Projetos de fundações, prefeituras e comitês de bacias hidrográficas estão prestes a iniciar o pagamento a produtores rurais por serviços de conservação da água
O município de Extrema, no sul de Minas Gerais, está levando da teoria à prática o conceito de pagamento por serviços ambientais na área de recursos hídricos. Com verbas do orçamento, planeja iniciar os pagamentos do projeto Conservador das Águas em outubro. Cumprindo lei municipal aprovada em dezembro de 2005, a prefeitura vai pagar em parcelas mensais o equivalente a R$ 148,00 por hectare/ano a cem pequenos agricultores da sub-bacia do Ribeirão das Posses, que corre para o Jaguari, um dos formadores do Sistema Cantareira, responsável por metade do abastecimento de água da Grande São Paulo.
Para receber o incentivo, os agricultores terão de cumprir mensalmente metas de conservação do solo, recuperação e manutenção de mata ciliar – a vegetação das margens dos rios – e de saneamento ambiental, instalando fossas sépticas na propriedade. A concessão do benefício também implica a averbação em cartório da reserva legal de 20% da área da propriedade com cobertura florestal, que terá de ser recuperada.
O que acontece em Extrema reflete a preocupação crescente dos gestores da política de recursos hídricos com a degradação do solo e a remoção da mata das regiões de mananciais. Por causa desses desequilíbrios, o volume e a qualidade da água estão declinando e os custos de tratamento não param de subir.
Em conseqüência desse quadro, entidades ambientalistas e do setor privado, comitês de bacias hidrográficas (CBHs), a Agência Nacional de Águas (ANA) e prefeituras estudam a concessão de incentivos financeiros a produtores rurais e proprietários nas áreas de mananciais de regiões urbanas que realizem ações de conservação.
A cobrança pelo uso da água – que ocorre nas bacias federais do Rio Paraíba do Sul, desde 2003, e dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), desde janeiro passado -, põe em prática os princípios do usuário-pagador e do poluidor-pagador. Contudo, eles parecem insuficientes para lidar com o desafio da conservação da água e do solo. “A cobrança está muito voltada para a poluição”, avalia José Galizia Tundisi, professor da Universidade Federal de São Carlos e um dos principais especialistas brasileiros em água doce.
A professora Mônica Porto, da Escola Politécnica da USP, em São Paulo, reforça os argumentos pró-incentivos: “A proteção ambiental ocorre por mecanismos compulsórios ou incentivos financeiros. Ela não acontece por romantismo. Instrumentos compulsórios são mais difíceis de fiscalizar, além de caros e de eficácia reduzida”.
Focos específicos
Cada incentivo, prestes a sair do forno, tem sua especificidade. Em Joinville, o objetivo do recém-criado Sistema de Compensação Financeira Ambiental é recompor a mata ciliar do Rio Cubatão, principal manancial dessa cidade que é a mais populosa de Santa Catarina, com 450 mil habitantes, e o terceiro pólo industrial do Sul. A Fundação Municipal do Meio Ambiente (Fundema) vai pagar mensalmente aos 15 pequenos agricultores da fase piloto do sistema entre R$ 175,00 e R$ 550,00, dependendo do tamanho da propriedade.
Para ganhar o incentivo, os agricultores terão de cuidar do plantio e da manutenção da mata ciliar, sob acompanhamento da Fundema, que investirá R$ 152 mil nos primeiros três anos. “É um gasto próximo do que temos ao pagar empreiteiras para efetuar os serviços de conservação. Além disso, o projeto envolverá os produtores e suas famílias na proteção dos mananciais. A restrição ambiental vai virar geração de renda”, conta Norival Silva, presidente da Fundema.
O alvo volta-se para o problema da erosão e do assoreamento de rios e lagos no caso do projeto Produtor de Água, da ANA. Se a plenária do comitê das bacias do Piracicaba, Capivari e Jundiaí (CBH-PCJ) aprovar a proposta, o PCJ reservará R$ 1 milhão do montante arrecadado com a cobrança pelo uso da água nos próximos cinco anos para o pagamento de serviços ambientais, explica Marcos Vinícius Folegatti, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e coordenador da Câmara Técnica Rural do CBH-PCJ. Como a primeira etapa – de cinco anos – do projeto custa R$ 4 milhões, outros R$ 3 milhões terão de ser captados da ANA, de ONGs e do setor privado.
Entre os serviços a ser remunerados estariam a aplicação de técnicas de conservação do solo, como o terraceamento (obstáculos para reter a água da chuva), a um custo de R$ 100/hectare. Folegatti exemplifica como funcionaria o pagamento: se o agricultor possuir 20 hectares para terracear, ele ou uma empresa contratada receberiam R$ 2 mil pelo trabalho, mais R$ 20 por hectare/ano para a manutenção do serviço.
“O problema da erosão é mais um enorme passivo ambiental na bacia do PCJ”, diz Folegatti. No Brasil, as taxas de erosão variam de 15 a 20 toneladas por hectare, acima da faixa de tolerância de perda de 9 a 12 toneladas, segundo Devanir Garcia dos Santos, gerente-executivo da Superintendência de Usos Múltiplos da ANA. Quanto maior a erosão, mais sedimentos escorrem para o leito de rios e lagos, tornando a água túrbida e poluída. Só a turbidez da água torna o seu tratamento quatro vezes mais caro, aponta Santos.
Quando se combate a erosão por meio da recuperação da cobertura vegetal ou de técnicas de conservação do solo, como plantio direto, curvas de nível e terraceamento, a água das chuvas volta a infiltrar no solo, em vez de escorrer diretamente para o rio. “Freqüentemente fala-se em criar novas barragens para armazenar água no solo, e não em conservar a água na bacia através do processo de infiltração, mais simples e menos impactante”, diz Folegatti.
O pagamento de serviços ambientais também pode funcionar para simplesmente desestimular o plantio de culturas agrícolas em áreas prioritárias de conservação. É o que o Instituto Internacional de Ecologia (IIE) propõe em São Carlos (SP) com o projeto “Fazendas da Água”.
Quase pronto para ser enviado à Câmara Municipal, se transformado em lei, o projeto subsidiará agricultores com terras próximas a mananciais que deixarem de cultivar. Com a recomposição da mata antes existente, a expectativa é de que a água volte a infiltrar na terra, em vez de escorrer para o rio levando sedimentos e afetando a recarga dos aqüíferos, essenciais para a boa saúde das nascentes.
Bancado pela prefeitura, o subsídio seria calculado em função do valor da produção agrícola que deixaria de existir, detalha Tundisi, da UFSCar, também presidente honorário do IIE. A proposta surgiu no IIE, com base em um projeto do programa de pesquisas em política pública da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Mesmo em áreas urbanas é possível usar o pagamento por serviços ambientais para proteger mananciais. O projeto Oásis, da Fundação O Boticário, pretende oferecer uma espécie de premiação financeira periódica a proprietários da região de mananciais no sul da capital paulista que conservarem os remanescentes de Mata Atlântica em suas terras.
“Partimos da evidência científica de que manter a floresta nas áreas de mananciais melhora a quantidade e a qualidade da água”, explica João Luiz Guimarães, analista de projetos da fundação. “Bacias com boa porcentagem de cobertura vegetal funcionam como filtros naturais, contribuindo para que a água que chega aos reservatórios apresente menor carga de poluentes.”
A degradação da Represa Guarapiranga ficou tão crítica que o custo do tratamento de 1 milhão de litros de água mais que dobrou, subindo de R$ 23 em 1998 para R$ 54 em 2003, de acordo com a fundação, que busca parcerias com empresas para captar recursos que viabilizem o Oásis.
Ações integradas
Entre os motivos que estimulam estudos sobre o pagamento por serviços ambientais relativos à água, um dos mais importantes é a necessidade de integrar as políticas de floresta aos recursos hídricos. Não é à toa que algumas das principais ONGs ambientalistas somaram esforços para criar o Programa Águas e Florestas em 1999. “É um caminho para resgatar a floresta como produtora de água”, conta Heloísa Dias, coordenadora do programa na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA). Integram a iniciativa, além da RBMA, a Fundação SOS Mata Atlântica, o WWF e a The Nature Conservancy (TNC).
Desde 2003, o programa realiza oficinas no CBH do Paraíba do Sul (Ceivap) para estimular o tratamento integrado das duas áreas. Em março, começou a segunda etapa da cooperação com o Ceivap, com a seleção de três áreas prioritárias de restauração ambiental, levar o conceito de floresta para os gestores de recursos hídricos e efetuar o pagamento de serviços ambientais.
“Nosso sonho é que os CBHs criem linhas permanentes para a compensação por serviços ambientais. Falta, porém, prioridade política para o assunto”, assinala Heloísa. A fim de sanar o problema, a ANA estuda uma proposta de resolução a ser remetida ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que orientaria os comitês a reservar parte da arrecadação da cobrança para projetos de conservação como o pagamento por serviços ambientais.
Para Maria Luísa Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica, a proteção dos mananciais deve envolver uma série de instrumentos: pagamentos por serviços ambientais, o IR Ecológico – que estipula um percentual de renúncia fiscal no Imposto de Renda para aplicação em meio ambiente -, o IPTU especial, com descontos para áreas urbanas não impermeabilizadas, e o abatimento no valor da cobrança a proprietários que recuperem ou conservem a cobertura florestal.
“Florestas de água”
Foi a importância da relação entre água e floresta que levou a SOS Mata Atlântica a iniciar em junho de 2004 o programa Florestas do Futuro, destinado a reflorestar com espécies nativas áreas de mata ciliar de proprietários rurais descapitalizados. Não se trata de um projeto de incentivos financeiros diretos, mas de alguma forma também incorpora o conceito dos serviços ambientais.
Os recursos vêm de empresas e a SOS opera o programa por meio de parcerias com universidades, como a Esalq-USP, e ongues locais. Até agosto, o programa tinha plantado 455.700 mudas de espécies nativas da Mata Atlântica, com o apoio de empresas como Coca-Cola, Gol, Repsol, YPF, Rabobank e Volkswagen Caminhões.
Exemplos começam a se multiplicar mundo afora. Um dos casos mais impressionantes é o de Nova York, onde o poder público investe perto de US$ 1,5 bilhão em um programa de dez anos iniciado em 1997. Diante das exigências do governo federal para garantir a qualidade da água que abastece os 9,5 milhões de habitantes da cidade – oriunda de um sistema de 19 reservatórios em três bacias no norte do Estado de Nova York -, comparou-se o custo de preservar o sistema natural ao de construir uma estação de tratamento de água. Escolheu-se a primeira opção, uma vez que a segunda absorveria entre US$ 6 bilhões e US$ 8 bilhões.
Inúmeros projetos estão sendo desenvolvidos pelo programa nova-iorquino, entre eles a compra de terras privadas em áreas próximas a reservatórios e cursos d’água para conservar suas funções hídricas, combatendo a erosão e o despejo de contaminantes nos rios. O resultado é que, excetuando-se a adição de cloro e flúor, a água chega às torneiras dos nova-iorquinos filtrada naturalmente e pronta para consumo.
O caso de Nova York deixa claro que a conservação dos serviços ambientais pode ser a saída mais econômica para manter a qualidade da água, especialmente em países onde os recursos são mais escassos, como o Brasil. E traz o bônus de conservar áreas verdes essenciais para os animais e o bem-estar humano.
Cobrança pela água induz a investimentos
A arrecadação, entretanto, ainda é insuficiente para reverter a degradação das bacias
Dois comitês de bacias hidrográficas já cobram pelo uso da água em rios federais. O pioneiro foi o do Paraíba do Sul (Ceivap), em março de 2003. Em janeiro deste ano, começou a cobrança relativa às bacias do Piracicaba, do Capivari e do Jundiaí (PCJ).
A arrecadação no PCJ alcançou perto de R$ 6 milhões até julho e deve chegar a R$ 10,8 milhões até o fim de 2006, segundo a agência do PCJ. Um sinal de que a cobrança foi bem-aceita pelos usuários é a baixa taxa de inadimplência, em torno de 3%.
Incluindo os repasses do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro), a agência do PCJ contará este ano com cerca de R$ 15 milhões para investimentos na recuperação ambiental das bacias, especialmente em tratamento de esgoto. Segundo Luiz Roberto Moretti, secretário-executivo do comitê PCJ, o montante deverá dobrar em 2007, quando começa a cobrança pelo uso dos rios estaduais de suas bacias.
A partir daí, a expectativa é que ações de conservação, como o pagamento por serviços ambientais, tenham mais espaço na política de investimentos do comitê, que hoje direciona 82% dos recursos para o tratamento de esgoto.
Pela Lei no 12.183, aprovada em dezembro de 2005, os 21 comitês estaduais de São Paulo têm dois anos para elaborar planos de bacia e iniciar a cobrança. A lei paulista tem peculiaridades em relação à legislação federal. Na Bacia do Alto Tietê, onde está a maior parte dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo, 50% dos recursos arrecadados deverão ser aplicados na conservação dos mananciais. “Nossa lei tem um viés conservacionista”, afirma Rui Brasil, coordenador de recursos hídricos da Secretaria Estadual de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento.
Na bacia federal do Paraíba do Sul, que ocupa áreas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, o Ceivap já arrecadou R$ 22,12 milhões. Os investimentos em projetos somaram R$ 31,5 milhões entre 2003 e 2005, dos quais R$ 12,5 milhões resultantes da cobrança.
Além de motivar empresas a tornar mais eficiente o uso da água, a cobrança induz a investimentos, mas por si só está longe do montante necessário para recuperar a saúde ambiental das bacias. No PCJ, somente em 2006 e 2007, o plano de bacia estima serem necessários R$ 481 milhões, mais de dez vezes a arrecadação prevista no período.