Dos países desenvolvidos que buscam soluções para reduzir as emissões de carbono às nações em desenvolvimento, onde morar bem ainda é privilégio, o futuro é urbano
Por Flavia Pardini
Se fosse realizado em 2010, o encontro que reuniu os prefeitos das 40 maiores cidades do mundo em Nova York, em meados de maio, talvez contasse com a presença do líder de uma cidade especial. Dongtan, na China, com certeza não estaria presente devido ao tamanho, mas por ser a primeira ecocidade planejada do mundo.
Encomendada pela Corporação de Investimento Industrial de Xanghai (SIIC, na sigla em inglês) e desenhada por uma empresa britânica de engenharia e planejamento, Dongtan começa a ser construída este ano. Seus idealizadores esperam que a nova urbe seja casa para 10 mil pessoas já em 2010, 500 mil em 2050. Ao contrário das cidades cujos prefeitos estiveram no encontro de Nova York, seu impacto sobre o meio ambiente será mínimo, garantem.
O plano é que a cidade gere energia para todas as suas necessidades a partir de fontes renováveis – turbinas eólicas, biocombustíveis e reciclagem de material orgânico – e que os veículos que circulem pelas ruas sejam carbono neutro. Mais do que isso, a cidade será desenhada para facilitar a vida de pedestres, ciclistas e usuários de transporte público. O esgoto será tratado e reutilizado na irrigação e fabricação de fertilizantes e o lixo, totalmente reciclado, livrando Dongtan da necessidade de aterros sanitários.
Os edifícios terão de quatro a oito andares, o suficiente para criar a densidade ideal – até 13 habitantes por quilômetro quadrado, aproximadamente – para que a cidade use os recursos energéticos de maneira eficiente, sem concentrar a população em alguns arranha-céus cercados de subúrbios por todos os lados. As construções vão preferir materiais locais e usar elementos naturais para eliminar a necessidade de ar-condicionado ou aquecimento.
Na prancheta, 65% da ilha sobre a qual subirá Dongtan está livre para parques, fazendas para produzir organicamente os alimentos a ser consumidos pelos moradores, e áreas verdes, incluindo as regiões alagadas que acolhem um raro tipo de pássaro migratório. É o sonho ecológico transformado em cidade.
Em cada canto, um conto
Enquanto o sonho não vira realidade, várias das características que farão de Dongtan uma ecocidade podem ser vistas espalhadas pelo mundo, invariavelmente em centros do chamado Primeiro Mundo, onde moram os cidadãos para quem dois ou três carros na garagem não é luxo.
Copenhague, a capital de 504 mil habitantes da Dinamarca, abastece 150 mil residências com energia produzida em uma fazenda eólica construída sobre o mar. Um sistema que captura calor gerado na incineração de lixo e na produção de eletricidade a partir de gás natural e biomassa garante o aquecimento de 97% das residências e reduziu em 665 mil toneladas as emissões anuais de CO2 da cidade.
Um plano criativo para incentivar a separação e reciclagem garante que mais de 90% dos resíduos sejam reutilizados: qualquer pessoa pode devolver restos de tinta, por exemplo, à loja onde comprou a tinta; remédios para a farmácia; embalagens vazias para o supermercado. Copenhague gaba-se, ainda, de ser a capital dos ciclistas e estima que 36% dos trabalhadores usem a bicicleta no percurso de casa para o trabalho.
Em Toronto, principal cidade canadense e casa para 2,5 milhões de pessoas, a empresa de energia que serve a região central passou a usar a água naturalmente fria do vizinho Lago Ontário para alimentar o sistema de refrigeração dos edifícios de escritórios, reduzindo em 90% o consumo de eletricidade. Técnica semelhante é usada em Amsterdã, na Holanda.
Em Melbourne, a segunda maior cidade da Austrália, um edifício de dez andares aproveita o ciclo natural do sol, do ar e da água para aquecer ou esfriar os ambientes e a água. A partir de um sistema de dutos, à noite o prédio exala o ar usado durante o dia e, ao longo do dia, absorve ar fresco. Conta ainda com uma pequena planta para filtragem e reutilização de água, painéis solares e turbinas eólicas, um telhado de grama, entre outras atrações.
No início, uma vila
Na Inglaterra, um protótipo de Dongtan existe desde 2002: o BedZED, apelido de Beddington Zero Energy Development, uma ecovila com cem residências ao sul de Londres. O prefeito da capital britânica, Ken Livingstone, anunciou a construção de um projeto mais ambicioso, para mil residências, no oeste da cidade. Enquanto isso colhe os louros da criação do pedágio para os carros que circulam na região central, que desde 2003 reduziu as emissões de carbono por carros e caminhões em 16% e aumentou a velocidade do tráfego em 37%. Seguiram o exemplo Estocolmo e cidade de Cingapura.
Em breve será a vez de Nova York – a cobrança no estilo londrino é o ponto mais polêmico de um programa com 10 objetivos e 127 iniciativas proposto pelo prefeito Michael Bloomberg, em dezembro de 2006, que pretende preparar a cidade para acolher 1 milhão de novos moradores e torná-la mais “verde” e habitável até 2030.
O plano nova-iorquino é apenas o mais recente em uma onda de planejamento que tomou as cidades dos países desenvolvidos nos últimos anos, à medida que o aquecimento global e seus efeitos entraram em evidência. Todas as grandes cidades australianas, por exemplo, elaboraram seus planos e buscam controlar o desenvolvimento de subúrbios e reduzir a dependência do automóvel.
Sydney e Melbourne recentemente construíram 30 mil unidades residenciais em áreas centrais e a cidade de Perth, a maior do Oeste da Austrália, em breve vai seguir o exemplo, diz Peter Newman, especialista em sustentabilidade urbana e autor do livro Sustainability and Cities: Overcoming Automobile Dependence.
Apesar de toda a tecnologia e inventividade para diminuir seus impactos, e de muita retórica a favor de mais densidade nas áreas centrais, as cidades de países desenvolvidos ainda não controlam uma variável fundamental, a construção de subúrbios cada vez mais longe do centro.
Newman demonstrou a relação entre densidade urbana – medida pelo número de pessoas por hectare – e transporte: quanto mais perto as pessoas vivem umas das outras, menos têm de se deslocar e mais viáveis economicamente se tornam os meios de transporte de massa. Usando dados de 1995, os últimos disponíveis, ele analisou a performance de 84 cidades do mundo. A pior foi de Atlanta, nos EUA, com densidade de apenas seis pessoas por hectare (10 mil metros quadrados) e consumo de 103 megajoules (MJ) de energia per capita – cada litro de gasolina queimado equivale a 30 MJ. Na outra ponta da escala estão cidades como Ho Chi Minh, no Vietnã, Dacar, no Senegal, Mumbai, na Índia, e Xangai, na China, de onde brotará Dongtan.
Alta densidade
Nessas cidades do Terceiro Mundo, embora o crescimento e o aumento do número de automóveis seja um problema, a questão não é o desenvolvimento da última tecnologia para gerar energia limpa. Seja na África, na Ásia, seja na América Latina, o desafio ainda é garantir moradia decente para todos, assim como serviços básicos como coleta de esgoto e lixo e distribuição de água potável. Milhões de pessoas vivem em favelas, algumas delas localizadas em região nobre e central das cidades.
É o caso de Dharavi, em Mumbai, considerada a maior favela da Ásia, casa para cerca de 1 milhão de pessoas. Ou Kibera, em Nairóbi, no Quênia, que também beira o milhão de habitantes – a Favela da Rocinha, no Rio, considerada a maior do Brasil, tem população de cerca de 400 mil pessoas. Em Johannesburgo, África do Sul, estima-se que 20% da população esteja em favelas. Falta de densidade não é problema, como para as cidades espalhadas do Primeiro Mundo. Mas sem ações para diminuir a pobreza urbana, o número de habitantes das favelas do mundo pode dobrar – dos atuais 1 bilhão – nos próximos 30 anos, segundo projeção das Nações Unidas, e multiplicar os impactos ambientais locais.
Embora os moradores das favelas consumam, em geral, pouca energia oriunda da queima de combustíveis fósseis, seu impacto sobre o meio ambiente local pode ser devastador – na periferia de São Paulo, por exemplo, as ocupações ilegais de áreas de mananciais e a ausência de serviços de saneamento colocam em risco a qualidade da água que abastece a cidade (reportagens nas edições 7 “O que será do sertão?” e 8 “E agora, José?”).
Futuro em aberto
Oferecer transporte para tanta gente é um desafio hercúleo. Para as cidades que se dispuseram a enfrentá-lo, uma solução nascida em Curitiba tem se provado eficaz: os sistemas rápidos de ônibus, ou corredores. Embora não sejam tão eficientes quanto metrôs ou trens, os corredores de ônibus têm a vantagem do custo: sua construção absorve 50 vezes, em média, menos recursos. O exemplo de maior sucesso talvez seja o de Bogotá, capital da Colômbia, com o projeto Transmilênio, atualmente em sua segunda fase. O sistema reduziu o tempo de traslado em 32%, em média, quase eliminou os acidentes nas regiões em que foi implantado e diminuiu as emissões de gases de efeito estufa em 40%. O Transmilênio teve a metodologia aprovada pela ONU e começa a ser replicado em outras cidades, da Tanzânia à Índia e à China.
O sucesso do Transmilênio não se deve somente aos números, mas a um conjunto de ações que transformou Bogotá em uma cidade mais habitável. Considerada umas das cidades mais perigosas da América Latina nos anos 90, hoje é destino turístico. O esforço em transformar a capital em uma outra cidade – que vem inspirando programas em outros centros, como São Paulo, foi liderado pelo prefeito Enrique Peñalosa, que legalizou e levou serviços públicos a bairros marginais, criou a Metrovivienda – uma entidade para reforma fundiária urbana que constrói, por meio de parcerias público-privada, moradias de qualidade para a população de baixa renda – e iniciou o Transmilênio. Além de facilitar a vida de quem depende de ônibus, Bogotá investiu em mostrar às pessoas os benefícios de andar a pé ou de bicicleta. Hoje, a cidade dispõe da mais extensa rede de ciclovias do mundo, com 330 quilômetros, e institucionalizou o “dia sem carro” – toda primeira quinta-feira de fevereiro, Bogotá é fechada para os automóveis.
Mesmo nos países mais pobres há exemplos que comprovam que as cidades não são necessariamente ruins do ponto de vista socioambiental. Com metade da população do mundo concentrada nos centros urbanos, e estes crescendo a 2,5% ao ano, não há dúvida de que o destino da humanidade depende do que acontece nas cidades.
O que acontecerá, por exemplo, em Dongtan? A nova cidade será erguida ao lado de Xangai, cuja economia cresce a um ritmo impressionante e que, há meros 20 anos, não passava de uma área alagada ocupada por plantações de arroz. Hoje abriga 130 milhões de pessoas. Os idealizadores de Dongtan afirmam que, para ser socialmente sustentável, a origem da população terá de ser diversificada do ponto de vista socioeconômico, pois o plano inclui “empregos para toda e qualquer pessoa capaz de trabalhar”. Difícil, no entanto, é tentar controlar a incrível atração que as cidades exercem sobre os homens.