluções imediatas para tantos impasses. No Vale do Ribeira, o programa que Tatto coordena tem apoiado os quilombolas em diversas frentes, que vão da valorização cultural e apoio às associações quilombolas às negociações com órgãos ambientais, por exemplo. O programa também tem incentivado o turismo nos quilombos do Ribeira, coma criação do Circuito Quilombola. Com cerca de 80 comunidades quilombolas, a região conta com 20 quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares. Desses, apenas seis tiveram seus títulos expedidos pelo Incra, e mesmo assim continuam enfrentando pendências fundiárias.
O esforço do programa do ISA tem sido demonstrar que as comunidades quilombolas conservam seus ambientes, o que ocorre por meio do manejo tradicional dos recursos naturais, observa Tatto. Nesse sentido, no início de outubro, a comunidade do Quilombo do Galvão recebeu autorização para preparar suas roças tradicionais. As negociações para tanto levaram mais de seis anos para se concretizar e foram fortalecidas pela interlocução com o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e pesquisadores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da USP e do Instituto de Botânica, que estudam as práticas agrícolas e a agrobiodiversidade presentes nos quilombos e sua importância para a segurança alimentar dessas comunidades.
COMUNIDADES CERTIFICADAS
A Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq) estima que haja mais de 5 mil comunidades quilombolas no Brasil, mas a Fundação Cultural Palmares certificou até o momento 2.278 delas, ou seja, menos da metade foi reconhecida. Desse total, apenas 207, segundo o Incra, tiveram suas terras tituladas até o momento. Veja na tabela abaixo o número de comunidades certificadas por estado da federação
Este ensaio é resultado da parceria firmada entre PÁGINA22 e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.