Da periferia ao centro da cidade de São Paulo, a qualidade da água piora a cada dia. Todos conhecem as causas. É preciso repetir que a solução é urgente?
Por Flavia Pardini
O consumidor pode escolher este ou aquele produto, o serviço mais conveniente, a embalagem de menor impacto ao meio ambiente, e até optar por neutralizar as emissões de CO2 que suas atividades geram. Mas para uma necessidade diária e vital há pouca escolha: beber água. O líquido inodoro, insípido e incolor nem sempre sai nessas condições das torneiras na Região Metropolitana de São Paulo, a quinta maior área urbana do mundo. E, longe de ter escolha, os consumidores muitas vezes ficam sem água na torneira.
No quesito quantidade, o abastecimento para consumo humano na capital paulista está próximo do limite. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), a “produção” de água é de 66 mil litros por segundo, enquanto o consumo beira os 65 mil litros. A água que abastece a população metropolitana – que deve atingir os 19,5 milhões de pessoas em 2007, segundo a Fundação Seade – vem das bacias Guarapiranga e Billings, e do sistema Cantareira, este composto de cinco bacias.
Além do crescimento da cidade, que fez com que ao longo das décadas se fosse buscar a água cada vez mais longe, vive-se com o fato de que a região é naturalmente de baixa disponibilidade hídrica, situada em área de cabeceira de rios. Somado ao mau uso da água, o resultado é que a disponibilidade hídrica por habitante da região metropolitana é menor do que a do Piauí, um dos estados mais secos do País.
Não fosse pouca, peca pela qualidade. Ao contrário de Nova York, que investiu em um programa de recuperação e preservação das áreas de mananciais para evitar o gasto muitas vezes maior com uma unidade de filtragem, a água que mata a sede dos paulistanos depende de muito “remédio” – produtos químicos que fazem com que chegue às torneiras pelo menos com aspecto de água. Mas o que realmente se bebe?
Só para desinfetar
O Jardim Vera Cruz, parte do distrito do Jardim Ângela, é uma área de ocupação irregular em região de manancial, vizinha à Represa do Guarapiranga, que produz 14 mil litros de água por segundo e abastece 3,7 milhões de residentes na Zona Sul de São Paulo. Para quem vem do centro expandido da cidade, até chegar ao Vera Cruz são uns bons quilômetros dentro de área de manancial – e, portanto, de preservação –, mas o que se vê é apenas cidade. Cidade com cara de periferia, pontilhada de lojas de material de construção, pequenas oficinas mecânicas, o lixo e o entulho descartados impunemente pelas ruas e terrenos baldios.
De jardim, o Vera Cruz tem pouco. Parte do bairro foi pavimentada, apesar do loteamento irregular que se deu ali. Alguns moradores dispõem de instrumento de compra e venda do terreno que habitam e têm água encanada. Na conta, pagam pela água e pela coleta de esgoto, mas este último serviço não é prestado, conta Lindalva Maria de Oliveira, integrante de um grupo de 20 mulheres que tenta mobilizar os vizinhos por “melhorias”.
A solução foi um sistema improvisado de esgoto que desce a encosta em direção à represa, também salpicada de barracos e casas, todas em situação “irregular”. E assim o esgoto corre, parte em canos, parte a céu aberto, como na Viela Irmão Coragem. Ali reside Fernando Guimarães Carlos, 28 anos, há três no Vera Cruz. “O pessoal que mora lá em cima não está nem aí para quem mora aqui embaixo”, diz ele, ex-morador da rua de cima. Para sair do aluguel, optou por descer para a encosta.
“A represa é uma caixa de esgoto”, resume Lindalva. É de lá que sai a água que corre pelos canos até as torneiras de milhares de residências. Quem mora no centro não está nem aí para quem mora na periferia, que não está nem aí para quem teve de se encostar na represa. Mas todos bebem a mesma água.
Aílton Alves, educador popular, trabalha com o grupo de mulheres do Vera Cruz para ajudá-las a obter o que reivindicam. A prioridade, conta, é a pavimentação das ruas, seguida da construção do CEU Vila do Sol, da mudança de localização do posto de saúde e da construção de uma praça para área de lazer dos moradores. “A questão da água e do esgoto é pauta de discussão, mas não chega a ser prioridade”, relata.
Luz no fim do túnel?
A Guarapiranga é o único manancial da Região Metropolitana a contar com lei específica para sua proteção e recuperação, aprovada em 2006, embora a lei estadual de recursos hídricos determine a existência de legislação para todos os mananciais. Um decreto regulamentando a lei específica e distribuindo competências entre Estado e municípios foi finalmente publicado em março.
Há outros sinais positivos. Na esfera federal, entrou em vigor a nova lei de saneamento básico, que estabelece uma política nacional para o setor e o objetivo de tornar universais os serviços de abastecimento, esgoto, drenagem de águas pluviais e coleta de lixo. O Atlas do Saneamento do IBGE mostra que, no ano 2000, 60% dos brasileiros não dispunham de rede coletora de esgoto. Como resultado, apenas 20% do esgoto recebia tratamento. A partir de uma visita rápida ao Jardim Vera Cruz, pode-se imaginar o destino dos 80% restantes.
Para evitar que a situação do entorno da represa se repita um pouco mais além, surgem iniciativas para conservar áreas que ainda detêm vegetação e garantem que as fontes permaneçam limpas. Um exemplo é o Projeto Oásis, lançado em outubro de 2006 pela Fundação O Boticário com o objetivo de remunerar os proprietários de áreas preservadas, incentivando-os a mantê-las dessa forma. “O projeto em si não resolve o problema da qualidade da água”, diz João Guimarães, analista de projetos da Fundação O Boticário. “São ações complementares. Se o processo de degradação urbana chegar às fontes, condenaremos a represa como manancial de abastecimento público”.
Ainda há, portanto, uma escolha a ser feita. E não será por falta de conhecimento das causas que ela tardará. Ao pé da Viela Irmão Coragem, Seu Lauriano, um morador, improvisa o encanamento para evitar que o esgoto invada sua casa. Acelera, assim, seu caminho até as águas da represa. “Sei que isso é beira de rio, área de manancial”, diz ele. “Quem não sabe?”