Nascido de movimentos sociais no Pará, o Proambiente transformou o pagamento por serviços ambientais em política pública e refém do orçamento federal
As palavras do poeta Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, coração do Amazonas, foram incorporadas por quem habita a floresta e dela depende para viver. Nascido a partir de movimentos sociais como o Grito da Amazônia, o Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural (Proambiente) é mais do que uma tentativa de superar as diferenças entre produção rural e conservação ambiental. Ao incorporar o conceito de pagamento por serviços ambientais (PSA), o programa tomou forma, inovou e tornou-se pioneiro na América Latina.
Mas a inovação e o pioneirismo esbarram nas dificuldades práticas. Incorporado desde 2004 pelo governo federal, através do Ministério do Meio Ambiente, o Proambiente não decola. O desafio, assim como o nome do programa, é extenso: garantir o desenvolvimento rural para quem vive da agricultura familiar, do extrativismo ou da pesca na Amazônia sob uma ótica equilibrada, com reduzidos impactos sociais e ambientais. A idéia é encorajar as atividades que precisam da floresta em pé – ao contrário do agronegócio, que depende da derrubada da mata para se expandir – por meio da remuneração de agricultores, para que façam o manejo sustentável dos recursos naturais, eliminando técnicas tradicionais de plantio, como o uso do fogo para limpar a roça e de produtos agrotóxicos, e o planejamento do uso das propriedades para o longo prazo.
Em seu desenho original, o Proambiente remuneraria os produtores com recursos de um fundo ambiental, formado com a participação também do governo federal. O fundo, entretanto, não se materializou, e os idealizadores propuseram a incorporação do programa pelo Estado como forma de fazê-lo crescer e ganhar força. Mas, ao se tornar política pública, ficou refém do orçamento federal.
Apesar de legitimado pelos movimentos sociais e necessário para incentivar a produção ambientalmente responsável onde ela é mais urgente – em áreas de floresta -, o Proambiente hoje é visto por muitos como mais um programa de transferência de renda, com um viés ambiental. Seus dilemmas são os mesmos que enfrentam esquemas semelhantes de pagamento por serviço ambiental América Latina afora.
Um pouco de história
Foi em 1998 que Airton Faleiro, agricultor familiar em Santarém, sindicalista por mais de 20 anos e hoje deputado estadual no Pará, decidiu ver para crer. Ele apostou na promessa dos agroecologistas de um potencial mercado consumidor para produtos sustentáveis e passou a plantar café em consórcio com mogno, fez aceiros verdes com abacaxi e curuauá, semeou cupuaçu e pupunha, além de mudas nativas, para enriquecer áreas de floresta exploradas pelos madeireiros. E desenvolveu um sistema para proteger as lavouras do fogo.
Um ano depois, Faleiro percebeu que gastava mais que o previsto e que os benefícios seriam colhidos só a longo prazo. Para arcar com o custo da produção a curto prazo, imaginou, era preciso remunerar os agricultores familiares – que haviam se endividado ao tomar o crédito oferecido pelo Fundo Constitucional do Norte (FNO) ao longo da década de 90.
“A avaliação na época, a partir de nossa visão como agricultores, era de que podíamos gerar um serviço ambiental, que deveria ser remunerado”, lembra Faleiro. “Todo mundo quer a preservação da Amazônia, dos biomas, mas não podíamos bancar isso sozinhos”. Ele apresentou a idéia, as federações dos trabalhadores na agricultura dos estados da Amazônia (as Fetag) encamparam e instituições como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e a Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) participaram da elaboração.
“O Proambiente nasceu de algo que outros programas agrícolas não têm, a base de apoio da sociedade”, destaca Paulo Moutinho, coordenador do Programa de Mudança Climática do Ipam. Foi essa mesma base que propôs ao governo a incorporação, na esperança de que o Proambiente deixasse de ser piloto e se estendesse a outros biomas além do amazônico. A idéia era que a incorporação representasse uma saída para gerar recursos para remunerar os agricultores, conta Faleiro.
Hoje o Proambiente está alocado na Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável, do MMA, e continua piloto. “Deixou de ser um programa piloto de comunidade para ser um piloto de governo, atendendo um público pequeno e de um único bioma”, diz Faleiro.
Bolsa-família ambiental?
Além do pagamento por serviços ambientais, o Proambiente tem mais uma característica inovadora, acredita Cássio Pereira, que participou, na época pelo Ipam, da elaboração do programa e hoje é diretor de Articulação de Políticas para a Amazônia na Secretaria de Coordenação da Amazônia do MMA. Trata-se do Plano de Utilização das Unidades de Produção, por meio do qual os agricultores recebem assistência técnica especializada.
O plano serve de base para um projeto de desenvolvimento sustentável da propriedade durante os 15 anos previstos para o Proambiente. Uma equipe técnica dialoga com as famílias, estuda possibilidades de plantio, divide a propriedade e decide junto com o agricultor quais são os serviços ambientais possíveis de prestar à sociedade, explica Pereira.
Esse ciclo foi cumprido para as cerca de 2 mil famílias que hoje recebem, em caráter piloto, R$ 100 por mês por serviços ambientais. Não há, por conta da impossibilidade orçamentária de destinar assistência técnica permanente, um trabalho contínuo de monitoramento dos serviços. Segundo Luciano Mattos, gerente do Proambiente de 2003 a 2004 e pesquisador da Embrapa, o trabalho é feito por agentes comunitários. Mas há descontinuidade devido ao caráter temporário dos contratos de trabalho dos agentes, acrescenta Mattos.
O monitoramento dos serviços ambientais pelos quais os agricultores recebem visa não só mapear os ganhos socioambientais, mas também prestar contas à sociedade. Para Paulo Moutinho, se a falta de monitoramento contínuo se perpetuar, há um sério risco de o programa resvalar para o assistencialismo.
Os sem-orçamento
O universo de agricultores que recebem o recurso do Proambiente ainda é pequeno em relação à quantidade de famílias que o programa pretende atender. A proposta inicial previa uma etapa de implantação de dois anos em 5.200 unidades produtivas em 13 pólos pioneiros – divididos de acordo com o número de famílias, de cidades e o tamanho da área -, e uma etapa de consolidação de 15 anos, cujos custos estimados mostraram-se muito elevados. A idéia inicial era pagar um salário mínimo mensal aos agricultores pela produção de serviços ambientais.
Mesmo com a redução do pagamento para R$ 100 mensais, ou R$ 1.200 por ano, o custo total seria de R$ 6,24 milhões por ano somente para o pagamento por serviços ambientais para o número de famílias previsto. O gasto não é alto se comparado a outras despesas do governo, mas difícil de ser mantido em um orçamento público cada vez mais reduzido.
Na proposta entregue ao governo, os recursos para o pagamento por serviços ambientais deveriam ser originados pelos rendimentos de um fundo criado para esse fim. Mas o que acontece hoje é o pagamento com verbas orçamentárias do MMA. Para estender o programa aos 2,7 milhões de agricultores familiares de baixa renda ou quase sem renda no Brasil, seriam necessários R$ 3,24 bilhões por ano – o que elevaria o valor total do fundo para, pelo menos, R$ 32,4 bilhões, considerando um rendimento de 10% ao ano.
Segundo uma análise do orçamento federal feita por Renato Dutra, Adrilane de Oliveira e Alexandre Prado, da organização não governamental Conservação Internacional, a previsão de todas as despesas do MMA para 2006 é de pouco mais de R$ 2 bilhões. Considerando que R$ 751 milhões destinam-se à reserva de contingência, R$ 620 milhões a apoio administrativo, R$ 139 milhões à Previdência e R$ 74 milhões ao pagamento do serviço de dívida externa, sobram R$ 485 milhões. Excluindo gastos com pessoal e encargos, restam R$ 92 milhões livres para investimentos.
Nesse valor final é que estão alocados os recursos para o Proambiente, hoje de cerca de R$ 4 milhões ao ano. O montante representa 0,2% das despesas previstas do MMA, que por sua vez equivalem a 0,12% do orçamento público federal e a 0,54% do total destinado aos ministérios.
Para Gilnei Viana, secretário de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável, encontrar recursos é um dos maiores desafios a ser superados. “Nesta circunstância fiscal é difícil construir um fundo dessa natureza”, admite. “Estamos considerando a possibilidade de criar bases legais para alavancar o programa, e pensando também em formas alternativas.”
Entre elas, estão prêmios por sustentabilidade ambiental – que representariam um corte de 10% a 15% nos encargos devidos pelo produtor rural – ou a criação de um mercado autônomo de serviços ambientais por meio de contratos com empresas que precisam preservar e fazer manutenção do meio ambiente. “São apenas alternativas, o ‘plano A’ do Proambiente continua como está”, diz Viana. “Mas demora muito tempo para criar este fundo e gerar escala. Não podemos iludir as pessoas e achar que vai se expandir agora.”
Lacuna na legislação
Na opinião de Carlos Eduardo Young, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o programa sofre desde o início com a criação de expectativas sobre a alocação de recursos, sem que esteja claro como encontrar fontes extra-orçamentárias para gerá-los.
“Talvez fosse mais produtivo assumi-lo como programa de transferência de renda em vez de buscar recursos que nunca chegam para pagar pelos serviços”, diz. Ou reorientar os atuais programas de distribuição de renda para populações rurais, introduzindo critérios ambientais, acrescenta o economista. Estima-se que, através de programas como o Bolsa-Família, o governo federal distribua cerca de R$ 8,2 bilhões por ano. “Qual seria o efeito de associar metas ambientais a esse programa?”, questiona Young.
Luciano Mattos atribui a falta de recursos que não sejam provenientes do orçamento do MMA a uma lacuna na legislação brasileira. “Até existem fundos que poderiam adaptar-se a essa realidade, podem-se taxar atividades como as relacionadas ao petróleo, ou fazer uma substituição, como o ICMS Ecológico”, afirma. “Temos que usar a criatividade para chegar lá.”
Um grupo de trabalho (GT) destinado a montar uma política para a institucionalização de esquemas de PSA no País foi criado pelo governo em julho, com prazo de dois meses para apresentar uma proposta em forma de projeto de lei. O prazo, entretanto, foi considerado insuficiente para discutir todos os aspectos desse arcabouço político e atrair a participação da iniciativa privada, até agora distante do debate.
Young destaca a atuação dos governos, não só na esfera federal, na criação de regras que permitam o pagamento por serviços ambientais, como no caso do Proambiente. Ele lembra que o Acre discute legislação específica sobre o assunto e vários estados preparam-se para institucionalizar o mecanismo da servidão florestal – quando um proprietário rural aceita averbar a reserva legal de terceiros em sua propriedade mediante pagamento.
“O problema tem sido a pouca ação do setor privado”, aponta o economista. “As associações empresariais adoram dizer que estão agindo a favor da sustentabilidade, mas, quando medimos os gastos efetivos, verificamos que são muito menores do que os gastos públicos. É preciso que o setor privado vá além da retórica e aja, de fato, em prol da conservação”.
Ganha quem não desmata
Uma das possíveis soluções para remunerar os agricultores é a captação de recursos a partir do desmatamento evitado. “Evitar o desmatamento é muito menos custoso do que plantar árvores. Em termos de benefícios para atmosfera, é muito mais eficiente”, diz Paulo Moutinho, do Ipam.
Se a manutenção da floresta em pé fosse elegível para receber créditos de carbono que pudessem ser comercializados nos moldes do mercado regulado pelo Protocolo de Kyoto, como propõe o Ipam, os recursos gerados poderiam ser utilizados no pagamento de agricultores que, ao usar práticas mais sadias de manejo da terra, produzissem os serviços ambientais necessários a sua comunidade e ao planeta como um todo.
O Proambiente mostra que, para os agricultores e suas comunidades, conservar pode ser um bom negócio. Mas seus dilemmas também indicam que é preciso ganhar eficácia. “Juntou-se um conjunto de sonhos e jogou-se tudo no Proambiente”, diz Cássio Pereira, do MMA. “Talvez seja preciso fazer uma reflexão, se dá para fazer tudo o que foi imaginado de uma vez só, ou recuar e simplificar.”