A história da formação de São Paulo mostra como a cidade que aspirava à modernidade manteve-se presa a tradições arcaicas fundadas no colonialismo e no escravismo, com reflexos até nos dias de hoje
Por Eda Terezinha de Oliveira Tassara
Ao nascer como cidade, São Paulo, uma cidade-colônia européia fundada como um ato político, herdou um modelo de organização a partir de uma ordem moderna: uma “sociedade criada pelos primados da razão”, nas palavras do sociólogo José de Souza Martins. Mas, segundo o filósofo e antropólogo Néstor García Canclini, isso não garantiria sua plena realização moderna, isto é, não preencheria os requisitos de racionalidade referidos por Martins.
A expansão da modernidade histórica no território latino-americano comprometia-se explicitamente com o domínio externo, ideologicamente justificado e materializado nas práticas da colonização e do escravismo que caracterizaram sua ocupação. A composição sociopolítica que se estabeleceu, então, derivou da justaposição de hábitos ao longo do tempo, transformando a metrópole paulista no emaranhado mundializado que se percebe e se verifica atualmente.
Em um primeiro momento desse processo histórico de construção da metrópole, as relações sociais e humanas se constituíram em disciplina social baseada no uso de instrumentos físicos de coerção do trabalhador. Os escravos foram disciplinados pelo uso do chicote, sujeitando-se assim à ordem trabalhista impressa nesse tempo. O ordenamento político colonial definia uma hierarquia social assegurada pela coerção física e o lembrete permanente do castigo.
Mudar, sem mudar
A evolução da cidade, ao longo do processo histórico, produziu uma mudança no caráter coercitivo das relações. A submissão a modelos e paradigmas hegemônicos produzia-se, segundo Martins, através da “interiorização da coação física como coação psicológica. (…) As pessoas devem ter medo para que se cumpra a funcionalidade da sociedade moderna. É assim que esta sociedade funciona até hoje.”
Com o início da construção da ferrovia, símbolo da modernidade paulistana, surgiram novos ritmos, novas mentalidades, transpondo o dipolo senhor-escravo para o de fazendeiro-colono, assim como na constituição do espaço de casa-grande e senzala para sede e colônia. A ferrovia veio mediar o caráter do ordenamento socioeconômico em uma perspectiva do trabalho livre e da reprodução do capital, mas ainda mantinha aspectos do modelo tradicional.
Também como ícone do desenvolvimento capitalista, a ferrovia incrementou o paradigma agroexportador e difundiu o modelo de vida civilizada característico da sociedade européia, remodelando a fisionomia da cidade, assim como as condutas citadinas e as mentalidades dos cidadãos: “Era como se descosturasse a trama das velhas relações sem destruí-las inteiramente; recosturando-as no sistema de significados e funções do primado do capital e de sua reprodução ampliada”, escreve Martins.
As transformações ocorridas a partir da implantação da ferrovia fizeram emergir as contradições entre o novo e o tradicional, traduzindo-se pela demarcação territorial na dicotomia rural-urbano. Entre o caráter da industrialização e a prudência tradicionalista da colônia, a ordem social privilegiou a tradição.
O processo de industrialização imprimiu um novo ritmo ao cotidiano paulistano, constituindo-se em novas formas de organização do trabalho, de convivência, de mentalidades, repercutindo na estruturação social e política da época. Tal dinâmica originou uma divisão cultural concomitante com a produção de uma estratificação social.
A definição dos estratos sociais foi acompanhada de novas regras de conduta, assim como de outras formas de interpretar a realidade que se regulava pela necessidade social da aparência. Foi, então, que a vida passou a ter atributos diferenciados mediante o estrato social a que se pertencesse: a vida privada era privilégio da elite, enquanto a vida cotidiana e pública ficava com a população pobre; os espaços ocupados e o tempo se diferenciavam entre si, pois enquanto uns viviam o ócio outros tinham seus tempos demarcados pela disciplina do trabalho. As moradias e as atividades trabalhistas também explicitavam tal divisão social.
Assim, o território era dividido em dois segmentos. De um lado, a mentalidade de uma vida privada evidenciada em espaços luxuosos, “uma espacialidade que distinguisse bastidor e palco”, segundo Martins. De outro, um espaço indissociado entre o trabalhar, o habitar e o ser. Dessa forma, as empresas assumem um caráter civilizatório e os aristocratas “transformam-se em missionários da civilização”.
As novas elites paulistanas, apoiadas no modelo europeu de civilidade, foram desconfigurando o território da cidade, criando “núcleos de segregação social e assepsia ambiental”, na palavras do historiador Nicolau Sevcenko, destituindo da relação socioespacial o caráter ocupacional dos povos autóctones e dos afro-descendentes. A propagação desse modelo de urbanidade determinou os modos de ocupação do território.
O novo subúrbio
Segundo Sevcenko, “de fins do século XIX até o final da década de 1920, a expansão da mancha urbana se concentrou sobretudo nos chamados bairros centrais. A norma consagrada foi a de camadas dominantes se estabelecerem nos terrenos mais altos da topografia, relegando as baixadas, as várzeas e demais zonas alagáveis ou vizinhas às estradas de ferro para as fábricas, armazéns, oficinas e populações operárias”.(ver Retrato sobre o bairro da Barra Funda nesta edição)
Neste período urbanístico de São Paulo, o transporte utilizado era o bonde, fato transformado a partir do Estado Novo, em que os automóveis, como no resto do mundo, passaram a ocupar um lugar como meio de transporte, derivando em um projeto urbanístico de construção de grandes avenidas (desenvolvido por Prestes Maia) como um novo modelo expansionista da cidade.
Tal plano mudou a direção do desenvolvimento urbano, promovendo a expansão da malha da cidade. Assim, uma nova tendência habitacional se evidenciou, dadas a facilidade e a velocidade do transporte público, exacerbada por meio de estratégias persuasivas de agentes especuladores, dando origem a novos bairros em áreas distantes. Esses fatos caracterizaram um processo de periferização geométrica e a constituição de um novo subúrbio paulistano.
A população de baixa renda seguiu em busca de novos espaços de moradia, enquanto a verticalização das áreas centrais, mais valorizadas no mercado imobiliário, foi privilegiada pelas camadas mais abonadas. Esse veloz movimento de ocupação desordenada caracterizou-se por uma polifonia, desdobrando a São Paulo original em várias outras (precária, distante, ilegal etc.), originando um paradigma centro-periférico específico de ordenamento espacial e socioambiental.
Isso se deu não pela busca consciente em se constituir diferencialmente ao paradigma hegemônico, mas por efeitos derivados de desejos de inserção no mundo urbano mediados por uma identificação imprecisa da representação dos modelos de urbanidade contemporânea, gerando um esvaziamento simbólico dos mesmos. O imaginário sem ethos dos sujeitos que buscam São Paulo direciona difusamente suas ações de procura em corresponder aos modelos de urbanidade e paradigmas urbanos, gerando perimodelos e periparadigmas, representações que se assemelham a uma representação ideal, mas que não seguem adequadamente o seu desenho.
Contemporaneamente, uma vertiginosa transformação na vida cotidiana dos trabalhadores e dos operários se deu por meio da imposição de uma estrutura de mercado ainda mais veloz, criando necessidades de consumo de um modelo globalizado expresso pelos estilos de moradia, dos shopping centers, de uma multiplicação de referências simbólicas esvaziadas de conteúdo porque alheias ao processo coletivo das pregressas relações comunitárias vividas.
Hierarquia de Espaços
Tais dinâmicas criaram novas regiões de centralidade no território da cidade, mas não alteraram o caráter hegemônico das representações direcionadoras da conduta urbana. Aqui se entende “central” como parâmetro de conduta, como modelo de identidade a ser seguido e/ou copiado. Essas dinâmicas, expressas pelos movimentos de ocupação da área periférica e pela verticalização e ocupação desses novos centros (habitacionais e financeiros), marcaram significativamente o processo de urbanização na formação da metrópole paulistana, que dessa forma preservou a mentalidade do dentro/fora e do centro/periferia que continua a modelar as identidades dos citadinos.
A preservação do processo de segregação e de estratificação social se explicita fortemente na fisionomia da cidade, refletindo a estrutura política centralizadora de ações voltadas para imposição e subjugação dos extratos inferiores de sua população aos modelos centrais. Tal processo reifica o modelo urbano hegemônico que hierarquiza lugares, regiões, cidades, estados, e impõe representações de urbanidade.
Considerando-se todo o percurso histórico de construção da metrópole paulistana – e também o seu lugar de destaque na economia nacional, por se inserir na rede mundial de cidades -, São Paulo ganha um status que repercute no imaginário nacional, tornando-se símbolo de progresso, de desenvolvimento socioeconômico, de acesso aos símbolos urbanos. Isso tendo em vista que a vida urbana é o modelo de vida por excelência, no mundo global, e a representação da urbanidade a ele correspondente mostra-se como característica civilizatória de forte hegemonia.
A repercussão desse paradigma, que desde sempre é associado ao centro do poder mundial, se materializa nos projetos e planos para a cidade e para a arquitetura das edificações, sendo expressos, na vida dos sujeitos, pelos modos de vestir, de morar, de se relacionar.
A representação hegemônica da urbanidade constitui-se, assim, em centralidade, consolidando-se como modelo de vida na cidade, instigando os indivíduos à busca de símbolos que possam significar preenchimento ou aproximações à satisfação dos quesitos necessários para que, então, possam sentir-se inseridos adequadamente ao mundo social urbano.
Os sujeitos que são, ou se tornam, habitantes de São Paulo, pela homogeneização e pelo teor de seus discursos sobre o urbano, são periurbanos de paradigmas e representações-modelos hegemônicos, constituindo-se como fora do modelo e periféricos ao paradigma urbano. Paradoxalmente, incluem-se na rede mundial de cidades afirmando suas identidades de excluídos, quando fora do modelo e periféricos ao paradigma, e suas identidades de incluídos e centrais, ao se inscreverem em um paradigma de modernização precária, na definição dos especialistas em urbanismo Regina Meyer, Marta Grostein e Ciro Biderman.
Dessa forma, concluímos com Martins e Canclini que, apesar de São Paulo ter herdado um modelo de organização política a partir de uma ordem moderna, não se garantiu a sua plena realização moderna, avaliando-se sua configuração contemporânea como correspondendo a um processo de modernização precária.
Ou seja, ao afirmarmos sua modernização como precária, jogamos para o futuro de São Paulo a sua plena realização moderna. Se, ao contrário, a avaliássemos como refletindo um processo de “precarização moderna”, estaríamos afirmando sua plena realização moderna, embora sob um modelo caracterizado pela precarização urbana.
Eda Terezinha de Oliveira Tassara é professora titular do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Psicologia Sócio-Ambiental e Intervenção (Lapsi).