O especialista em sustentabilidade urbana Peter Newman diz que o maior desafio para as cidades, onde quer que estejam, é acreditar que o sonho pode ser urbano
Por Flavia Pardini
Página 22: O fato de que este ano a população urbana ultrapassa a rural é bom ou mau presságio?
Peter Newman: Eu digo que é bom. Participei da produção do relatório sobre o Estado do Mundo em 2007, do WorldWatch Institute. Tivemos muitas discussões e, no final, houve consenso de que as cidades podem trazer mais bem do que mal. Pode-se ver a questão de diversas maneiras. Por exemplo, as áreas rurais são onde o grosso do crescimento populacional ocorre. Quando as pessoas mudam para as cidades, em geral param de ter filhos. Então as cidades podem ajudar um país a ter uma população mais sustentável. Pode-se perguntar: se essas pessoas ficassem no campo, teriam impacto maior sobre o planeta do que na cidade? Elas certamente ocupam menos espaço na cidade; podem consumir mais, mas não causam o dano a florestas, rios e áreas agricultáveis que as populações rurais pobres provocam na maior parte do mundo. Há dados que mostram que, se despovoássemos as cidades e colocássemos as pessoas nas demais áreas, destruiríamos o planeta rapidamente. De certa maneira, as cidades estão ajudando o planeta nessa transição por que passamos. Há muitas coisas que elas precisam fazer, entretanto, para melhorar sua performance, mas não há esperança de reverter a tendência (de urbanização).
22: Mesmo em países pobres, onde as condições de vida não são boas, as pessoas migram para centros urbanos. O que as atrai?
PN: As oportunidades para seus filhos, mais do que qualquer coisa. Em muitos lugares o campo ainda é feudal, poucas pessoas mandam nas vilas ou em regiões inteiras. A escravidão ainda existe em algumas partes do mundo, mas não nas cidades, normalmente no campo, onde as pessoas ficam ligadas a um fazendeiro ou proprietário de terras, tão endividadas que não conseguem mais ganhar dinheiro. Então elas fogem, cortam as amarras. A cidade é onde há oportunidade de educação, de emprego. Em geral, apesar do fato de que as pessoas vêm e vivem em favelas, elas conseguem algum tipo de emprego para sair dessa situação. Não são todas, e às vezes pensamos: “O que essas pessoas estão fazendo aqui, por que não voltam para o campo, onde é agradável e tudo está em paz?” Não está em paz. Por isso as cidades crescem 2,5% ao ano globalmente e as áreas rurais atingiram o pico e agora estão decrescendo.
22: Apesar da atração, parece haver uma tendência antiurbana nos círculos acadêmicos e políticos. Por quê?
PN: Em geral as cidades são vistas como algo negativo. Acho que este é um período em que o crescimento urbano é tão grande que ainda não aceitamos que a vida na cidade pode ser boa. Há também uma dimensão cultural que alimenta nossa imaginação, e em geral ela é rural. A tradição anglo-saxã considera que os ambientes puros são os naturais, e as cidades são vistas como artificiais, negativas, algo a evitar sempre que possível. É por isso que as pessoas moram em subúrbios, para ter um pouco de natureza, de pureza, de volta. É uma dicotomia falsa, porque os subúrbios não são nem um pouco naturais. Os chineses não têm essa tradição, sempre se deliciaram nas cidades. A tradição judaica é mais pró-urbana, assim como em partes da Europa. Algumas tradições islâmicas também, com as cidades no centro da cultura. Minha impressão é de que na Austrália e nos EUA estamos presos no meio…
22: Presos nos subúrbios…
PN: Sim, dominados pelos planejadores britânicos. A profissão de planejamento urbano sofreu uma lavagem cerebral por pessoas que compartilham da visão da “Garden City”, que acham que as pessoas precisam, para seu próprio bem, evitar os horríveis edifícios altos e fugir de lugares onde a indústria pode se instalar. Têm de viver em um ambiente puro, onde há ar fresco. Isso vem do passado industrial, do século XIX, que eles queriam limpar, mas foi exportado para o mundo. Os britânicos dominaram a profissão de planejamento. Mas isso não é necessariamente o que as pessoas estão procurando. Na minha opinião, elas buscam diversidade nas cidades.
22: O que move o espalhamento das cidades australianas é o chamado “Great Australian Dream”?
PN: É em parte verdade que o “Great Australian Dream” é movido por uma cultura que exalta a aquisição da casa própria, o desejo de ter um pouco de espaço para si mesmo. Mas muito é marketing. Diante da opção de ter menos espaço, mas mais proximidade de uma infra-estrutura urbana de boa qualidade, as pessoas optam por isso. Cada vez mais os jovens querem essa proximidade. Na Austrália, os subúrbios mais próximos do centro das cidades e as áreas centrais estão florescendo. Há um mercado para pessoas que querem viver nos centros e ter uma existência mais urbana. O sonho pode ser urbano. Nos EUA, ouve-se sobre o “American Dream”, mas muito da corrida para os subúrbios, a chamada “fuga branca” (leia Coluna nesta edição), foi uma reação contra o racismo das áreas centrais. A realidade é que as escolas estavam morrendo, não se podia encontrar emprego ali, não era um bom lugar para se viver, então quem tinha dinheiro se mudou. Não foi movido pelo sonho americano de lindos subúrbios, mas pelo desejo de afastar-se da bagunça. Isso também está mudando, os subúrbios mais centrais estão sendo repovoados. Então isso também é parte do “American Dream”? Acho que sim, é parte do mix.
22: Qual é o impacto dos subúrbios?
PN: Em geral é onde se dá boa parte do consumo de combustíveis fósseis e de água, e onde ocorre a produção de lixo. Ecologicamente, os subúrbios são um desastre. Os dados mostram que as pessoas nos subúrbios australianos consomem duas ou três vezes mais combustível para transporte do que as que vivem no centro. E nas bordas da cidade, onde há casas de campo e condomínios de alto padrão, é ainda mais desastroso – essas áreas não têm produção agrícola, não ajudam a formar comunidades, apenas tornam-se intensas em tráfego e fonte de pestes e animais ferozes. Em qualquer cenário futuro em que haja limites quanto às emissões de carbono, vão perecer. Os dados mostram que a variável-chave para avaliar o consumo de recursos nas cidades é a densidade. Riqueza é um fator pequeno – quanto mais rico você é, mais consome. Mas não é tão simples. Se você é rico e vive no centro de Sydney ou São Paulo, não usa tanto o carro, não precisa. Vai ao teatro, a galerias de arte, consome livros. Não vai necessariamente aguar um jardim enorme.
22: Qual é o papel do carro na configuração e sustentabilidade das cidades?
PN: O carro é chave para entender a estrutura das cidades. Se você constrói uma cidade em torno do carro, consome enormes quantidades de energia e água, e produz muito lixo. Quanto menos o carro for central na construção da cidade, mais ela será focada no transporte público e no hábito de andar a pé, menos ela vai consumir e se espalhar. Carros e densidade estão sempre juntos. Para acomodar os carros, é preciso investir em avenidas e estacionamentos, permitir que os subúrbios se desenvolvam cada vez mais longe. Se substituído por investimento em um bom transporte público, na possibilidade de andar, de construir muito densamente, então a cidade é diferente, muito mais sustentável.
22: Se riqueza é um fator pequeno, qual é o impacto ambiental das favelas, por exemplo?
PN: Pessoas de baixa renda têm pouco impacto no meio ambiente global. Não consomem tanto combustível e contribuem menos para as mudanças climáticas, mas podem tem um impacto poderoso localmente. Podem destruir um rio, criar vários problemas com seu lixo. Se elas estão em uma área central, provavelmente “colonizaram” um terreno aberto, seja ao longo de um rio, de uma avenida, em que não havia construção por alguma razão. Acho que a melhor maneira de lidar com isso, em vez de retirá-las e mandá-las para outro lugar, é legitimá-las, fornecer infra-estrutura e torná-las parte da cidade. Com isso, essas áreas podem rapidamente deixar de ser fonte de impacto para tornar-se contribuintes para a cidade. Precisam fazer parte da economia formal, em vez de parecer que não existem. Uma vez que há serviço de água, esgoto, coleta de lixo, em geral essas áreas são muito densas, as ruas são pequenas, orgânicas, podem se tornar pontos atraentes.
22: O que as cidades de países em desenvolvimento podem aprender com suas irmãs do Norte?
PN: De certa maneira, não podem aprender nada. Se você disser “precisamos de um planejador para ajudar a consertar nossas cidades”, eles irão a São Paulo ou Nairóbi e não terão idéia do que fazer. Não foram treinados para lidar com esses problemas, mas sim para começar com um terreno vazio, dividi-lo, planejá-lo e ter um processo ordenado de construção. Nessas cidades tudo isso já aconteceu, então o que fazer? Cada vez mais, os especialistas com quem converso dizem que é preciso trabalhar com o que está disponível, mas transformar essas áreas em algo mais sustentável. O primeiro passo é legitimar, dizer “sim, vocês existem e podem ter um futuro, não vamos mandar o Exército para limpar a área”. Se isso for possível, então será possível fazer várias coisas, e a comunidade vai ajudar a construir a rede de esgoto, de água, a criar espaços verdes, a construir escolas. De outro lado, podemos mostrar que as cidades não são necessariamente lugares degradados, indicar que nossas cidades administraram os problemas de água e lixo, dos direitos fundamentais das pessoas, que é possível acreditar que pode ser diferente.
22: É preciso limitar o espalhamento, seja de subúrbios ricos, seja de periferias pobres?
PN: É nossa agenda mais importante. Falamos muito sobre isso, mas não estamos controlando. Temos um espalhamento planejado, mas ainda assim ele depende do carro, não é feito para ser sustentável. Vamos sofrer com a alta do preço do petróleo e com os efeitos das mudanças climáticas. E o mesmo processo ocorre no mundo todo, até nas bordas das cidades européias há o espalhamento e a dependência do carro. No Terceiro Mundo, em Bangcoc e mesmo nas cidades chinesas, e com certeza na América Latina. A expansão periférica das cidades, porque depende do carro, é algo que temos de evitar.
22: Como convencer autoridades e construtoras? As mudanças climáticas são um argumento?
PN: A mudança climática está cada vez mais na agenda, mas as construtoras australianas, por exemplo, não estariam atuando nas áreas centrais se não tivessem lucro com isso. Cada vez mais se paga um prêmio por morar perto das estações de trem em Perth, por exemplo. Um construtor me disse que a margem em geral é de 20% a 30% em qualquer lugar, mas há 15% a mais para construções próximas a estações de trem. Viver perto de uma estação é hoje uma característica cobiçada nas cidades australianas. Os planejadores urbanos britânicos ainda estão lá no canto, dizendo que ninguém quer viver perto da linha do trem… Mas se vê que isso é movido pelo mercado quanto qualquer outra coisa. Todas as cidades australianas desenvolveram planos estratégicos de reordenamento nos últimos cinco anos, todos elaborados em um framework político em que as mudanças climáticas, o impacto do carro, estão presentes. Todos contêm as palavras certas, mas na prática os planejadores ainda seguem a tradição britânica. Há um conflito de culturas dentro da profissão que gera uma certa tensão em nossas cidades no momento.
22: Para cidades ricas ou pobres, o maior desafio é tornarem-se mais densas?
PN: O maior desafio é uma cidade acreditar em si mesma. Quanto mais as pessoas querem estar juntas, em um lugar onde se podem fazer todas as transações, negócios, construir comunidades e uma vida urbana, mais isso tudo vai acontecer. Se tentam escapar, como no período em que os americanos abandonaram suas cidades, se a cultura diz que as cidades são ruins e apenas o campo é bom, então não vai acontecer. Você não vai ter as economias de escala que a densidade oferece, não vai ter todas as idéias e visões florescendo. O desafio é ser uma sociedade humana urbana, a densidade não faz mágica. É preciso atentar para as exigências de planejamento e design que permitem que a densidade aconteça, mas ela precisa ser motivada pelo desejo das pessoas de viver, trabalhar e juntar-se nesses espaços. Temos um certo problema nessa área na Austrália.
22: Mas as cidades australianas estão no topo da lista das mais agradáveis de viver…
PN: …porque as pessoas que fazem os critérios para essa lista são muito suburbanas.