O que a seca prolongada que castiga São Paulo e a onda de calor, em muitas regiões do País, têm a ver com a Marcha pelo Clima, que reuniu mais de 400 mil manifestantes nas ruas de Nova York, em setembro, além de em outras cidades do mundo? E o que tudo isso tem a ver com o mountain pine beetle, um besouro que está devastando a economia florestal do Canadá? Tudo. São eventos que estão sob um mesmo “guarda-chuva”, o da mudança climática. E a conexão entre eles é um dos aspectos tratados nesta entrevista por Tasso Rezende de Azevedo, coordenador do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (Seeg).
O engenheiro florestal explica por que tem sido tão difícil debater o desmatamento zero no Brasil e se questiona sobre o fato de a população ainda não relacionar o comportamento do clima às florestas. No entanto, ele se diz otimista quanto à meta de manter a temperatura média do planeta dentro do limite de 2 graus, definida durante a COP 15 (Copenhague), em 2009. Acima disso, as alterações do clima se tornariam muito mais abruptas e irreversíveis. “As chances estão diminuindo, mas, matematicamente, ainda é possível chegar lá”, afirma.
Um dos caminhos que defende para o controle das emissões é o da eletrificação, principalmente em transportes e na geração de calor. “Quanto mais intensiva for a eletrificação nas diferentes atividades, maior será a chance de participação de energias renováveis.”
O clima parece estar desconectado das estações do ano, nas diferentes regiões do Brasil. O que está acontecendo?
Os atuais modelos de previsão climática [do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Inpe, e de outros organismos do setor] não têm conseguido dar respostas mais precisas sobre o que, de fato, vem ocorrendo em relação às condições do clima. Talvez, no futuro, olhando para trás, possamos entender melhor o que estamos vivendo agora.
As dificuldades em prever o tempo são resultado dos efeitos da mudança climática?
Nessa área, nunca se pode dizer com certeza se o que estamos vivendo é consequência ou resultado da própria mudança climática. Só será possível saber daqui a 10, 15 anos, com a medição [retroativa] das alterações. Um caso reconhecido mundialmente como uma das consequências diretas das alterações climáticas, e que levou anos no processo de observação de seus efeitos, foi a grande infestação das extensas florestas de pinheiros do Canadá por um pequeno inseto, o mountain pine beetle, que atacou e consumiu milhares de árvores, provocando grandes perdas para boa parte da economia florestal canadense.
Mas não há dúvida da importância das florestas para a regulação do clima, não é? Parece ser ainda maior do que se supunha. O senhor pode explicar as razões?
A cobertura florestal na Amazônia, por exemplo, tem mais de dez vezes a superfície específica do oceano. Em outras palavras, a soma da superfície de todas as folhas das árvores, em um hectare, dá mais de dez hectares. Por isso, a evapotranspiração manda para a atmosfera, por hectare, muito mais água que a mesma área de oceano. Ou seja, funciona como uma bomba d’água muito eficiente. Para se ter ideia, só a Floresta Amazônica coloca na atmosfera 20 bilhões de litros por dia, mais do que o Rio Amazonas, o maior do mundo, que deságua 17 bilhões de litros diariamente no Oceano Atlântico.
Se tivéssemos de aquecer tanta água, para poder evaporar os 20 bilhões de litros, seria preciso utilizar toda a atual capacidade de geração de energia do mundo por seis meses. Considerando esse aspecto, quanto vale a Amazônia? Possivelmente, alguns trilhões de dólares por ano. Com essa perspectiva de valor, a discussão sobre se desmata ou não desmata, se é legal ou ilegal, não faz mais sentido. Sem o maciço florestal – já que não adianta ter apenas áreas de floresta isoladas –, colocamos em risco toda a economia agrícola, a geração energética e a saúde de muitas populações.
Como forma de viabilizar a produção de alimentos no futuro, devemos estabelecer um verdadeiro acordo para a conservação florestal no Brasil, com a participação dos agricultores. Estamos em um momento propício para essa discussão. Tomara que, na próxima gestão, seja possível formular uma nova proposta, um novo arranjo sobre um tema crucial, que impacta a vida da população rural e urbana. Veja o caso de São Paulo, para citar um exemplo, que há meses enfrenta uma incrível falta de água.
A dificuldade em falar sobre desmatamento zero decorre do fato de não termos conseguido explicar muito bem essa relação entre floresta e clima – e tudo está ligado. Quando ocorre desmatamento, abre-se caminho para alterações climáticas globais que alteram a função da floresta, reguladora das condições do clima. Ou seja, as florestas podem ser, ao mesmo tempo, parte do problema, da solução, mas também vítimas, pois o aumento da sua temperatura e a fragmentação aumentam a incidência de pragas e incêndios florestais. Para se alcançar o equilíbrio, a ação é a mesma: conservá-la de forma inteligente, restaurar e recuperar a cobertura vegetal.
Nesse contexto, como o senhor avalia o fato de o Brasil não ter assinado o acordo para reduzir o desmatamento, apresentado na Cúpula do Clima, em Nova York, em setembro?
O argumento do governo de que não assinamos porque não participamos da elaboração do documento é questionável. Se só pudermos participar, ou nos aliar, a iniciativas que nós mesmos elaboramos, fica difícil avançar. O fundamental era avaliar se o conteúdo da proposta era bom, se valia ou não a pena; e se fosse, poderia ter sido assinado, qual o
problema? O documento chegou com antecedência, mas o Brasil não reagiu porque, desde o início, se posicionou de maneira bastante reticente e descrente da iniciativa do Ban Ki-moon [secretário-geral das Nações Unidas]. Como a convocatória para a Cúpula do Clima não partiu da ONU ou da própria COP [Conferência das Partes], mas foi uma iniciativa pessoal do secretário-geral, o governo decidiu não participar. Nos encontros preparatórios, não havia nenhum representante brasileiro. Só que a iniciativa foi um sucesso, e mobilizou muita gente, no evento oficial e nos paralelos, como na Marcha do Clima, que reuniu mais de 400 mil pessoas, nas ruas de Nova York, além de dezenas de cidades pelo mundo.
O segundo argumento, que considero mais grave, demonstra uma leitura equivocada da legislação florestal, ou seja, a ideia de que não se pode apoiar um acordo para promover o desmatamento zero porque, no Brasil, a lei permite desmatar. A lei não obriga a desmatar, mas estabelece um percentual máximo de desmate, mediante autorização etc. Ora, se concordamos que o desmatamento deve ser reduzido a zero porque isso ajuda a manter as boas condições climáticas, devemos usar os instrumentos de incentivo disponíveis para zerar o desmatamento. Por isso, o acordo seria uma aliança entre governos, empresas e sociedade civil.
Alguns fatos que aconteceram recentemente, no Brasil, estão relacionados à visão do governo de não querer se comprometer com o desmatamento. Por exemplo: ainda não foi implantado o sistema de monitoramento do Cerrado – e o último dado oficial disponível é de 2009. Isso não permite conhecer o quadro de desmatamento na região, que supera o da Amazônia. Hoje, somos o País que mais desmata no mundo, apesar da queda significativa observada no desmatamento da Amazônia, na última década.
Por que o Brasil não tem conseguido mais reduzir o desmatamento?
Isso tem a ver com o fato de como se faz política pública. Entre 2003 e 2004, quando fizemos o diagnóstico e um plano de combate ao desmatamento, o conjunto de ações funcionava naquele contexto. Quando a situação melhora e a realidade se modifica, é aceitável imaginar que os instrumentos de controle devam ser aprimorados, em um segundo momento. Foi o que aconteceu entre 2008 e 2009, depois das quedas consecutivas do desmatamento [desde 2005], quando foram adotadas algumas ações regulatórias [caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das restrições do Banco Central para conceder crédito agrícola a áreas desmatadas etc.]. De lá para cá, o que aconteceu de novo? Nada, nenhum novo instrumento foi adotado, e o desmatamento voltou a crescer na Amazônia, atingindo 29% em 2013.
Para reverter esse quadro, quais ações devem ser adotadas?
É preciso implantar o CAR, além de colocar em prática outras medidas efetivas. Um dos gargalos são as áreas públicas, que ainda não tiveram o uso definido [só na Amazônia existem entre 60 milhões e 80 milhões de hectares não destinados]. Estamos em uma fase em que é preciso renovar os compromissos, repensar os instrumentos de combate ao desmatamento, e não ficar apenas comemorando os ganhos do passado. A necessidade de renovação se coloca em várias frentes. A área climática é outro caso típico.
Sim, e enquanto isso as emissões de gases de efeito estufa estão aumentando. Quais as origens desse aumento?
As emissões de energia são as que mais crescem, no Brasil, em comparação com outros países. As termoelétricas têm uma participação relevante, mas o que mais tem influenciado mesmo são os combustíveis [etanol e gasolina], que abastecem toda a frota nacional. Em 2009, a meta era aumentar 10% ao ano o consumo de álcool [anidro], como indicado no Plano Nacional sobre Mudança do Clima. Na prática, porém, passamos a importar gasolina – um total de 2,5 bilhões de litros por ano.
As emissões de energia, antes abaixo de 10%, já estão em 30%, e devem alcançar a liderança entre todas as demais, no ano que vem. Atualmente, o maior responsável por esse aumento é o modal rodoviário [automóvel e caminhão]. No transporte de cargas, seria preciso utilizar mais o transporte ferroviário e fluvial, além do biodiesel, que ainda tem uma participação pequena. No caso da aviação, há uma nova rota tecnológica focada no bioquerosene, que se desenvolve muito bem. É questão de tempo para ganhar escala e avançar, resultado da reorganização e do planejamento estratégico do setor aéreo. No caso do transporte coletivo e individual, também é preciso inovar. Um automóvel transporta cinco vezes menos pessoas do que os veículos coletivos, mas emite quatro vezes mais. Nesse setor, também vamos ver, muito em breve, o avanço da eletrificação. O mundo todo vai eletrificar os diferentes modais [rodoviário, ferroviário], nem tanto em razão do aspecto climático, mas porque o sistema elétrico é muito mais eficiente.
Um cenário mais favorável para o carro elétrico, não?
Sim, não há nenhuma racionalidade em manter a fabricação de carros híbridos [movidos a combustão e eletricidade]. Acredito que, em pouco menos de uma década, qualquer modelo equipado com uma bateria eficiente poderá oferecer mais autonomia do que um tanque de gasolina. Este é um período de transição, mas, em pouco tempo, não fará mais
sentido fabricar veículos movidos a combustíveis líquidos, até porque os motores a combustão são pouco eficientes.
O planejamento estratégico tem sido insuficiente na área de energia?
Há uma grande falha [dos gestores governamentais] na visão de como se pode transformar a realidade, com os instrumentos adequados. Continuamos a utilizar as métricas do passado para planejar ações futuras. A conclusão é que os planos decenais de energia, que antes não existiam e são importantes, hoje servem muito mais para prever a oferta e não mais como um instrumento de planejamento energético. Neles, o critério mais relevante para a tomada de decisão é o preço: busca-se fixar o menor valor, na composição da oferta, para atender a determinada demanda. Mas, neste momento, isso se tornou obsoleto, porque os valores previstos não correspondem mais à realidade dos preços vigentes no mercado [que subiram com a atual crise no setor elétrico].
Em 2009, durante a COP 15, em Copenhague, o Brasil assumiu o compromisso voluntário de reduzir as emissões de gases-estufa entre 36,1% e 38,9% em comparação com o atual cenário de negócios até 2020. Isso será cumprido?
Na realidade, a meta assumida pelo Brasil, naquela ocasião, foi importante, mas hoje é totalmente irrelevante. Devemos chegar a 2020 com as emissões apontando para cima em relação aos níveis atuais. O ponto de baixa já passou, e agora, novamente, a tendência é de aumento. As emissões eram muito altas, e foram reduzidas. Daqui para a
frente, o grosso das emissões virá da pecuária e do setor de energia. O País tem de buscar meios para reduzir as emissões para chegar a 2050 com um máximo de 500 milhões de toneladas, em favor da meta de 2 graus de aumento da temperatura global.
O senhor acredita que ainda seria possível manter a meta-limite de 2 graus?
As chances estão diminuindo, mas, matematicamente, ainda é possível, sim. Quais são as condições? Em resumo, será preciso limitar as emissões globais acumuladas, de 2012 até o fim do século, em mil gigatoneladas de CO2 eq. Hoje emitimos 50 gigatoneladas por ano. Por isso, muitos apostam que já não dá mais, mas ainda estou otimista. Precisamos de um acordo e alinhamento forte dos países para reduzir em 80% as emissões até 2050, quando deveríamos ficar próximo de 10 gigatoneladas. Além disso, na segunda metade do século, as emissões teriam de cair e continuar negativas, com queda mais acentuada no setor energético, o que possibilitaria neutralizar as provenientes da agropecuária. As peças- chave são zerar as perdas da cobertura vegetal, neutralizar as emissões no setor agrícola, destinar e tratar resíduos sólidos e efluentes para a produção de gás destinado à geração de energia.
O aumento da eletrificação pode contribuir para reduções significativas das emissões?
A eletricidade traz uma série de vantagens, e o mundo inteiro tende a se eletrificar, em larga escala, até 2050. Esse movimento deve abranger duas áreas importantes: transportes e geração de calor. Quanto mais intensiva for a eletrificação dos diferentes setores de atividade, maior a chance de participação de energias renováveis. Com a perspectiva de aumento da demanda por fontes de energia mais eficientes, o petróleo perderá ainda mais sua vantagem competitiva.
Considerando a posição dos Estados Unidos e da China, contrários à regulação obrigatória, qual seria o escopo possível de um novo acordo climático global?
A China, hoje em posição mais importante no contexto mundial que os Estados Unidos, responsável por 20% das emissões globais, aponta para um rumo diferente das negociações. Isso fará toda a diferença na construção de um novo acordo global. Os chineses sinalizaram, na Cúpula do Clima, que vão apresentar uma proposta de data para estabelecer o pico das emissões, que ocorreria antes de 2030, e seria anunciada até março de 2015. É a notícia mais importante sobre a questão climática desde o encontro de Copenhague, porque o país tem elevado aceleradamente as emissões, nos últimos anos.
Com esse gesto, a China indica que poderá ser estabelecida uma meta de longo prazo, um mecanismo que tem sido evitado. Seria muito bom se, na convenção de Lima [Peru], pudéssemos emplacar uma meta de longo e outra de médio prazo, sem explicitar o número, permitindo que os países se adaptassem, nos próximos anos, após 2020.
A partir do anúncio da China, e se o Brasil tiver uma posição pró-ativa, acho possível engajar a Índia hoje o país mais reticente. Se os indianos não se alinharem e seguirem com uma postura conservadora, corremos o risco de ver as emissões deles se equipararem ao padrão chinês, o que representaria um aumento entre 6 e 7 gigatoneladas de CO2 eq. Se os dois países fizerem um movimento favorável à redução, podem viabilizar transformações no continente africano e em parte da América Latina. Um segundo aspecto que também deverá modificar a visão perspectiva de um acordo climático até 2020 é a sinalização, inclusive do setor empresarial, de que as emissões de carbono têm de ser precificadas. Quando os empresários assumem esse posicionamento, é porque começam a perceber que é possível fazer a transição, com base em valores definidos claramente, para planejar os investimentos em larga escala. Com isso, os subsídios dados ao petróleo terão de ser redirecionados para as energias renováveis.
Outro ponto importante é o chamado leap frog, expressão em inglês para “queimar etapas”. Há 1 bilhão de pessoas no mundo sem acesso à energia, e que poderiam ser beneficiadas diretamente por energias renováveis, favorecendo ainda outros 2 a 3 bilhões, porque seria preciso gerar escala para atender ao crescimento da demanda.
Na visão do senhor, qual será o resultado mais provável da Conferência de Paris?
Depende do que acontecer, este ano, no encontro de Lima. Os países devem apresentar suas metas [voluntárias] de redução de emissões até abril de 2015. A somatória delas indicará o volume total das emissões futuras e se isso estaria coerente com a meta de 2 graus.
Primeiro, será preciso definir algum parâmetro para avaliar o agregado [emissões acumuladas em determinado período], que não se define pela temperatura, antes do encontro de Paris. Segundo, será preciso chegar a um formato mínimo de acordo em que os países apresentarão suas propostas [quantitativas] de redução. Em tese, se houver sucesso nas negociações preparatórias, e, em um segundo momento, for possível avançar com a negociação política, acredito que as discussões poderão se tornar mais produtivas.
Na agenda de mitigação das emissões atmosféricas, o debate se divide em dois grandes grupos: um, de quem faz o que para reduzi-las; o outro, de quem paga a conta. O primeiro tem de agir de acordo com a capacidade e a possibilidade do que se pode fazer, e no menor prazo possível; o segundo tem de envolver, nas discussões, quem mais tem se beneficiado do desenvolvimento – os países ricos e desenvolvidos, até hoje os grandes emissores.