Os trabalhadores em mineração no século XIX usavam um método pouco usual para proteger-se dos gases venenosos que ameaçavam asfixiá-los enquanto trabalhavam sob a terra. Para detectar a presença invisível desses gases, também inodoros, eles tinham o hábito de levar um canário em uma gaiola para dentro da mina. O fato de que o canário continuava a cantar era prova de que o ar dentro da mina ainda estava bom. Um canário que parasse de cantar ou, pior, morresse, era motivo para evacuar a mina. Para muita gente, o aniversário de um ano do Furacão Katrina e a devastação que ele causou em Nova Orleans representam uma perspectiva ameaçadora de um canário morto para o mundo – um exemplo vívido do que se pode esperar em um mundo onde o nível do mar aumenta e os padrões do clima tornam-se cada vez mais violentos.
Nova Orleans sempre teve uma existência precária na borda da Costa do Golfo, uma região de equilíbrio delicado entre as águas sujeitas às tempestades do Golfo do México e a terra firme – equilíbrio este que originou a geografia única de áreas alagadas da região e a cultura bayou da Louisiana. Os visitantes ficariam surpresos ao descobrir que Nova Orleans está, em grande parte, debaixo do nível do mar e teria submergido há muito tempo não fossem os diques e mecanismos de bombeamento que mantinham a cidade seca. Na verdade, o nível de Nova Orleans em relação ao mar diminuiu todos os anos desde que a cidade foi fundada.
Uma estranha conseqüência desse afundamento pode ser observada nos cemitérios da cidade. Ao longo de séculos, os coveiros de Nova Orleans aprenderam que tinham sempre de adicionar mais uma camada de solo sobre as covas para evitar que os caixões subissem lentamente à superfície. Essa visão macabra não é resultado de qualquer esforço por parte dos “habitantes” dos caixões, mas sim da recusa desses últimos de afundar, pacificamente, junto com o resto da cidade. Por essa razão, há muito tempo os cemitérios de Nova Orleans pararam de usar o sistema de covas no chão e adotaram os mausoléus, que ficam acima da terra.
Esse abaixamento da superfície é lento, mas incessante, resultado do peso acumulado de aproximadamente 10 quilômetros de sedimentos do Rio Mississippi que desembocam no Golfo do México. No passado, entretanto, os sedimentos que pesavam tanto na costa da Louisiana também ofereciam uma solução natural, cobrindo a superfície da terra que afundava e evitando que a água avançasse muito para dentro do território. Como um coveiro persistente, o rio sempre fornecia mais uma camada de sedimento para evitar que a água do mar invadisse a terra.
Para Nova Orleans, esse fato geológico significa que os furacões violentos que germinam nas águas do Golfo podem piorar as conseqüências das enchentes, mas não são a causa do problema. Embora o Furacão Katrina tenha começado com extrema violência – na categoria 5, com ventos de 250 km/hora -, sua intensidade havia caído para nível 1-2 quando alcançou a cidade. O que aconteceu para que houvesse um desastre naquela escala, com a quebra dos diques causando enchentes e o alagamento de mais de 80% da cidade? Na verdade, a tragédia estava prevista há muito tempo, resultado das ações não somente das pessoas que moram em Nova Orleans, mas também daquelas que habitam as margens do Rio Mississippi muitos quilômetros acima.
Como o vale do Rio Nilo no Egito Antigo, os solos do vale do Rio Mississippi eram periodicamente reabastecidos quando as enchentes o faziam transbordar. O resultado é uma região tremendamente fértil, tanto que a prática da agricultura intensiva inspirou seu apelido de “cesta básica” dos Estados Unidos. À medida que casas e cidades foram construídas na região, as enchentes cada vez mais eram vistas como um aborrecimento que poderia ser “solucionado” com a construção de diques ao longo das margens do rio para evitar a subida das águas. Uma vez que a parte mais baixa de um dique é o lugar onde as águas invadem a terra, manter essas barreiras mais altas do que a vizinha tornou-se uma tática de sobrevivência e contribuiu para uma escalada da “guerra” dos diques ao longo do rio. E porque os diques empurram o problema das enchentes para regiões mais abaixo, Nova Orleans acabou o pagando o preço por sua posição geográfica.
Essa luta para controlar as enchentes e conter as águas do Mississippi chegou a um nível inédito em 1964 com a realização do projeto River Control pelo Army Corps of Engineers.
Apesar de seu nome militar, o Corps é um consórcio civil financiado pelo governo federal americano. A jóia da coroa do projeto River Control é uma estrutura de concreto de 180 metros, paralela à margem ocidental do rio, 200 quilômetros a noroeste de Nova Orleans. Sua razão de ser nada mais é do que prevenir que o Rio Mississippi mude de curso. A escalada dos diques não foi nada comparada a tal estrutura, que desafia a tendência dos rios de encontrar a rota mais curta para o mar.
O perigo que o Mississippi mude de curso é muito real; o caminho que o vizinho Rio Atchafalaya faz para chegar ao Golfo é quase metade, o que significa que a água correria muito mais rápido do que nos lentos meandros do Mississippi. Se suas águas de repente saltassem e se juntassem ao Atchafalaya, todos os esforços dos engenheiros não seriam suficientes para reverter o fluxo. O resultado para Nova Orleans seria desastroso: sem o rio, a cidade estaria presa no meio de uma enorme poça de barro, que afunda.
Uma conseqüência adicional da “solução” encontrada pelo River Control e pelos diques é que o acréscimo de sedimentos na foz do rio se concentra em uma pequena área, resultando em um crescimento anormal, a sudeste. O delta cresceu tanto que, de fato, os sedimentos agora são depositados em uma planície abissal do oceano, separada para sempre do continente e sua costa que submerge. O Corps agora estuda projetos que permitam ao Mississippi mudar de curso abaixo de Nova Orleans, na esperança de redistribuir os sedimentos ao longo da costa e diminuir o afundamento.
O que está em jogo, a razão para investimentos tão pesados de dinheiro público, é a preservação de mais do que apenas a herança cultural de Nova Orleans. Estão em risco dezenas de bilhões de dólares em investimentos privados de corporações como Shell, Exxon, BF Goodrich, DuPont, Dow Chemical, Georgia-Pacific, Monsanto, que pontilham aquela costa. Essas companhias estabeleceram-se em Nova Orleans e seu entorno para aproveitar os canais de navegação e a proximidade das fontes de petróleo e gás do Golfo do México, que guarda cerca de 30% da capacidade de produção e refino dos EUA. Um exemplo simples ilustra a importância econômica de Nova Orleans para a economia americana: a alta de 50% no preço médio da gasolina logo após o Furacão Katrina.
O Brasil, com tantas cidades costeiras construídas sobre áreas de praia, pode tirar lições do caso de Nova Orleans? De acordo com Louis Martin, um geológo do Institut de Recherche pour le Développement que estudou os registros pré-históricos do nível do mar ao longo da costa brasileira, os riscos para o Brasil advindos de um possível aumento do nível do mar podem ser menores do que para os Estados Unidos. A pesquisa de Louis Martin mostra que o nível do mar relativo para grande parte da costa brasileira baixou nos últimos 5 mil anos – o oposto do que se observa nos Estados Unidos.
A diferença é causada pela resposta gradual ao derretimento das calotas de gelo da América do Norte há 12 mil anos, efeitos que não se estenderam para a porção da América do Sul livre de gelo. Louis Martin adverte, entretanto, que tal descoberta não é causa para complacência. “Cidades como Recife, Santos, Maceió, e uma parte do Rio de Janeiro, como Copacabana, Ipanema, assentadas sobre sedimentos marinhos holocêniccos depositados nos últimos 5 mil anos, sofrerão erosões”, diz ele. “Naturalmente, existem recursos tecnológicos para combater essas erosões – é só uma questão de investimento.”
Embora parte da má sorte de Nova Orleans seja sem dúvida resultado de mau planejamento fraco e das más condições geológicas, o problema do aumento do nível do mar vai afetar todas as cidades costeiras de alguma maneira. O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês) prevê um aumento total dos níveis do mar de aproximadamente 50 centímetros. O dado não impressiona, até que se perceba que cada centímetro de aumento no nível do mar equivale a um avanço de aproximadamente 1 metro da linha da costa. Em todo o mundo, inúmeras cidades estão localizadas ao alcance desses 50 centímetros. Estima-se que a subida de um metro no nível do mar deixaria metade do território de Bangladesh debaixo d’água e milhões de pessoas desabrigadas. Quem vive perto do mar talvez queira usar algo melhor do que um canário.
*Eric Thover é geólogo e pesquisador da Universidade de São Paulo.