“Ontem (5 de abril de 2007), segundo a Folha (de S.Paulo) apurou, a delegação brasileira fazia objeções a uma referência à savanização da Amazônia, causada pelo aquecimento global, no texto final do sumário.”
A delegação brasileira na reunião do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC) não teve sucesso em apagar a menção à savanização e do resumo do relatório do Grupo de Trabalho II, que trata dos impactos das mudanças climáticas e da adaptação, consta esta declaração: “Até meados do século, aumentos na temperatura e a diminuição da quantidade de água no solo devem conduzir à substituição gradual da floresta tropical por savana na Amazônia Oriental”.
A possibilidade de a Floresta Amazônica ser substituída por savana é levantada em nada menos que quatro capítulos do relatório (capítulos 2, 4, 5 e 13). Os três primeiros baseiam-se nas previsões do Centro Hadley do Escritório Meteorológico do Reino Unido, cujo modelo produz os resultados mais catastróficos para a Amazônia. No capítulo 13, que trata da América Latina, a hipótese de que a savanização aconteceria com mais de 80% de probabilidade leva em conta uma série de modelos diferentes e não depende apenas dos resultados do modelo do Centro Hadley.
A grande diversidade de resultados previstos por meio de diferentes modelos climáticos, tanto para o mundo como para a Amazônia, não traz conforto. As projeções para as temperaturas globais, divulgadas pelo IPCC em fevereiro de 2007, indicam um aumento máximo de 4 graus acima dos níveis pré-industriais até o ano 2100. Este é
o cenário A2 (gráfico), cujas premissas são de que a industrialização e o crescimento populacional vão continuar de forma diferenciada em diversas partes do mundo, e que o aumento da eficiência tecnológica será modesto.
Embora o IPCC não use o termo business as usual, isto é o que o cenário A2 está mais próximo de representar. Outros três cenários partem de tendências atuais, presumindo que o crescimento da população e/ou o impacto da industrialização sejam reduzidos.
Cachinhos dourados
A maioria das pessoas, quando confrontada com uma série de resultados, tende a considerar que o médio é provavelmente o mais correto. A lógica não se aplica a esse caso. Em vez disso, é a curva mais alta do gráfico – que corresponde ao cenário A2 – a mais provável de ocorrer se não houver mudança de política para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
A “falácia dos Cachinhos Dourados”, na qual se assume de antemão que o valor mediano é “certinho”, serve à avaliação dos resultados de modelos de clima de várias maneiras. Cachinhos Dourados é a menina no conto de fadas que vaga pela floresta e encontra uma cabana onde vivem três ursos. Eles haviam colocado três tigelas de mingau na mesa para esfriar, enquanto passeavam pela floresta. Cachinhos Dourados prova o mingau do Urso Pai e acha que está muito quente, o da Ursa Mãe é muito frio, e o do Urso Bebê é “certinho”. Infelizmente, esta não é uma boa maneira para escolher entre diferentes modelos climáticos e os valores dos parâmetros que os alimentam.
Até mesmo um aumento de 4 graus acima dos níveis pré-industriais é modesto do ponto de vista do que poderia ocorrer na Amazônia. As temperaturas nos cenários previstos pelo IPCC representam médias para o planeta como um todo. Elas são influenciadas, entretanto, pela temperatura do ar acima dos oceanos – a maior parte do planeta é coberta de água –, que sobe menos do que na superfície terrestre. A temperatura média na superfície dos continentes seria aproximadamente 30% mais alta do que a média global.
Além disso, os cenários mostram médias ao longo do tempo, mas a temperatura varia de um dia para outro, com a possibilidade de picos muito mais altos do que a média. Em 2003, uma onda de calor causada pelo fenômeno El Niño matou 32 mil pessoas na Europa. O relatório do IPCC indica que, no cenário A2, ondas de calor dessa magnitude ocorrerão, em média, a cada dois anos até 2080.
Os valores dos cenários do IPCC expressam a temperatura média não apenas ao longo do tempo, mas também em termos espaciais. Além de os continentes estarem mais quentes do que a média global, alguns lugares nos continentes experimentarão aumentos bem maiores que outros. É aí que o modelo do Centro Hadley cria um cenário catastrófico para a Amazônia, com temperaturas aproximadamente 40% mais altas que o resto do continente.
El Niño permanente
O modelo do Centro Hadley exibe tais resultados porque insere o clima global em um contexto de “El Niño permanente”, coisa que outros modelos climáticos ainda não levam em conta. Junto com temperaturas mais altas, o El Niño permanente causaria redução significativa da chuva e prolongamento da estação seca na Amazônia. Na ausência de ações de mitigação do efeito estufa, tal cenário prevê a extinção da Floresta Amazônica até aproximadamente 2080.
Reduções significativas da precipitação e da vazão dos rios na Amazônia não são resultados restritos ao modelo do Centro Hadley – outros dois modelos também mostram reduções grandes. No entanto, alguns deles indicam pouca mudança e um até aponta aumento.
Diante desses outros modelos, por que acreditar no do Centro Hadley? A gama de resultados diferentes leva à tentação de usar a média de todos eles. Mais uma vez essa reação natural não é apropriada. A abordagem no estilo Cachinhos Dourados não substitui o exame e a comparação de cada modelo com o que sabemos sobre
o clima real na Amazônia.
A modelagem de clima avançou muito desde o último relatório do IPCC em 2001, mas variáveis importantes ainda existem entre as diferentes abordagens. Um avanço é que hoje eles concordam que o aumento do efeito estufa criará as chamadas “condições tipo El Niño”. Ou seja, o aquecimento da superfície da água no Oceano Pacífico, gatilho para eventos do El Niño. A ocorrência de “condições tipo El Niño” difere de eventos do El Niño em si, relacionados com secas e inundações em diferentes locais ao redor do mundo.
Hoje se sabe que o El Niño causa secas na Amazônia, e essa conclusão não depende de modelos de clima. Sempre que as águas superficiais do Pacífico esquentam, há secas e incêndios florestais na Amazônia, como ocorreu em 1982, 1997/1998 e 2003. A relevância dos resultados de qualquer modelo para a Amazônia, portanto, depende da inclusão de uma representação realística desse efeito. Se há modelos que indicam aquecimento da água no Pacífico sem maiores efeitos na Amazônia, isto não significa que a Amazônia esteja mais segura, mas que ainda falta incluir algo nos modelos.
Bastam 50%?
A interpretação dos resultados dos modelos de clima depende de outra consideração básica. Para gerar temperaturas simuladas, os modelos usam a chamada “sensibilidade climática” – a média de aumento da temperatura da superfície global, acima de níveis pré-industriais, se a concentração de CO2 na atmosfera fosse o dobro da préindustrial. Antes da Revolução Industrial havia 280 partes por milhão por volume (ppmv) de CO2 na atmosfera, e hoje já são 383 ppmv. Estima-se que a concentração dobre em relação ao nível pré-industrial antes de 2070 caso não haja a mitigação das emissões.
O valor mais provável para a sensibilidade climática, e que alimentou os cenários do IPCC, é um pouco abaixo de 3 graus. “Mais provável” significa, porém, que há uma probabilidade de 50% de que o verdadeiro valor seja menor, assim como uma chance de 50% de que seja maior. O valor para a “alta sensibilidade climática” – que significa que há 95% de certeza de incluir o valor verdadeiro – é de 6,2 graus, segundo uma revisão dos dados sobre a reação do clima às variações na concentração de CO2 ao longo da história geológica.
Publicada na Nature em março de 2006, a revisão traz um valor substancialmente mais baixo do que estimativas anteriores, mas ainda devastador em suas implicações.
O princípio de precaução ensina que se deve planejar com base em um cenário pessimista com alto grau de certeza a fim de não se ignorarem os impactos. Por exemplo, se alguém que mora em um prédio de apartamentos perguntasse a um engenheiro se o edifício poderia ruir, como aconteceu com o Palace II em 1998, ficaria satisfeito com uma resposta de que é “provável” que o prédio permaneça em pé? Isso pode significar que há uma chance de 51% de que o edifício se mantenha em pé e uma chance de 49% de que caia ao chão. Certamente os moradores não se satisfariam com a segurança de apenas “mais de 50%”, mas só com algo acima de 99%.
Da mesma maneira, para os habitantes do planeta Terra, fazer planos a partir da hipótese de que a temperatura média global vai subir 4 graus ignora o fato essencial de que há uma chance de 50% de que o aumento seja maior, e possivelmente muito maior.
Lenha na fogueira
Quando as temperaturas aumentam, as árvores precisam de mais água para sobreviver. Se a estação seca se prolongar, muitas não terão capacidade para resistir ao estresse hídrico e morrerão, literalmente, de sede. Isso é evidente nos dados do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), desenvolvido pelo Inpa e o Instituto Smithsonian próximo a Manaus, que possui mais de 80 mil árvores mapeadas, etiquetadas e monitoradas em um estudo que dura 27 anos.
A taxa de mortalidade de árvores localizadas a até 300 metros da borda da floresta é muito mais alta do que a de árvores no interior da floresta. Isso porque enfrentam um microclima alterado, semelhante ao que pode ser esperado para a floresta inteira sob as mudanças climáticas projetadas.
As árvores grandes morrem primeiro, o que libera grande parte do estoque de carbono da floresta, contribuindo para um ciclo vicioso entre o aumento do efeito estufa e a mortalidade da floresta. As árvores grandes também mantêm a estrutura física da floresta – quando morrem, são substituídas por espécies típicas de florestas secundárias. Tais resultados foram confirmados pelo Seca Floresta, um estudo do Projeto em Grande Escala Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), que cobriu o chão em um hectare de floresta com painéis de plástico, simulando os efeitos de uma seca prolongada.
Os estudos do PDBFF e do LBA testam o efeito de aumentar o estresse hídrico, causando a morte das árvores em pé. Este também é o único efeito incluído no modelo do Centro Hadley, que indica uma mortalidade catastrófica da Floresta Amazônica até 2080. Na realidade, os efeitos da mudança climática poderiam ser muito piores devido a um outro elemento: o fogo. Incêndios florestais começam e se espalham com mais facilidade sob as condições quentes e secas que prevaleceriam com um clima alterado.
O perigo aumenta graças à mortalidade de árvores, a incêndios anteriores e à exploração madeireira que avança em áreas de floresta previamente intactas. A construção de estradas e a expansão de assentamentos e pastagens oferecem novas oportunidades para incêndios, como o grande incêndio de Roraima, ocorrido em 1997/1998 durante um evento do El Niño. Um “El Niño permanente” aceleraria muito essa forma de destruição da floresta.
O modelo do Centro Hadley não inclui o desmatamento direto. Entretanto, esse processo continua substituindo floresta por pastagem, reduzindo a evapotranspiração e a chuva na época seca e, portanto, vai se somando aos impactos do efeito estufa.
A possibilidade de a Floresta Amazônica extinguirse e ser substituída por savanas é real. Esse cenário não é inevitável, mas depende de decisões humanas sobre as emissões de gases de efeito estufa. O Brasil é um dos países que têm mais a perder com a mudança climática, e por isso deveria assumir a liderança, começando com a redução das emissões oriundas do desmatamento amazônico.
A demora em cortar as emissões é uma abordagem perigosa, especialmente para a Amazônia, pois o aquecimento global perduraria por duas ou três décadas mesmo depois de cessadas as emissões antropogênicas. O limiar no qual a inércia do sistema climático pode empurrar a floresta para além dos seus limites de tolerância está muito próximo. Se esperarmos para saber precisamente onde está esse limiar, talvez seja tarde demais. Fingir que a ameaça que o aquecimento global representa para a floresta não existe é uma fórmula para o desastre.
*Philip Fearnside é ecólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).