Professor titular de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Gilberto Velho é um dos principais investigadores e intérpretes da cultura brasileira contemporânea. Especialista em culturas urbanas e sociedades complexas, tem sido articulador e incentivador de um diálogo mais estreito e permanente entre diferentes áreas das ciências humanas. Fazendo uma pausa na análise dos textos de uma nova coletânea de artigos sob sua coordenação, intitulada Rio de Janeiro: Cultura, Política e Conflito, cujo lançamento, pela Jorge Zahar Editor, está previsto pra outubro, Gilberto Velho fala sobre os impactos das novas tecnologias da comunicação e a respeito do que há de novo nas relações entre centro e periferia, mídia e sociedade no Brasil de hoje.
Por Flavio Lobo
PÁGINA 22: Qual o potencial democratizante das novas tecnologias de comunicação?
GILBERTO VELHO: Em uma sociedade complexa como a nossa, não há tradições isoladas. Temos uma noção, em antropologia, que fala de correntes de tradição cultural. Elas não só são dinâmicas, se deslocam, como estão se cruzando, se encontrando. Podem se encontrar harmoniosamente ou o encontro pode ser conflitivo para a sociedade. A sociedade não é só continuidade, estabilidade, ao contrário do que alguns pensadores conceberam. É repleta de conflitos de todas as espécies, de opinião, pontos de vista. Isso não é sinônimo de violência, mas o conflito pode até chegar à violência, algo que o Brasil vive intensamente. As novas tecnologias, como o rádio, do início do século XX, mudam muito os padrões de comunicação. O rádio teve uma evolução extraordinária, pessoas espalhadas por um território gigantesco passaram a ter acesso a informações, programas, a um tipo de cultura a que não tinham acesso. A televisão, no final dos anos 40 e início dos 50, foi mais um grande movimento na direção de transformação e introdução de informações. Agora, é importante não exagerar. Acho que em um determinado momento se superestimou a idéia do impacto da comunicação da cultura de massa. Porque ela, seja pela televisão, seja pelo rádio, não encontra “tábula rasa”, mas correntes dinâmicas de tradição cultural, que tanto não eram estáticas que foram capazes de lidar, de alguma maneira, com essas inovações, essas novidades.
22: Há exemplos, extraídos da pesquisa antropológica, desses encontros de correntes culturais propiciados pelas tecnologias da informação?
GV: Um colega, etnólogo, fazia pesquisas com um grupo indígena bastante isolado na Amazônia. O grupo tinha estabelecido contato havia pouco tempo, a maioria não falava português, e uma das primeiras coisas que aconteceu foi a instalação de uma antena de televisão na aldeia. E tinha um programa que todo mundo parava para assistir. Todos os índios, homem, mulher, criança, velho, se reuniam para ver o seriado Dallas. Mas por que Dallas? Depois de uma discussão, especulações — os antropólogos podem ter forçado um pouco a barra, é verdade —, chegou-se à conclusão de que uma trama sobre relações de parentesco, vingança, incesto trazia temas familiares ao universo cultural daquele grupo.
22: Há quem veja a mídia de massa e a indústria cultural como agentes a destruir implacavelmente culturas tradicionais, como se fossem tratores a desmatar florestas. Trata-se de uma visão simplista?
GV: Eu acho. As pessoas trazem consigo tradições, são portadoras de cultura, mas não portadoras passivas. É importante a relação entre indivíduo e sociedade. Os grupos e os indivíduos estão sempre interpretando o que vêem na televisão, o que ouvem no rádio, e também o que vêem pela internet. E não vão interpretar de uma mesma maneira. Mesmo que a internet tenha um papel universalizante, introduza uma tecnologia que chegará praticamente a todos e permitirá que se descubram coisas em comum, essa tecnologia, ao contrário de outras, dá a possibilidade de uma reinvenção. Se na televisão e no rádio as pessoas não podiam ouvir do modo que queriam, essa tecnologia de agora permite uma certa liberdade, não absoluta, evidentemente, mas uma liberdade de fazer suas combinações, suas sínteses. Juntando, não de uma maneira onipotente, porque ninguém está desprovido de fronteiras, todos estão situados em determinados mapas sociais e culturais.
22: Mapas e fronteiras sociais ficam realmente mais flexíveis com a internet?
GV: Eles podem assumir novos desenhos, sem necessariamente se flexibilizar. Uma coisa importante seria identificar esses mapas sociais e descobrir quem combina o que com quê. Quem vai buscar música clássica, quem vai buscar senhoras despidas em situações de maior intimidade, quem vai ver show de rock, quem vai ver jogo de futebol, quem vai ler Cícero. Outro dia eu estava lendo Cícero em latim na internet. Quem é que vai buscar Cícero na internet? Pesquisadores, acadêmicos, pessoas como eu. Mas posso buscar outras coisas também, posso buscar as senhoras em situação de certa intimidade, nada impede. É claro que diante de novas possibilidades também posso mudar os meus hábitos. Assim como as pessoas, as culturas, as correntes de tradição cultural mudam. Mas não a ponto de se anular, desaparecer. Então, as mudanças podem ser mais aceleradas, ou podem corresponder a uma continuidade, com alterações de ritmo, onde coisas permanecem, há algo por baixo que se mantém. A idéia de que a sociedade está sempre mudando deve ser de algum modo relacionada à idéia de que ela também tem elementos e mecanismos que a constituem, que a singularizam. O que faz com que desde concepções mais amplas – cultura francesa, cultura eslava, cultura chinesa – até dimensões menores – cultura da juventude, cultura militar, cultura estudantil, cultura da igreja – possam fazer sentido. São vários planos e dimensões, mas você pode fazer vários recortes. 22: O senhor fala em um potencial de mudança, mas não necessariamente de maior flexibilização. O que isso quer dizer? GV: É claro que existe democratização. Mas é importante lembrar que essas possibilidades, de ter acesso, fazer combinações, têm limite socioeconômico. No Brasil, a proporção de pessoas que têm acesso direto à internet, por exemplo, é pequena comparada a outros lugares do mundo. Está em torno de 15%, 20%, não é? Há uma vasta quantidade de pessoas que não têm esse tipo de possibilidade. Por outro lado, por mais flexíveis que sejam as possibilidades da internet, também há limites que são construídos por pessoas, por terem determinadas tradições culturais. O potencial de democratização não deve ser panfletado como uma homogeneização e um igualitarismo. É mais interessante um tipo de democratização que abra espaço para diversos temas, para uma multiplicidade de interesses, e isso tem acontecido de fato. Mas não vamos cair na onipotência de ignorar que existe um limite, que é dado pelas tradições, pelas correntes culturais, pela estrutura social, pela distribuição de poder – essas variáveis não são anuladas. Se não corre-se o risco de achar que, uma vez tendo acesso a computadores e internet, as pessoas estão livres da opressão familiar, dos limites impostos pelo Estado, atravessam o planeta livremente o tempo todo. É claro que a comunicação é muito melhor, muito mais rápida. Hoje, desde 8 da manhã, troquei três ou quatro mensagens com um colega em Londres, outro em Los Angeles. Somos acadêmicos, estamos discutindo um seminário – há por trás disso uma estrutura universitária, certos conhecimentos e premissas comuns. Ou seja, existem grupos que podem se comunicar de maneira mais efetiva porque compartilham determinados pontos de vista, determinada socialização básica, e outros, não. Continuarão existindo barreiras, impossibilidades de comunicação.
22: Isso pode levar ao fenômeno inverso, a formação de clubes fechados, por exemplo?
GV: Em alguns casos, pode até aumentar as diferenças, produzindo novos tipos de elite, de vanguardas, de pessoas que são capazes de construir códigos novos, de reinventar e fechar para os outros. Uma coisa até esotérica, o desenvolvimento de cultos esotéricos, em que só poderiam ter acesso àquele tipo de informação pessoas que preencham determinados requisitos. Requisitos estéticos, políticos, culturais. Taste culture, a cultura do gosto, é uma noção importante. Existem milhares de culturas de gosto. É interessante ver como as pessoas convivem com essas culturas, e o que combina com o quê. No exemplo americano, alguém que gosta de Mozart e de heavy metal, ou alguém que gosta de pintura impressionista e baseball. Ou, aqui, alguém que goste de samba e pagode e seja especialista em Graciliano Ramos. É possível, são culturas do gosto. A idéia de que as possibilidades são múltiplas é interessante, em termos de desfazer certas premissas sobre fronteiras cristalizadas. E tem a coisa da transgressão, as pessoas lidam com culturas em que a transgressão está envolvida, onde você tem desde a pedofilia até coisas menos graves.
22: Segundo um psiquiatra paulistano, há 20 anos um pedófilo tratava-se, em geral, de alguém que se considerava um monstro ou que, pelo menos, achava aquele seu impulso algo ruim, que deveria ser tratado, reprimido. Agora ele encontra um membro de uma comunidade internacional, que tem à disposição uma rede de afirmação daquela identidade. Esse seria um exemplo radical dessa multiplicidade de estilos de vida?
GV: Sem dúvida. É claro que existe uma socialização através da construção de redes. A noção de rede é fundamental. As redes, em princípio, são dinâmicas, supõe-se que atravessam barreiras, espaços materiais e simbólicos bastante significativos, e aí vem também um pouco da idéia de democratização. Mas eu insisto que ela deve ser relativizada, contextualizada. Anos atrás, quando houve uma onda de encher as salas de aula pelo Brasil afora com computadores, sem que os professores tivessem um salário decente, com os colégios desmoronando, era um despropósito. Essa idéia das novas tecnologias da informação e da comunicação como uma grande revolução progressista para humanidade, calma lá! O potencial positivo é imenso, mas certamente tem um lado de exclusão, e estimativas exageradas dos seus efeitos, abandonando providências políticas que poderiam ter significado e efeito muito importantes, necessárias. Um exemplo fundamental é o caso brasileiro, onde mais importante que tudo é preparar pessoas, termos melhores condições, salários, e dar condições de ensino aos alunos. Senão é uma grande ilusão. Uma vez criadas essas condições básicas, esplêndido, que venham os computadores. Mas não é o computador que vai produzir a boa escola.
22: Ficou muito fácil produzir, distribuir e vender música. No Pará, por exemplo, em qualquer esquina de Belém se encontra em um camelô Cds com 90, 100 músicas em MP3.
GV: É impressionante. E você mistura, pega o Frank Sinatra, junta com samba, e faz outra coisa. É a reinvenção. A Regina Casé tem mostrado um pouco isso, no Central da Periferia. É um programa impressionante. Uma aluna minha fez um trabalho sobre carreiras de músicos da Baixada Fluminense. Existem escolas de música que têm lá suas correntes de tradição cultural, e eles têm acesso à internet, sintetizam, produzem.
22: Conseguem se manter economicamente, existe uma rede que independe da grande indústria cultural?
GV: Digamos que eles se viram. Tocam em determinados lugares, têm outro emprego, mas participam de uma atividade musical e cultural muito intensa, é de fato fascinante. E isso leva a uma questão absolutamente interessante, que percorre essa conversa, que é a noção de autoria, quem é o autor. Você entra em uma página em que todo mundo pode mexer, cada um entra, diz o que acha, mistura tudo. E aí quem é o autor? Esse movimento antiautoria também é uma coisa complicada. A noção de autoria está ligada a uma determinada produção cultural, a valores ideológicos, à noção do indivíduo criador, até à noção do gênio, em certos casos. Uma outra senhora que trabalhou comigo fez um estudo sobre Bezerra da Silva. O Bezerra da Silva era um intérprete. Os autores das músicas que ele interpretava eram anônimos. Não que ele escondesse, mas quem eram aqueles autores? Geralmente pessoas do morro, da favela, das comunidades. Era ele o grande, o intérprete. É outra coisa comparar a interpretação da Nona Sinfonia de Beethoven regida pelo Bernstein. Mas é o Beethoven. E a interpretação do maestro faz com que ele seja, de algum modo, co-autor. Agora, no mundo da internet, em que há a possibilidade de combinar todos esses Cds e DVDs, realmente muda muito.
22: É possível imaginar aonde isso vai levar?
GV: Não sei se é possível prever para onde vamos. Acho que devemos ter mecanismos de defesa da autoria, de marcas originais, estabelecer certos limites. Mas as possibilidades de controle são muito limitadas. A parte dura dessa revolução do computador, da informática, é como se perdeu o controle dos limites que as pessoas imaginavam que tinham. Todo mundo hoje em dia pode produzir fenômenos extraordinários, como a eleição, em 2004, do presidente espanhol José Luis Zapatero, depois da tentativa do seu antecessor, José Maria Aznar, de atribuir aos bascos o ataque terrorista que aconteceu em Madri. O Zapatero venceu por causa de uma mobilização social pela internet, com as pessoas denunciando a manipulação eleitoreira do atentado. Mas há outras dimensões, como a invasão de privacidade. O garotão transa com a menina e depois coloca a transa na internet. Pode ter a aceitação da jovem, mas às vezes não. E como é que fica a lei neste processo? Como estar na frente do seu computador fazendo alguma coisa e choverem mensagens sobre as quais você não tem controle – não é só o lixo, pode ser desde propaganda política até proposta indecente? Quais são os limites da privacidade? De novo a questão do indivíduo. Por um lado parece esplêndido, faço minhas redes, vou pro Orkut, consulto o Google, e do outro lado tem isso.
22: Há pressão para que as pessoas mantenham os canais abertos, estejam sempre on-line, respondam o mais rápido possível.
GV: Outra pergunta é o que as pessoas deixam de fazer quando estão on-line. Não tenho a visão de que as pessoas vão ficar presas, não vão se interessar por outros assuntos. Pode até ser que descubram, tenham acesso a esses outros assuntos. É a questão da sociabilidade. Tenho uma outra aluna que faz uma pesquisa sobre a lan house em Porto Alegre. Os adolescentes passam o dia na lan house, a escola é perto e eles fogem para lá. E o que estariam fazendo se não estivessem lá, em termos de julgamento de valor? Será que estariam fazendo coisas melhores, mais interessantes para eles, para a comunidade, para a sociedade? É um mundo altamente complexo, com “n” possibilidades, em que podem acontecer as mais diversas coisas, justamente porque as interpretações são muitas e as possibilidades de se desenvolverem taste cultures diferenciadas são grandes. Mas com muitas direções. Certamente não se pode dizer que seja uma coisa apenas progressista, civilizatória e democrática.
22: A Bossa Nova e o Tropicalismo faziam uma certa releitura, partindo do que vinha da cultura popular. Atualmente, o hip-hop, o funk são produzidos na periferia e consumidos diretamente pela juventude de classe média. Existe uma necessidade menor de intermediação?
GV: No tempo da Bossa Nova havia figuras mediadoras mais claras. Mas a mediação sempre existe. No caso do funk, o (antropólogo e pesquisador musical) Hermano Vianna tornou-se amigo de um DJ famosíssimo. Quando fez a dissertação de mestrado dele, 20 anos atrás, ninguém sabia o que era funk. Veio falar comigo, pedi que me explicasse e ele me disse que todo fim de semana tinha 1 milhão de pessoas dentro do funk. Um milhão me convenceu plenamente de que era um fenômeno importantíssimo. Um dia, durante a pesquisa, o Hermano estava levando uma guitarra elétrica e eu disse que ele estava interferindo. Mas eram eles que estavam pedindo. Então é uma negociação com idas e vindas. Você tem mediadores. E tem uma maior intensidade, uma freqüên-cia maior. Aqui no Rio é diferente de São Paulo, a ida ao morro não era uma coisa tão extraordinária assim. Mas também mudou. Tem baile funk, baile do morro em que se encontram brancos de classe média, e baile funk de branco na Zona Sul. O funk entrou no circuito. Continuam existindo o baile da Rocinha, o do Chapéu Mangueira, onde vão brancos de classe média, mas também tem o baile da classe média. Assim como teve o forró, que fez sucesso em lugares de entretenimento da Zona Sul. As fronteiras não desaparecem, elas são negociadas, mas se mantêm. Existe uma troca cultural forte no Rio, desde muito tempo, encontros de Pixinguinha com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Essa é uma relação antiga entre níveis de cultura, culturas populares, de elite, eruditas. E se destacam em alguns momentos essas figuras-chave como mediadores. O que estamos vivendo, mais do que nunca, é uma sociedade de massas, os fenômenos são todos em grande escala. Não é como nos tempos da Bossa Nova. Uma moça, em Copacabana, é apresentada em um show a um compositor, convida-o para ir à casa dela, os pais acham ótimo, e pessoas se juntam, ficam tocando… Zé Kéti, Nara, Danuza… Cresceu muito a sociedade, fisicamente. É mais complexa sociologicamente, culturalmente e demograficamente. Os bailes são enormes, multidões. E que tipo de música é música de multidão? É isso.
22: E o discurso sobre a violência que vem por meio do funk e do hip-hop? No começo, em São Paulo, houve reação, as pessoas achavam aquilo apologia ao crime. Depois viram que não era tão simples.
GV: Aqui também houve. No fenômeno dos arrastões na praia, havia acusações de que eram galeras “funkeiras”. E existe o “proibidão”, que faria a apologia do crime. Mas isso é um movimento, existem vários tipos de manifestação. Outro raciocínio é pensar o que as pessoas estariam fazendo se não estivessem no baile funk. É um movimento intenso de sociabilidade, de criatividade. Não dá para dizer que não existem elementos e aspectos associados à violência, porque em muitos desses lugares são os bandidos que patrocinam. Isso faz parte de um universo mais amplo, onde estão presentes os traficantes. Vai desde atividades filantrópicas, que eventualmente eles fazem, até promover a organização de bailes funk. É um lugar de sociabilidade, de intensa atividade erótico-sexual. Não vou usar termos mais antigos, galanteios. É lugar de “pegação” mesmo, pesada. Há mais uma aluna que está fazendo um trabalho sobre meninas de classe média que subiram o morro, e namoraram por algum tempo jovens, afro-descendentes na maioria dos casos, alguns ligados ao tráfico. Fascinadas pelo mundo do funk. Mas isso não torna o funk uma explicação para violência. O mundo das favelas, da periferia, é um mundo violento. Não é resultado do funk. Ele é uma manifestação musical, cultural, que fala de um cotidiano, de temas violentos. 22: É a manifestação de uma corrente de tradição cultural? GV: No Brasil, o poder público não consegue controlar coisas elementares, não consegue entrar para coletar lixo. Existe, inegavelmente, a violência, e está piorando cada vez mais. A sociedade brasileira é violenta por natureza, existe uma cultura da violência disseminada, e que está se tornando uma dimensão de cultura da crueldade. O exercício da crueldade pode ser uma exibição, uma afirmação, ligado a um grande ressentimento da situação social. Mas isso não é justificável simplesmente pela ausência de recursos básicos para sobrevivência, porque, na maioria das vezes, são pessoas não tão pobres, que desenvolvem certas aspirações de consumo, que você vê envolvidas nessas histórias mais terríveis. Vendo as fotos desses jovens envolvidos na morte do menino João Hélio, são jovens “sarados”, com tatuagens, têm família. Há um trabalho que mostra que esses jovens freqüentam o shopping. O objetivo deles, com esses papéis mais ou menos transgressores, é poder ir ao shopping comprar tênis, camisa. E se vêem esses jovens, quando presos, vestidos desse jeito. Não é a revolta dos famintos. É uma sociedade complexa, que gera aspirações frustradas, em grande parte. E é um mundo de consumo. O funk, entre outras coisas, expressa isso.
22: Durante a campanha de reeleição do presidente Lula, em muitos momentos a mídia explicitou grande incompreensão quanto à popularidade dele. Isso revela um fenômeno novo na relação mídia-sociedade, centro-periferia?
GV: Acho que o governo Lula tomou medidas indiscutivelmente importantes. Por mais crítica que se faça ao Lula, que seja ele paternalista etc., o fato é que melhorou, quebraram-se algumas barreiras. Por outro lado, não se podem alimentar fantasias de que foi simplesmente um grande avanço democrático. Foram feitas alianças com oligarquias. Se, de um lado, atendeu camadas populares, mais pobres, como no Bolsa Família, por outro, deixou-se de lado uma certa ortodoxia de esquerda petista. Lula foi politicamente pragmático e se aliou a oligarquias, a Sarneys e Barbalhos, por exemplo. Esse é um jogo complicado.