O investimento intensivo em novas tecnologias da biomassa, dentro de um capitalismo com preocupações socioambientais, daria ao Brasil condições de abrir um novo caminho para a humanidade, diz Ignacy Sachs
Por Amália Safatle e Flavia Pardini
PÁGINA 22: O que a bioenergia significa para o Brasil?
Ignacy Sachs: O Brasil está vivendo um mom ento d e ex cepci onal impor tânc ia. O que parecia uma possibilidade, a expansão da bioenergia, praticamente pode ser considerada uma certeza. O mundo acordou, talvez, tarde demais, mas acordou. E está querendo resolver esses problemas. Para o Brasil não é só a substituição das energias fósseis: é uma oportunidade ún ica d e avançar no debate sobre um projeto nacional, sobre o papel que poderia desempenhar neste projeto nacional: um ciclo de desenvolvimento rural baseado na revolução duplamente verde, não apenas a revolução produtiva, mas conseguindo os objetivos produtivos com o respeito à natureza, e voltados ao agricultor familiar.
22: O quanto o governo está aberto a esse tipo de sugestão?
IS: Se a gente olha r as reun iõ es q u e h ouve sobre reforma a grária promovida pela FAO no ano p assado, em Porto Alegre, e pensa r nos d elineamentos do programa do biodiesel, existe neste governo uma co n sciência desse s problemas. A questã o é até onde vai essa consciência na defi n ição d a est r atégia de desenvolvimento – a supor que haja uma estrat égi a de d ese nvolvimento a longo prazo do País . Essa é a mensa gem central de Celso Furtado nos últimos anos de sua vida: temos que p ôr em execução um pr oj eto naci ona l. Não vejo sinais a pa rent es de q u e essa d iscus são esteja acontece n do.
22: Existe essa demanda por parte da sociedade? Como o senhor vê os movimentos sociais?
IS: Todo mundo fala em projeto nacional, mas entre o discurso, a retórica, e a prática vai uma di stâ n ci a mui t o grande . A bioenergia pode mudar o futuro do Brasil rural num sentido muito positivo ou num sentido extremamente nega tivo, porque p odemos construir a me sm a ma tri z energética em m ode lo s so cia is diametralme n te opostos. Um a agricultura sem ho me n s, altam ent e mecanizada, e os refugiados do campo nas favelas. Este é um dos cenários que pintam.
22: O senhor propõe a criação de uma Agência Nacional de Bioenergia para que se estabeleça essa política no País?
IS: Meu papel não é propor. Apenas diria que precisamos ser claros. Deveríamos definir uma estratégia de promoção da bioenergia que utilize critérios ambientais, sociais e econômicos, que tente substituir o mais rápido poss ível as energias fósseis por renováveis, que o faça de maneira a gerar o máximo de oportunidades de trabalho decentes e que seja econom icamente viá v el. Os cri té r io s do custo mínimo não atendem por si sós aos critérios sociais e ambientais. Devemos ter algum instrumento de política pública que corrija aquele custo-benefício.
22: Como essa política tem de ser construída? Com a participação da sociedade, as várias áreas do governo?
IS: Para mim, dentro do que eu chamaria de “capitalismo reformado”, é óbvio que essas políticas têm de ser negociadas entre todos os stakeholders, ou seja, todas as forças sociais interessadas em uma negociação, que, a meu ver, será cada vez mais quadripartite – empresário s, tr ab alhadore s, Estado e a sociedade civil organizada.
22: Esse debate já não é tardio? Não deveria ter acontecido antes da febre atual em torno da bioenergia?
IS: Nunca é tarde demais enquanto não morremos. Não vamos discutir se perdemos anos preciosos, mas coloquemos a mão na massa! Vamos discutir os instrumentos de política que podem ser fiscais, creditícios ou administrativos. O capitalismo reformado reconhece a importância do mercado e, ao mesmo tempo, a necessidade de regulá-lo e de regulá-lo sob critérios sociais e ambientais.
22: O capitalismo reformado existe na prática em algum lugar?
IS: Surgiu no fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo funcionava com base em três idéias, reconhecidas dos dois lados da Cortina de Ferro: o pleno emprego deveria ser o objetivo social número 1, mas isso não bastava, era preciso o funcionamento de um estado protetor, um Welfare State. E, para não desperdiçar recursos, era preciso planejar. Assim tivemos 30 anos do que alguns chamaram de a idade de ouro do capitalismo, de 1945 a 1965. Com crescimento econômico, i m p ac tos socia is raz o áveis e destruição. Maciça do meio ambiente. A partir daí veio a revolução ambiental nos 60 e início dos 70. No mesmo período, o socialismo real começou a entrar em colapso com a invasão da Tchecoslováquia e, 20 anos depois, terminou com a queda do Muro de Berlim. O socialismo real perdeu encanto aos olhos de grande parte da opinião pública ocidental e entramos em fase de contra-reforma capitalista, que tentou voltar para o capitalismo puro e duro, levando ao Consenso de Washington e a outras aberrações. Não temos de voltar para trás, mas repensar as tarefas para o futuro em uma visão de capitalismo reformado, que não se subordina ao mercado.
22: Hoje há um consenso mundial de que é preciso reduzir a dependência do petróleo. Até nos EUA é perceptível essa consciência, mas na verdade isso vem vindo há muito tempo. O que foi que fez mudar “a chavinha” ali?
IS: Tem dois el ementos importantes. Prim ei r o , o d is cur so do s c ie nt is ta s sobr e o aquecimento global, que começou a chegar à cabeça dos responsáveis. Segundo, e mais importante: a enorm e vulnera bi lidade do m u ndo em funçã o d a dependênc ia do petróleo do Ori ente Médio e a catástrofe da guerra do Iraque. Não por acaso, um dos mais influentes estudos americanos sobre a necessidade de substituir as importações de petróleo pelos biocombustíveis e pela conservação da energia foi co-financiado pelo Pentágono. Os militares devem ter entendido que a hipótese da manutenção das linhas de abastecimento do Oriente Médio vai custar cada vez mais em dinheiro e recursos humanos e em perda de prestígio dos EUA.
22: É uma mudança de estratégia nacional dos EUA bastante radical?
IS: Quando eles decidem mudar, têm essa capacidade de mobilização, o que foi sempre uma das características do dinamismo americano. Lembrem-se do Manhattan Project para fazer a bomba atômica. Os militares têm esse raciocínio: precisa de bomba atômica, vamos fazer a bomba atômica.
22: Precisa do etanol, vamos lá!
IS: Vamos lá. Hoje estão fazendo a partir do milho, o que é um absurdo, mas estão investindo em fábricas de etanol celulósico. O Brasil bem faria em olhar a coisa de perto. O Brasil tem tudo para acompanhar isso, mas as condições do mercado mundial vão mudar. 22: É possível que a solução do etanol celulósico venha dos EUA? IS: É certo que ela vai partir, entre outros lugares, de lá. As patentes existem inclusive no Brasil. A Dedini tem uma patente para produzir etanol a partir do bagaço. Só que é caro. Portanto, a grande competição dos próximos anos será a seleção das enzimas que permitem baixar sensivelmente o custo da hidrólise enzimática. Ouvi falar que as enzimas mais interessantes foram identificadas no estrume do elefante e nas entranhas da saúva. Incrível, mas o elefante e a saúva têm uma coisa em comum: comem muita celulose.
22: O Brasil está estudando isso?
IS: O Brasil entra nessa competição com uma vantagem comparativa forte na questão do etanol. Agora, dormir sobre os louros não seria razoável. Essa competição internacional vai depender muito da pesquisa. Para quem tenta estudar o caso brasileiro de fora, como eu, há sempre um grande número de informações que não tem como aceitar ou descartar. Li, por exemplo, no boletim da Fapesp, a informação de que no caso do óleo do que as estatísticas do IBGE mostram.
22: O senhor já disse que o futuro do Brasil é o reflorestamento…
IS: Vocês têm 5 milhões e meio de hectares de florestas plantadas. E 50 milhões a 100 milhões de hectares de áreas que foram desmatadas e deveriam ser replantadas. A opção do plantio de florestas econômicas consorciadas com outras atividades – para que não seja novamente geração de monolatifúndio – é o grande futuro do Brasil, porque aqui as árvores crescem muito depressa.
22: Seriam florestas para quê, para madeira, para papel, para álcool?
IS: Da mesma forma que petrolíferas devem virar empresas de energia, as fabricantes de celulose e papel deveriam virar empresas de biomassa. Porque essa biomassa de origem florestal serve para fazer papel, todos os derivados de madeira, energia, carvão vegetal, construção, outras fibras – a Hugo Boss está vendendo camisas de bambu. Portanto, vocês têm um enorme leque de coisas para fazer a partir da árvore. Esse é o desafio do momento. Biomassa é alimento, é ração animal, é bioenergia, é adubo verde, é material de construção, é matéria-prima para todas as indústrias, é a química verde, farmacologia e cosmética. Tudo isso é biomassa. Saberemos caminhar para essa civilização, dentro dos preceitos da revolução duplamente verde e orientada para a geração de um grande número de oportunidades de trabalho decentes? Aí o século XXI será bem diferente dos dois anteriores, dominados pela industrialização à base de energia fóssil, barata. É um novo caminho que se abre para a humanidade. Ou saberemos fazer isso ou não teremos…
22: …Século XXII!