Por Raul do Valle
Recentemente o presidente Lula foi a São Gabriel da Cachoeira (AM), município com a maior proporção de índios em sua população (mais de 80%), para lançar o assim denominado “PAC indígena”. Estimado em pouco mais de R$ 500 milhões, o programa prevê investimentos em demarcação e proteção de terras, educação, saúde, cultura e desenvolvimento econômico. Tal como foi apresentado, parece ser uma espécie de “compensação étnica” do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que com sua predileção por grandes obras de infra-estrutura (estradas, hidrelétricas, linhas de transmissão, hidrovias, portos etc.) afetará direta ou indiretamente algumas dezenas de terras indígenas (TIs), sobretudo na Amazônia.
Entre as décadas de 50 e 70 havia um plano governamental de “integração” da Amazônia ao restante do País, o qual pressupunha projetos de colonização, incentivos à derrubada da floresta para uso agropecuário, instalação de grandes obras de infra-estrutura e de projetos de extração de recursos naturais. Hoje já não há mais um plano oficial nesse sentido — muito embora o Incra continue assentando milhares de colonos de todo o País na região —, mas o mercado, também nessa área, veio tomar o seu lugar. Grandes projetos de aproveitamento hidrelétrico, de mineração, de exploração agropecuária e madeireira estão se instalando na região, alguns com incentivo oficial, outros sem precisar disso, apenas pelo estímulo de buscar matéria-prima barata para exportar a um mercado mundial em crescimento contínuo nos últimos anos. Nesse contexto, e assim como ocorreu na década de 70, os povos indígenas e seus territórios são vistos como “entraves” ao crescimento do País.
Não por acaso cresceu nos últimos cinco anos o número de projetos de lei apresentados perante o Congresso Nacional que tentam dificultar ou reverter a demarcação de terras indígenas e abrir suas fronteiras para a exploração dos recursos naturais. Dentro do próprio Poder Executivo federal estão sendo gestados ao menos dois importantes projetos de lei que afetarão diretamente os interesses indígenas: um que permite a exploração mineral de larga escala dentro das Tis e outro que possibilita a instalação de hidrelétricas. Esses projetos são tidos como prioritários pelo núcleo gestor do PAC, que os vêem como medidas para “destravar”o crescimento econômico na região e no Brasil.
Frágil mosaico
Hoje a Amazônia concentra 98,6% da extensão das Tis no País, algo em torno de 108 milhões de hectares. Isso significa que perto de 21% do território da região está reservado ao usufruto exclusivo de povos indígenas. Vivem nessas terras pouco mais de 260 mil indivíduos (e cerca de 80 mil nas cidades), segundo dados da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), o que equivale à população de uma cidade de porte médio do Estado de São Paulo. São, porém, mais de 170 povos diferentes, com línguas, costumes e culturas próprios. Mais povos do que em toda a Europa.
Mas, sendo um mosaico de microssociedades (grande parte dos povos têm menos de mil indivíduos), os índios são na prática uma minoria política, econômica e populacional, o que os torna sempre vulneráveis aos humores da política ou do mercado. O caso das políticas de saúde é um exemplo claro.
Em 1999 o governo federal resolveu retirar os serviços de saúde da Funai e repassar ao Ministério da Saúde. Ato contínuo, criou os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), uma forma descentralizada de planejar o atendimento à saúde em áreas remotas e de gerenciar recursos. De início esse sistema funcionou muito bem, apoiado em grande medida na terceirização dos serviços e na ampla participação indígena no controle social, de forma que os indicadores de saúde melhoraram em quase todas as áreas. Nos últimos três anos, no entanto, as coisas mudaram.
A Funasa tentou uma mal-sucedida retomada dos serviços, que antes estavam delegados a prefeituras, universidades ou ONGs, ao mesmo tempo que o Ministério da Saúde se transformou em moeda de troca política no âmbito federal. Burocracia, má gestão e desvio de recursos marcaram este último período, e o reaparecimento de doenças e o aumento significativo do número de mortes é algo praticamente generalizado.
Embora exista hoje na sociedade brasileira uma visão positiva — muitas vezes idílica — acerca dos povos indígenas e da necessidade de afirmar seus direitos, as elites locais da Amazônia continuam tendo uma visão preconceituosa e defendendo a idéia de que tem muita terra para pouco índio, o que justificaria a paralisação no processo de demarcação de terras ou mesmo a ocupação desses territórios por aqueles que queiram “produzir”. Sob o olhar dos colonos ou de empresários, as terras indígenas são grandes áreas de “não-uso” e que deveriam ser em grande parte incorporadas ao mercado.
Uma rápida olhada no mapa de vegetação de Rondônia, ou da Bacia do Xingu em Mato Grosso, explica a contrariedade dessas elites à demarcação de terras. Praticamente todas as áreas fora das terras indígenas já foram desmatadas ou intensivamente exploradas, e as fronteiras entre as terras dos colonos (desmatadas) e as terras dos índios (florestadas) são tão evidentes que nem são necessárias cercas para que se possa identificá-las. Os números do desmatamento também confirmam essa realidade: entre 2005 e 2006 o desmatamento na Amazônia foi de mais de 14 mil quilômetros quadrados, mas dentro de Tis foi de apenas 190 quilômetros, ou 0,02% da superfície dessas terras.
Como se pode perceber, cada vez mais essas áreas se tornarão importantes provedoras de serviços socioambientais para o país (e para nossos vizinhos), que vão desde a regulação de chuvas até a preservação de inúmeras variedades agrícolas importantes à segurança alimentar nacional. Estes, porém, não são hoje reconhecidos ou recompensados pelo Estado ou pelo mercado, razão pela qual a situação socioeconômica no interior das terras não é das melhores e as pressões para se usar de forma insustentável os recursos naturais só tendem a crescer.
Mais demanda, maior urgência
Grande parte das comunidades indígenas ainda depende de favores e recursos repassados pela Funai para conseguir bens de consumo básicos, como ferramentas agrícolas, roupas ou utensílios domésticos. Não há ainda experiências exitosas, de larga escala, nas quais os índios tenham conseguido estabelecer uma produção voltada ao mercado que lhes garantisse uma renda básica ao mesmo tempo que não dilapidasse seu patrimônio natural. Essa é uma questão estratégica para o futuro das Tis, pois a tendência é que a demanda das populações indígenas por bens industrializados e geração de renda aumente.
Vivemos hoje uma disputa pelo espaço amazônico: ele deve continuar sendo um espaço de reprodução socioambiental, no qual povos e ambientes convivem há séculos, ou deve se transformar definitivamente em mais um espaço de reprodução do capital, onde tudo vira recurso para movimentar o sistema? Nesse ponto o PAC indígena deveria avançar no desenho de um grande sistema de pagamento por serviços ambientais prestados pelas terras e populações indígenas. Isso seguramente traria não apenas bem-estar social a essa pequena, mas importante, parcela da população nacional, mas também apontaria claramente qual o destino que se quer dar a suas terras.