Com ruídos na comunicação, empresa e comunidade entraram em crise. Para superá-la, usou-se até teatro de bonecos
Na primeira semana em que assumiu a gerência de Relacionamento com Comunidades – uma área dentro da diretoria de Sustentabilidade da Natura – Fernando Allegretti teve de mostrar rapidamente a que veio. “Entrei e estourou a crise”, diz. Ele já havia assessorado a Natura quando trabalhava na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru, de onde se extrai o óleo de castanha que deu início à linha Ekos. Mas agora estava na posição de representante da empresa.
A crise a que Allegretti se refere envolveu a Natura e as “erveiras”, tradicionais vendedoras de ervas e outros produtos para rituais místicos, para medicação e aromatização no Mercado Ver-o-Peso, em Belém. Elas acusavam a Natura de ter se apropriado de seu conhecimento ao lançar produtos à base de essências da Amazônia, sem que fosse repartido com elas os benefícios resultantes da venda desses produtos.
As erveiras de fato tinham servido como “ponte” entre a empresa e comunidades tradicionais que cultivam raízes como a priprioca e extraem resinas de árvores como o breu-branco, cujas essências são utilizadas em banhos de cheiro das populações locais e viraram ingredientes de perfumes, desodorantes e águas de banho da Natura.
A empresa, que já havia protocolado uma série de pedidos de contratos no Conselho de Gestão de Patrimônio Genético (Cgen) – órgão do governo federal que regulamenta o acesso a patrimônio genético e a conhecimento tradicional e repartição de benefícios –, pela primeira vez se deparou com a necessidade de reparti-los não com os detentores originais do conhecimento, mas com o que se chama de “intermediários”.
Por ser a lei um tanto vaga e estar em processo de regulamentação, possivelmente a Natura ganharia a briga com as erveiras na Justiça, reconhece Allegretti. As erveiras, a rigor, não constituem comunidade tradicional, não têm um território reconhecido, e nem mesmo a associação que as congrega, a Ver-as-Ervas, estava oficializada na época.
Mas a empresa entendeu que, estrategicamente, deveria buscar um diálogo. “ Aproveitamos a crise de forma positiva, até para criar jurisprudência no País”, conta Marcos Egydio Martins, diretor de Sustentabilidade.
As erveiras se diziam usurpadas e o caso repercutia mal na imprensa. Elas se queixavam de que as comunidades tradicionais, por negociar diretamente com a Natura, teriam “infl acionado” o preço dos produtos e a empresa, copiado a forma de manipulação das essências. As relações começaram a se deteriorar. Além disso, segundo Egydio, o Ministério Público estadual queria impedir o nosso contato com elas, alegando risco de cooptação.
“Fomos proativos e chegamos a elas: ‘Qual é a bronca?’ ‘O que está acontecendo?’”, conta Allegretti.
Mas a comunicação não fluiria assim tão facilmente. Era preciso um “tradutor” capaz de atravessar o abismo cultural entre as partes. Então a empresa chamou à cena uma organização não governamental, o Centro Artístico Cultural Belém Amazônia, conhecido como Rádio Margarida, para que criasse um canal de entendimento.
“Havia um verdadeiro telefone sem fi o, envolvendo até pessoas terceiras que davam palpites e infl uenciavam as erveiras”, conta Osmar Pancera, presidente da instituição conhecida por ter criado um método de educação popular juntamente com a Universidade Federal do Pará. A proposta foi realizar uma encenação do teatro de bonecos. E funcionou.
A primeira etapa, diz Pancera, foi observar como se davam os ruídos de comunicação. A segunda, construir uma linguagem que se apropriasse do imaginário das erveiras e das comunidades, de forma que a Natura conseguisse dialogar com essas partes. “Tivemos de nos debruçar sobre o texto da legislação (de acesso a patrimônio genético e repartição de benefícios), e traduzir o juridiquês para o português. Mesmo assim, a mensagem continuava hermética. Era preciso passar o português para o paraense, incorporando todos os trejeitos e as características locais”, conta.
A primeira encenação, acompanhada de uma apresentação de PowerPoint, serviu para quebrar o gelo. A Rádio Margarida havia criado dois personagens, o Seu Birico, integrante de uma comunidade do Alto Juruá, onde a Natura já havia atuado, e a Dona Filó, uma erveira. Seu Birico queria casar com Dona Filó, mas ela não queria saber de conversa.
“Na segunda apresentação”, conta Pancera, “a gente conseguiu restabelecer o diálogo com as erveiras”. Mas Dona Filó era muito desconfiada e queria levar tudo para o papel. “E, na terceira, conseguimos costurar um acordo. Nesta última encenação, Birico finalmente se casava com Filó.”
“Hoje a gente até esquece que teve esse equívoco”, diz Deuzarina Correia, a Dona Deuza, presidente da Associação Ver-as-Ervas. “Agora está tudo resolvido, mas precisa ter o olho no olho.”
Impressão digital
Na avaliação de Maristela Bernardo, do IEB, a Natura já representa hoje um certo padrão de conduta socioambiental e conseguiu estabelecer um modelo de parceria para a exploração de recursos naturais com respeito aos direitos das populações tradicionais. “Evidentemente essa não é uma situação estática, é um investimento em cultura empresarial de ponta que precisa ser permanentemente cultivado e dinamizado para subsistir”, afirma.
A Natura tem todo o interesse nisso. Mais que o investimento na linha Ekos, a empresa está em processo de vegetalização de todos os seus produtos, ou seja, de substituição dos ingredientes de origem animal pelos de origem vegetal. E os grandes players nessa empreitada são as comunidades tradicionais.
Em dezembro de 2006, com a presença do advogado que representa a Natura e o da comunidade – este pago também pela empresa –, foi assinado um acordo com fornecedores de priprioca de Boa Vista do Acará, Cotijuba e Campo Limpo, vilarejos próximos a Belém, para repartição de benefícios por acesso a patrimônio genético e a conhecimento tradicional. Além disso, havia sido firmado um acordo para fornecimento do produto: 6 a 7 toneladas anuais, o que rende a cada família R$ 1 mil por safra.
As ações da Natura em Boa Vista ainda incluem a formação de um fundo de recursos para atender as necessidades locais e o desenvolvimento de projetos sustentáveis sob a assessoria do Instituto Peabiru. João Meirelles, coordenador do Peabiru, estuda a exploração de mel de abelhas nativas, de frutas e de ervas, atividades que proporcionam renda enquanto se mantém a floresta em pé.
O acordo aconteceu em clima de festa, em um galpão recém-construído na comunidade, com balões coloridos, fartura de comida e presença da imprensa – sob os olhares curiosos da pequena comunidade local. “Espero que essa parceria se prolongue por muitos anos”, disse na cerimônia Paulo Arara, habitante da comunidade que as erveiras haviam indicado à Natura para ter acesso à raiz.
“Antes a gente vivia só da venda da priprioca, da farinha e da macaxeira no Ver-o-Peso”, conta José Hélio Teles do Rosário, presidente da Associação dos Produtores de Priprioca de Boa Vista, que congrega 23 famílias, de um total de 150. “A gente não sabia que tinha esse direito (a repartição de benefícios)”. As demais famílias não quiseram participar do acordo porque, segundo ele, já houve ofertas de muitos projetos que não deram em nada.
Mas, desta vez, Rosário acredita que será diferente. “O pessoal da Natura disse que não pode queimar nem colocar veneno. Que é para a gente plantar em canteiro, não em roça queimada. Eles explicam o que é bom para a gente.”
Allegretti conta que, inicialmente, o contrato previa apenas repartição por acesso a patrimônio genético e não conhecimento tradicional também. Um primeiro acordo foi desenhado, mas desfeito. “Percebemos que estava errado e bateu um desespero. Achei que as pessoas da comunidade não estavam entendendo nada. Paramos tudo e começamos de novo”.
Hoje, ao ver a mãe de Paulo Arara assinando um contrato de complexos termos jurídicos com a impressão digital, Allegretti se diz mais tranqüilo. Bruno Kono, advogado da associação, afirma que o contrato foi construído cláusula por cláusula, refletindo as expectativas das duas partes. “As reuniões da associação foram feitas sem a presença da Natura e meu trabalho foi o de conscientizá-los sobre seus direitos”, diz Kono.
Ao fim da cerimônia, a emoção aumentou. Estava na hora de algumas pessoas da associação pegar um barco para uma longa viagem. O destino era a fábrica da Natura, em Cajamar (SP), onde veriam o processo de transformação da matéria-prima em produto final, e conheceriam o presidente e os conselheiros da empresa.
O barco os levou a Belém, de onde tomaram um avião pela primeira vez. Lá, ficaram hospedados no hotel cinco estrelas em que estava Allegretti. Alguns nunca tinham ido para além da capital. Nos preparativos da viagem, perguntaram se era preciso levar rede e corda.